O que sabemos sobre a inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho?

Primeiro estudo brasileiro demográfico relacionado a pessoas trans, realizado no município de São Paulo, lança luz sobre nova perspectiva para a análise das demandas de parte da população

Maria Paula Trilha Storti
TRANSINCLUSÃO
10 min readJun 11, 2021

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Arte: Maria Paula Trilha

Por Daniel Chammas, Fernanda Patrian e Maria Paula Trilha

A Prefeitura da cidade de São Paulo fez algo sem precedentes na história do país: um mapeamento com a realidade das pessoas trans no município. Publicado em janeiro de 2021, o estudo, produzido em parceria com o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), contempla uma série de informações necessárias para se inteirar de fato a respeito da realidade situacional de pessoas trans e travestis residentes na região — com informações relativas ao perfil geracional, étnico-racial, classe social, condições de saúde, trabalho, educação e moradia.

O mapeamento é um fato para comemorar, uma vez que a coleta de informações sobre a população trans no Brasil é escassa. Um exemplo: os questionamentos relacionados à identidade de gênero e à orientação sexual são superficiais. A inexistência de dados afeta a sociedade de modo direto, primeiro ao excluir cerca de 2% da população brasileira — como aponta a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) — e segundo, ao dificultar o conhecimento e entendimento da realidade desse grupo.

O mapeamento foi divido em seis partes. São eles: metodologia da pesquisa, perfil sociodemográfico, situação de trabalho e geração de renda, condições de saúde, violência vivenciada e exercício da cidadania. De acordo com o estudo — mais informações nos gráficos a seguir — , a maioria das pessoas trans deixa de se identificar com o sexo biológico durante a infância ou início da adolescência, período em que deixam os muros das casas de suas famílias para abraçar o mundo.

Dados apontam que 34% das mulheres trans e travestis saem de casa com 15 anos ou menos. Entre os motivos, um fato chama atenção: 52% das mulheres trans e travestis são expulsas ou saem do lar por conflitos familiares.

De acordo com Florence Belladona, historiadora e pesquisadora de gênero, o processo de marginalização, iniciado dentro do lar, se expande para uma sociedade transfóbica que coloca as pessoas em posição de objeto de aversão e exclusão.

“A vulnerabilidade social, que começa dentro de casa, não encontra acolhimento dentro das instituições. A sociedade não se organiza para reverter esse quadro, torna-se uma naturalização. Muitas pessoas enxergam travestis, por exemplo, como sinônimo de sexo e prostituição, de vulnerabilidade. Isso é um preconceito que perpassa nossa organização, inclusive nesses mercados de trabalho”, relata a mulher trans, historiadora e pesquisadora de gênero, Florence Belladona

“Quando colocamos currículos ou quando entramos em uma loja para conversar, dar uma entrevista, ou até mesmo para comprar algo, as pessoas nos acompanham com os olhos.” conta Florence.

Nesse sentido, o mercado de trabalho se torna um terreno árido para grande parte da comunidade trans. “Esses processos de marginalização acontecem e são compartilhados por pessoas trans levando em consideração alguns graus de transfobia, que se organizam a partir da sociedade. Por isso estou desempregada, trabalhando como escritora freelancer, apesar de eu ter essas qualificações, ainda é muito difícil encontrar locais e áreas profissionais transacolhedoras” complementou Florence.

Relegadas a vínculos empregatícios informais, os dados apontam que apenas 13% das travestis e 24% das mulheres trans atuam formalmente no mercado de trabalho em São Paulo. Em contrapartida, 49% dos homens trans possuem um vínculo de emprego formal.

Guilherme, homem trans que trabalhava como analista financeiro, conta que se encaixou mais facilmente na cidade: “São Paulo abriu muitas portas para mim, eu tive muita sorte e me dediquei bastante para chegar onde eu cheguei”.

Já Paola Xavier, mulher trans, artista e ativista, teve outra experiência ao chegar na metrópole: “Vim pra São Paulo achando que seria uma cidade grande que vai te acolher e o preconceito não vai existir, que aqui ele é muito menor, e acabei vindo para cá totalmente enganada, porque aqui foi onde eu passei os piores momentos de intolerância e preconceito, sabe? Foi uma cidade muito tapa na cara”.

A diferença de oportunidades entre mulheres e homens trans é significativa. Dentre os motivos, na opinião de Guilherme, estão as questões da passabilidade — ser percebido pela sociedade como pertencente ao gênero que se identifica — e da fetichização do corpo das mulheres trans: “Para um homem trans é muito mais fácil se passar como homem do que para uma mulher trans. Ser homem é mais fácil, te abre mais portas. A mulher trans ainda é vista como um enfeite, algo como um fetiche.”

