Milícia e transporte: um caos evitável
Desordem e medo refletem a presença de autoridades autoproclamadas
Os poucos moradores que aceitam falar optam pelo anonimato e escolhem ambientes fechados. E ao longo da entrevista, os olhos atentam-se aos pequenos detalhes — como numa procura por movimentos suspeitos. As vozes — que naturalmente diminuem quando o assunto parece perigoso — precisam ser modificadas digitalmente para esconder a identidade.
Medo é a palavra que predomina entre aqueles que não falam. E define o jovem Artur*, como será chamado, que tem como única função narrar sua ida à escola, na Zona Norte. Faz parte da conversa com a Amanda*, graduanda em jornalismo, que sofre com a falta de segurança das vans, na Zona Oeste. E modifica a rotina de trabalho do jornalista Christiano Pinho, identificado apenas por ter aprendido a lidar com a insegurança pelas Zonas da cidade.
Em comum, apenas a presença intimidadora das milícias no Rio de Janeiro e a dificuldade de locomover-se de forma segura.
Geralmente apontados como danosos à segurança pública, os grupos formados, à princípio, por militares, ex-militares, bombeiros e agentes penitenciários revelam-se potencialmente destrutivos para diversos setores da sociedade. E a tragédia na comunidade da Muzema, na Zona Oeste, que já contabiliza vinte e quatros mortos, ressaltou esses outros aspectos preocupantes. O transporte e a mobilidade urbana não fogem a regra.
Considerado o pior transporte público do mundo devido ao tempo de deslocamento, a precária cobertura das regiões e aos preços que não correspondem aos serviços, a ‘cidade maravilhosa’ tem como agravante a presença histórica de autoridades autoproclamadas.
As leis paralelas impostas aos moradores (como a exigência do uso obrigatório dos serviços básicos clandestinos, como luz, água e mobilidade) junto com a omissão de líderes políticos criaram o cenário ideal. Como consequência: a proliferação de vans irregulares, o “loteamento” de assentos no transporte e a venda do direito de mototáxis circularem. E, até mesmo, venda de drogas e de mercadorias provenientes do roubo de cargas no BRT, além dos recorrentes assaltos dentro dos coletivos — práticas que eram condenadas pelos grupos paramilitares.
— A van é licenciada, mas anda lotada. Não tem gratuidade. Os motoristas têm ‘contrato’ com os milicianos para poderem rodar. E tem as “lotadas”, que são carros de passeios, carro normal mesmo. E eles passam em frente ao Batalhão. Não tem como eles não saberem. E a gente ainda vê eles pegando umas ‘coisas’, maconha, essas coisas — revela Amanda.
— Em coletivas e posicionamentos que já presenciei, os próprios órgãos públicos já afirmam que em breve não vai ter mais a [diferença de] denominação [entre] “milícia” e “traficantes” — relembra o jornalista Christiano Pinho, acostumado a cobrir pautas relacionadas com o ‘Pacote Anticrime’, de Sérgio Moro.
Criadas por militares que prometiam à população levar segurança aos locais onde as Polícias e as políticas de segurança não foram eficazes, o termo ‘milícia’ apenas omite organizações criminosas poderosas que aterrorizam mais de dois milhões de pessoas.
— Eu acho que tenho mais medo da milícia porque a gente não sabe até onde pode confiar ou não. Na verdade, eles estão indo muito mais contra a gente do que a favor, né? — analisa Amanda.
ENTRE A AUSÊNCIA DOS POLÍTICOS E A PRESENÇA DOS MILICIANOS
O medo é o sentimento predominante nas áreas controladas por esses grupos criminosos. Moradores optam pelo silêncio e pelo transporte irregular por receio de “punições” e por saberem que milicianos conhecidos como “exterminadores” foram eleitos recentemente. Uma “legalização” dos crimes cometidos e um agravamento da descredibilidade e da ausência dos poderes públicos, como lamentou Amanda.
Estudantes escolhem a caminhada ao invés da denúncia aos órgãos responsáveis, como a Secretaria Estadual de Transporte, “por não quererem falar sobre o assunto”, como confidenciou Artur. E os jornalistas convivem com a possibilidade de retaliações porque faz parte do trabalho.
— Sinto medo porque já fiz [a cobertura jornalística de] muita operação para prender miliciano. Como a apreensão de dezenas de vans, em Santa Cruz, que é uma área completamente dominada pela milícia. Você vê que os próprios moradores fazem retaliação à polícia. Porque eles enxergam como “vocês estão tirando a van que me leva pro trabalho”. Você sente a hostilidade de todo mundo ali. Nessas operações é que eu realmente sinto medo: na hora que tenho que pegar o meu celular ‘pra’ fazer uma imagem [dos milicianos algemados] pro site ou redes sociais — conta o jornalista.
É através do medo que o transporte irregular é desenvolvido em mais de um terço da cidade. Chantagens, ameaças e execuções silenciam aqueles que dependem do transporte público seja para locomover-se seja para encontrar uma fonte de renda em meio a crise do desemprego.
