Juntos em casa, sozinhos no mundo

Caio Tendolini
Transborda
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3 min readApr 22, 2020

Neste fim de semana, assisti boa parte do festival One World: Together at home

Foi quase um dia inteiro de shows e vídeos curtos por parte de artistas do mundo todo com a temática da pandemia do Coronavírus.

Ao longo de todo o dia, três mensagens foram repetidas. A primeira e mais direta é “fique em casa”. A segunda é “doe para o fundo de resposta solidária da Organização Mundial de Saúde”. A terceira é “força aos nossos heróis que estão no fronte, os trabalhadores da saúde”.

Tudo isso intercalado com uma série de propagandas comoventes por parte das maiores empresas do mundo.

Duas coisas me chamaram muito a atenção.

A primeira é insistir na mesma narrativa de sempre:
-Você indivíduo, faça sua parte, pois você é a solução do problema.
-Ah, lembre-se de pressionar seu governo, esse vilão-por-inércia que deveria fazer sempre mais e cobrar sempre menos.
-E lembre dessas empresas aqui, que estão sendo generosas e benevolentes, mesmo sem precisar.

Essa narrativa vem sendo repetida pra nós há cerca de 40 anos. Desde que Margaret Thatcher disse que não existe a sociedade, apenas os indivíduos e suas famílias. Desde lá, essa dinâmica de estado deveria fazer mas não faz + mercado que não precisa fazer mas faz + tudo está nas mãos dos indivíduos vem se repetindo sistemática e cotidianamente, em diferentes versões. E o festival deste fim de semana foi mais uma dessas versões.

O segundo ponto é que parece que as derrotas eleitorais e o crescimento do sentimento anti-establishment, nacionalista e ultra-conservador de 2016 para cá não ensinaram nada para nossa elite progressista.

A mensagem e a estética do festival inteiro reforçam esse mesmo lugar de que a sociedade é feita pra um tipo de gente. Essa gente globalizada, politicamente correta e descolex que pode ficar em quarentena vendo artistas de todo o mundo esbanjarem seus lares milionários enquanto choram pela humanidade, clamam por misericórdia e cobram ações dos poderosos que deveriam se responsabilizar.

Ora, são exatamente vocês os poderosos que deveriam se responsabilizar. E ao invés disso, ficam aí me falando pra eu “fazer a minha parte”. Pra eu ficar em casa quando dependo do dinheiro que ganho hoje. Pra eu doar lá pra longe sendo que é aqui perto que as pessoas tão morrendo. Pra eu cobrar o meu presidente, justo ele que tá liberando recursos pra minha família almoçar e falando pra eu seguir trabalhando pra não morrer de fome. (eu não concordo com essa leitura, mas estou fazendo o exercício empático aqui)

É claro que isso gera raiva. E é claro que 40 anos disso gera uma indignação capaz de eleger trumps, borises e bolsonaros. E, acima de tudo, é claro que se essa mensagem e essa estética não mudarem, não tem como reverter a virada na balança que vimos nos últimos anos.

A gente poderia aproveitar esse momento tão duro e que coloca em cheque esse mantra pra criar uma outra narrativa e prática.

Uma que afirme que o problema e as soluções não são individuais; que valorize serviços públicos de qualidade para todos e reconheça a importância do Estado em garanti-los; que evidencie que o mercado tem responsabilidade real e não apenas filantrópica na situação que vivemos; que reconheça que dizer "faça a sua parte" em uma sociedade tão desigual quanto a nossa é o mesmo que dizer que no fim do dia está cada um por si.

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Caio Tendolini
Transborda

Amante de projetos colaborativos que geram impacto positivo na sociedade. @update-politics