A fala de Guilherme é reforçada por Florence: “Quando se fala do privilégio da masculinidade é interessante focar que vamos nos deparar com quadros profissionais em que mulheres ganham muito menos que homens, e isso mulheres brancas, porque as negras ganham ainda muito menos. Esses processos de vulnerabilidade e marginalização das feminilidades são interseccionais. Dentro dessas interseccionalidades as masculinidades acabam sendo privilegiadas porque nós vivemos em uma sociedade falocêntrica patriarcal onde a feminilidade é vista como algo ruim e danosa.”

Ao observar as ocupações das pessoas que participaram do mapeamento, é marcante a concentração de mulheres trans e, especialmente, de travestis no mercado sexual. No caso das mulheres trans, 34% declararam ter a prostituição como principal ocupação, enquanto esse número cresce para 46% com as travestis.

Entre as diversas razões para isso, está o grande percentual de mulheres trans e travestis que saem de casa ainda na adolescência e não têm a possibilidade de completar o ensino médio. “A prostituição é um processo de trabalho muito mais simplificado a partir do trabalho sexual. Óbvio, a gente volta para a questão da vulnerabilidade, a prostituição é um trabalho que pode dar algum dinheiro mas que muitas vezes está em volta de processos muitos doloridos para pessoas que foram colocadas à rua da amargura de casa, inclusive dos familiares muito cedo.”, explica Florence.

Paola ressalta a recorrência da presença de travestis e mulheres trans no mercado sexual se dá por não possuírem acesso à educação, restando apenas a venda dos corpos:

“O Brasil é o país que mais mata mulheres trans e, ao mesmo tempo, é o país que mais consome pornografia transexual. É muito louco isso, então ali tem um mercado. Elas dizem ‘vou vender meu corpo porque eu preciso sobreviver’. E aí vai virando essa bola de neve, pois o dinheiro que elas ganham vai para melhorar o corpo aqui e ali, e acaba não indo para esses investimentos em educação e que levariam à ascensão intelectual das pessoas trans na sociedade.”

Além da questão da escolaridade, o mapeamento da população trans no município de São Paulo também questionou as pessoas entrevistadas sobre o que lhes faltava para atuar na ocupação profissional desejada por elas. O motivo principal, entre pessoas de todas as identidades de gênero, foi dinheiro para investir. Em segundo lugar, está a necessidade de realização de cursos, empecilho para 32% das travestis, 29% das mulheres trans e pessoas não binárias e 27% dos homens trans conseguirem a profissão que almejam.

Isso se relaciona com as exigências de experiências prévias e de um currículo bem estruturado pelas empresas na hora de contratar, bloqueando a entrada de várias pessoas trans no mercado de trabalho. Guilherme relembra que “A gente não pode falar sobre essas vagas e esquecer que são pessoas que enfrentam dificuldades no dia a dia, nem todo mundo conseguiu fazer uma faculdade ou conseguiu concluir um ensino médio. As empresas pedem coisas absurdas nessas vagas para uma galera que tá num grau de risco muito grande em tudo, é vulnerável em tudo. A gente não sabe se vai sair para escola e se vai voltar, conheço tanta gente que parou de estudar porque sofre bullying e tudo mais. As empresas disponibilizam essas vagas, mas fazem exigências que não existem para pessoas que estão ali precisando de emprego. Eu entendo que tem uma galera trans que é extraordinária, tem faculdade e diplomas, mas a gente tem que falar dessa minoria social também.”

A artista e ativista Paola concorda: “Falta empatia em entender essa comunidade. Saber que precisamos, somos cidadãs de bem, que precisamos sobreviver, pagar conta, comida e etc. E ter essa sensibilidade de que não são pessoas que vem da academia, não são pessoas formadas, que tem essa categoria tão exigida no mercado, mas são pessoas dispostas a ter tudo isso. Eu acho que se você dar uma oportunidade, a partir daquele momento a pessoa vai construindo esses tópicos todos exigidos no mercado. Falta isso, falta essa conscientização.”

Ainda não existem políticas governamentais específicas que impulsionem as pessoas trans no mercado de trabalho no Brasil. Portanto, recai sobre as empresas e organizações privadas estabelecer vagas exclusivas para pessoas trans ou não, mas que ainda perpassam por todas as exigências curriculares exorbitantes, ainda dificultando a inserção dessa população no universo trabalhista formal.

De acordo com Florence, estudiosa de gênero, “é um processo de recusa e não entendimento, de se recusar a entender como esses privilégios operam, porque quando a empresa compreende que ela tem um papel social dentro do capitalismo ela compreende que precisa agir em prol ou conjuntamente a pessoas vulnerabilizadas e aí é muito mais fácil você tapar os olhos, colocar um tapete em cima e dizer “não tenho nada a ver com isso” do que uma empresa agir como agente transformadora daquela sociedade em que está envolta. E acho que é um processo de medo muito profundo desse capitalismo que compreende o lucro imediato e não compreende a responsabilidade social. […] Esse processo de vulnerabilização precisa ser resolvido por via do capitalismo também, já que estamos inseridas numa sociedade capitalista. Tudo isso envolve demandas sociais, que envolvem dinheiro.”