As taxas de circulação para trabalhar com as vans e as motos pelas comunidades são altas e obrigatórias. Os “cobradores” das dívidas são conhecidos como “matadores”, “exterminadores”, “mata-rindo” ou “batmans”. Apelidos que não deixam dúvida quanto às sentenças e é possível compreender o silêncio.
Um mototaxista, que cobra em média R$3 por uma corrida comum, paga quinzenalmente R$30 pelo direito de trabalhar (fora todas as demais “tarifas” da região como água, luz, gás, internet, porcentagem sobre a venda de imóveis), segundo dados do Ministério Público. Como consequência é possível perceber a falta de capacetes e equipamentos de segurança e os caminhos arriscados para encurtar as viagens e ganhar pela quantidade.
As vans pagam entre R$350 e R$850 por semana, garantindo um lucro de R$27 milhões de reais por ano. E acarretando em rotas alternativas, descumprimento das gratuidades, opressão aos motoristas dos ônibus locais e uma viagem insegura para os moradores.
— As vans são necessárias, mas do jeito que elas circulam não é necessário. — analisa a estudante.
Em tempos de crise, é um caos evitável que dispara as desigualdades sociais, retira direitos dos cidadãos e descredibiliza e fragiliza os poderes públicos. Além de levantar questionamentos quanto aos interesses pessoais que justifiquem a omissão, e em alguns casos participação, de políticos que abertamente já defenderam a legalização das milícias. Mas que não fiscalizam as condições da mobilidade urbana como prioridade.
— É ruim pra nossa sociedade porque o transporte que não é legalizado não paga imposto diretamente. Se fosse, teria a obrigatoriedade de ter local seguro, por exemplo. Te deixa completamente desamparado, em todos os quesitos. Esse ponto [da região], assim como boa parte do Estado é carente em cultura e lazer, então você precisa pegar no mínimo dois ou três transporte. E afeta muito o acesso à escola, a pessoa que está indo ao trabalho, que são mais velhas — lamenta Artur.
O LEGADO DO CAOS
A chegada dos eventos esportivos grandiosos ao Rio modificou a paisagem e a locomoção pela cidade. Ruas foram alargadas, comércios vendidos compulsoriamente e novas sinalizações para a passagem do “transporte rápido por ônibus” (BRT). O Metrô ganhou novas estações e alto-falantes que “comemoravam” os pontos turísticos. A promessa era “aprimorar e desafogar a cidade”, como classificou o então prefeito Eduardo Paes, para a chegada dos ouros olímpicos e a sonhada taça do mundo na Copa.
O progresso prometido foi ofuscado pela agilidade e a organização dos criminosos ao transformar estações do BRT e do Metrô em pontos estratégicos de revenda de mercadorias roubadas e de drogas. Segundo investigação do Ministério Público Estadual, apenas seis anos após a inauguração, a milícia já controlava 21 estações do BRT na TransOeste, os demais corredores não foram citados no documento.
— Você tem estações em que eles (milicianos) “loteiam” assentos com taxas ou impõe que um número “x” de pessoas vai poder utilizar aqueles articulados. Porque as pessoas têm que usar as vans — aponta Christiano, com base nas denúncias que recebe de moradores através das plataformas da BandNews.
A precariedade no transporte público nas regiões mais periféricas foi agravada com a extinção de linhas de ônibus que cederam espaço para vans que deveriam ser legalizadas. Eduardo Paes, na época, nomeou de “racionalização”. Entretanto, apesar da identificação visual da Prefeitura e da padronização de assentos e das placas, muitas vans circulam de forma precária. Os trajetos modificam de acordo com a presença da fiscalização, os horários são imprevisíveis, os validadores de RioCard e Bilhete Único são raridades e as gratuidades não são respeitadas.
— O único acesso que eu tenho é por mototáxi, van ou kombi e não têm RioCard. E eu, como estudante da rede estadual, tenho direito ao RioCard, mas, como não tem o leitor, não tenho direito à gratuidade. Eles não aceitam as de estudante. Aceitam as de idoso, mas mesmo assim com muita dificuldade. E isso afeta muito o meu deslocamento à escola. Preciso ou gastar o meu dinheiro ou ir andando. Ou tenho prejuízo ou perco meia hora a mais — relata Artur.
O QUE DIZEM AS AUTORIDADES
Procurados para traçar a relação entre a milícia e o transporte público, a Secretaria Estadual de Transporte não respondeu aos questionamentos. Sobre a falta de validadores nas regiões informadas por Artur*, Gabriela* e Christiano Pinho afirmou que “as vans em questão fazem parte do Serviço de Transporte Público Comunitário, que não prevê a instalação de validadores”.
Ao serem informados sobre a alteração do percurso, o que as descaracterizariam como parte do Serviço de Transporte Público Comunitário, informaram que “enviariam fiscalização aos locais”. Os moradores retornaram o contato e afirmaram que houve fiscalização, mas que durou apenas dois dias. Os próprios motoristas das vans, em conversas informais, apontaram que haveria a possibilidade da instalação de validadores de RioCard e Bilhete Único. Entretanto, até o fechamento desta matéria nenhuma van havia recebido os validadores.