Transbordar a cidade em outros modos de vida

jonaya de castro
Transborda
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4 min readMay 5, 2020

Quem aceitaria sair do confinamento de dois meses dentro de um apartamento na maior cidade da América Latina e transbordar 6 meses em um espaço verde, ao ar livre, aprendendo a plantar mandioca e colhendo sua própria comida? Essa proposta pareceria radical para paulistanos se fosse feita alguns meses antes da pandemia, e agora parece irrecusável. A estratégia imediata para achatar a curva do contágio é o isolamento físico, e apesar de todos os aplicativos, conferências de vídeos e mensagens de whatsapp, os que podem ficar em casa se sentem muito sozinhos. A solidão e o silêncio desloca o tempo para o passado e para o futuro. Uma angústia transborda no peito.

O que foi?

O que será?

Estamos numa construção humana desconectada da natureza. Desconectamos das águas, dos rios e da chuva. Cimentamos os rios. Se pensarmos que os rios são as veias de sangue do corpo, cimentamos as veias, bloqueamos o fluxo sanguíneo. Fomentamos a parada cardíaca. (Imagem do post publicada originalmente em @amapolay)

Já sabíamos do equívoco crescimento infinito das cidades. Não é viável vivermos tão perto, apertados em apartamentos, verticalizados com rios cimentados, distantes da água limpa e da produção de alimentos. O vírus e a necessidade de isolamento físico só escancaram o que já sabíamos, mas por dificuldades culturais tínhamos medo de enfrentar. Revelam muito da nossa incapacidade de mudança espontânea. E não dá para voltar atrás: não tem volta, só tem ida.

Se tivermos que diminuir a superpopulação das cidades, quem vai se candidatar a uma mudança cultural? Não podemos pensar numa mudança espacial e de deslocamento sem avaliar a perspectiva cultural. Talvez a mudança que nós urbanos precisamos seja um transbordamento que dê espaço para novos comportamentos, o que vai exigir grandes adaptações.

Assumindo que é a partir do nosso estilo de vida e de consumo que damos origem às causas das mudanças climáticas, não tem como fugir da corresponsabilidade. Nossa cultura é baseada em emissões de gases de efeito estufa, de desmatamento para criação de gado, de desastres tóxicos nos rios, de invasões em florestas que podem nos levar a outras tantas pandemias.

Qual política pública prevê a distribuição sustentável de pessoas sem invadir florestas? Quem são os agentes e modelos dessa redistribuição? Temos aqui um grande desafio que pode tanto aumentar as desigualdades como diminuí-las. Cidade-campo, com planejamento, autonomia de alimentação e saneamento baseado em infra-estruturas naturais podem ser pontos de partida para a construção do imaginário da transição. Quilombos, aldeias, ecovilas, muitos conceitos e práticas que sustentam esse imaginário e já estão disponíveis na história do Brasil. Como absorver uma tradição ou um hábito antes do processo empírico? Aqui está a chave do imaginário da transição. Estamos dispostos a transbordar nossa urbanidade?

Há políticas públicas e iniciativas de grupos em muitos lugares do mundo que apontam para outros possíveis modos de vida. No Brasil, iniciativas como o MST — Movimento Sem Terra, mostram que com autonomia e articulação se pode fazer um uso mais democrático da terra e abastecer o país com uma safra significativa de alimentos orgânicos.

Outras cidades estão repensando todo o seu entendimento de ‘desenvolvimento’, como Amsterdam, que decidiu por inspirar-se na ‘Doughnut economics’ e focar no decrescimento, construindo uma estrutura econômica baseada na redistribuição com incentivos, por exemplo, para fomentar a transformação de uma agricultura industrial para uma regenerativa, baseada na conservação da biodiversidade, sustentável e focada na produção local e vegetariana.

Em Diu, cidade na Índia, 100% de seu abastecimento já é feito por energia solar, criando até excedente. Em relação à mobilidade, são várias as cidades as cidades — dentre elas Milão, Paris, São Francisco, Auckland — que estão aproveitando a ‘aceleração de futuros’ possível na pandemia e adaptando as suas ruas e espaços públicos de modo a priorizar a mobilidade ativa — os deslocamentos a pé e em bicicleta.

Redes de solidariedade cidadãs aparecem com força em vários outros territórios, e organizadas por grupos online, como por exemplo o Frena La Curva — a versão brasileira é o ‘Segura a Onda’, baseados na troca não-financeira.

É possível enxergar em muitas dessas iniciativas o que no Sul Global têm se desenvolvido na direção do ‘Bem Viver’, que projeta um novo ordenamento social, econômico e político a partir da ruptura radical com as noções atuais de desenvolvimento, pautadas pela acumulação de capital e pela superexploração de recursos naturais.

Que essas e outras iniciativas cidadãs e de cidades inspirem essa mudança em direção a modos de vida mais cooperativos, que, se antes era necessária e bem-vinda, agora é urgente.

Texto de Jonaya de Castro e Laura Sobral, pesquisadoras e coautoras do Inspirador.

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jonaya de castro
Transborda

pesquisadora, gestora de projetos de comportamento, ativismo e cultura