Precisamos repensar nossa relação com o assistencialismo

Caio Tendolini
Transborda
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3 min readApr 16, 2020

“A situação do Zeca tá foda. A gente se juntou e comprou 20 cortes de cabelo antecipados com ele pra ajudar.”

Ouvi isso de uma pessoa muito rica. Aquelas de dinheiro infinito. E fico pensando: por que não simplesmente doar o dinheiro? Por que tudo tem que ser uma relação comercial? Em que momento a gente declarou que assistencialismo é algo negativo, que deve ser evitado a todo custo?

Acho que foi ali pelo início do século, quando se popularizou a frase “não dar o peixe, ensinar a pescar”. Eu lembro de ouvir isso e me sentir impactado. Soava tão bonito e fazia tanto sentido. Parecia a solução para o problema de pobreza no nosso país, pensava eu na faculdade de economia que não tinha sequer um aluno negro.

Implícita nesta frase está a ideia de simplesmente receber dinheiro sem “ter feito nada por isso” é errada, independente da situação da pessoa. E muita gente incorporou essa noção. Dos que tem peixe infinito para si e seus tataranetos até quem luta pelo peixe todo dia.

Foi uns 5 anos depois de ouvir essa frase pela primeira vez que entendi sua enorme perversão. Primeiro porque coloca o fato da pessoa estar em necessidade como responsabilidade dela. Como se ela fosse miserável e precisasse de suporte apenas porque não aprendeu a pescar. Se você acha que ganhar dinheiro é apenas uma questão de vontade própria e mérito, não consegue compreender as dinâmicas de desigualdade da nossa sociedade. As vezes, aprender a pescar não basta se não tem anzol, vara, peixe ou rio à disposição. As vezes, por exemplo, teve uma vazamento de óleo de proporções catastróficas que te impedem de pescar e vender o peixe.

Segundo porque se pressupõe que há tempo para aprender. Como se miséria e fome pudessem aguardar para depois do curso de empreendedorismo. Como se o desespero fosse opcional. Quem precisa de comida no prato hoje não pode se dar o luxo de fazer qualquer outra coisa que não seja encontrar comida.

Em condições "normais", sendo o 2º país mais desigual do mundo, poderíamos até falar em dar o peixe e ensinar a pescar, entendendo que dar o peixe é transferência de renda agora (para quem precisa sobreviver) e ensinar a pescar passa por décadas de investimento e políticas públicas de qualidade e que beneficiem diretamente quem parte de séculos de desvantagem, visando mitigar a desigualdade estrutural da nossa sociedade.

Mas quando pensamos na pandemia que estamos vivendo, que coloca instantaneamente milhões na condição de fome e miséria, temos a oportunidade de ressignificar o assistencialismo como algo não apenas positivo, mas essencial para que a nossa sociedade sobreviva o coronavírus.

A gente se acostumou a comercializar todas as nossas relações. A afirmação que vem sendo martelada na nossa cabeça é que você pode gerar grana a partir de todos os seus bens e de todas as relações. A carona virou uber, a hospedagem solidária virou airbnb e pouco a pouco não são só os almoços que não podem ser mais gratuitos.

A lógica de ter um ganho na relação até em caso de pandemia global precisa ser questionada. Se a ajuda que você consegue dar hoje vem atrelada à geração de uma dívida, você não está sendo solidário, tá sendo explorador. A solidariedade pressupõe entrega sem contrapartida, não um ganho futuro.

O coronavírus está nos oferecendo a chance de resgatar a solidariedade como prática comum, e o assistencialismo como mecanismo social de sobrevivência — para não deixar ninguém pra trás.

A pandemia vai ser dura para todos, e temos que nos preparar. Mas se você tem a possibilidade de ser solidário hoje, seja com pessoas que você conhece (quem limpa sua casa, cuida dos seus filhos, corta seu cabelo, faz a sua unha, vigia a sua rua, etc), seja através de doação para quem está em situações piores que a sua, faça. Ser solidário, transferir renda, tomar medidas assistencialistas — chame como você quiser chamar — vai salvar vidas nesta situação extrema.

E talvez, depois que essa tragédia passar (qualquer que seja o cenário depois) fique a lição para todos nós que a desigualdade do nosso país (independente do corona) é uma situação extrema, na qual o assistencialismo se faz necessário e iminente como se faz neste momento.

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Caio Tendolini
Transborda

Amante de projetos colaborativos que geram impacto positivo na sociedade. @update-politics