Arte: Maria Paula Trilha

O Mês do Orgulho LGBTQIA+, comemorado em junho, também é um momento delicado para a comunidade. Embora as empresas aparentem estar mais preocupadas com o assunto, muitas delas não possuem ações realmente transformadoras das realidades transgêneras. Em diversos casos, as empresas não fomentam de forma pragmática a ascensão profissional de pessoas trans, e se utilizam do Mês do Orgulho para criar essa aparente simpatização com o movimento LGBTQIA+.

É justamente o que Paola conclui: “É muito louco quando a gente pensa em tudo isso porque eu vejo muito até hoje as empresas, principalmente no Mês do Orgulho LGBT, dizendo ‘Ah vou contratar, minha empresa tem diversidade’. Que diversidade que tem a sua empresa? Porque eu vejo muitas pessoas LGBTQIA+ ali sem nenhuma grande participação. Então você está fazendo só para cumprir uma cota, para ficar bonita na comunicação? Precisamos de participação dessas pessoas, principalmente das pessoas trans. E se possível, deem essa formação. Eu peço muito isso para as empresas, deem formação à essas pessoas que não tiveram acesso. Elas não tiveram acesso porque esse acesso é nulo na nossa vida, isso não existe. A gente vive à margem da margem.”

A raiz do problema é muito mais profunda, no entanto, que apenas uma política pública ou privada isolada. É uma questão de naturalização dos corpos trans na vivência cotidiana: “acho é uma questão de tensão política, se uma pessoa cis passa por instituições em sua vida inteira e não questiona a falta de pessoas trans, as empresas nunca farão nada para naturalizá-las. Esse processo de naturalização passa por todos, todos têm influência nisso, se uma pessoa compreende e tensiona, daqui a pouco todo mundo está sabendo e compreendendo. Porque vai muito nessa linha de naturalizar algo que as pessoas não compreendem e não veem. Ninguém vê uma pessoa trans no balcão do mercado, em uma empresa ou até na rua durante o dia — o qual é pra mim o mais revelador e absurdo. [..] Para incluir, é realmente necessário que as pessoas cis tensionem os espaços de poder e os ambientes que têm acesso para que, cada vez mais, indivíduos trans sejam inseridos” complementa a historiadora Florence.

“Então precisamos naturalizar os nossos corpos nos espaços. A minha estratégia de vida sempre foi essa: eu nunca impus nada a ninguém, a única coisa que você precisa fazer é me respeitar, assim como eu estou te respeitando. Foi o que eu sempre fiz nos espaços como forma de estratégia e sobrevivência”, relata Paola Xavier

Ser uma pessoa trans no Brasil é enfrentar uma série de dificuldades que pessoas cis não enfrentam, particularmente na esfera profissional. Frente aos obstáculos impostos pela sociedade e pelo mercado, “motivação e exemplo” dentro das empresas também são grandes inspirações para outras pessoas trans vislumbrarem a possibilidade de se inserir no mercado de trabalho, como comenta Guilherme: “Seria maravilhoso hoje encontrar uma pessoa trans dizendo ‘estou trabalhando com tal coisa, tenho muito a crescer dentro dessa empresa pois eles confiam no meu trabalho e não me julgam por quem eu sou’. Acho que ia ser bem bacana ter uma referência dessa no nosso meio. Você precisa dar a oportunidade de conhecer e desmarginalizar essa galera que está sempre na luta, também precisa comer, tem sonhos, quer estudar, ser patrão um dia — que é um sonho de quase todo brasileiro -, acho que é isso, você dar oportunidade para conhecer a galera, porque é só conhecendo que você vai saber o que é de verdade, como funciona de verdade, sabe. Não vir com preconceito, com coisas já impostas pela sociedade, a gente tem que deixar essa malinha que não é nossa lá no lugarzinho dela e dar a oportunidade para conhecer o novo, o diferente, respeitar a vida das pessoas. E respeitar mesmo.”

Arte: Maria Paula Trilha

Daniel Chammas, Fernanda Patrian e Maria Paula Trilha são alunes do 3° semestre de jornalismo da FAAP — Faculdade Armando Alvares Penteado.

*Essa reportagem foi desenvolvida para a matéria Pesquisa em Jornalismo ministrada pelo professor Rafael Sbarai.

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Estudante de jornalismo que usa essa plataforma para postar os textos favoritos produzidos na faculdade. ;)