O papel do fretamento colaborativo na efetividade do direito ao transporte

Buser Brasil
Transporte Colaborativo
9 min readMar 9, 2021

Ao invés do que pregam alguns empresários do setor regular, o fretamento, quando operado através de plataformas inteligentes, vem para complementar a acessibilidade da população.

Ao longo dos últimos oito anos os serviços interestaduais de transporte de passageiros sofreram algumas modificações. Segundo dados da ANTT, entre 2013 e 2019 o número de empresas distintas operando o fretamento aumentou 58% enquanto o número de empresas distintas operando o serviço regular reduziu 28%. Esses dados, apresentados isoladamente, não mostram a dimensão das variações do transporte interestadual brasileiro durante esse período.

Observando o total anual de passageiros transportados, tanto para os serviços rodoviários por fretamento e regular, quanto para o serviço aéreo, é possível compreender melhor a dinâmica dos passageiros se deslocando entre os estados brasileiros. A figura a seguir apresenta as somatórias de passageiros para cada ano e tipo de serviço, contabilizando apenas viagens interestaduais e, no caso dos rodoviários, descartando serviços semiurbanos.

Evolução dos passageiros transportados por serviços interestaduais

Nota-se que enquanto o serviço rodoviário regular encolheu 28%, perdendo cerca de 16 milhões de passageiros anuais entre 2013 e 2019, o serviço de fretamento aumentou em 4% — com cerca de 500 mil passageiros a mais — e o serviço aéreo doméstico teve aumento de 5,3 milhões, um acréscimo de cerca de 6%.

Estas variações, porém, ocorreram em um contexto de crise econômica com queda da renda per capita. Portanto, a queda no volume de passageiros do serviço rodoviário regular não pode ser explicada pela migração entre serviços, principalmente entre os rodoviários. Ou seja, outros fatores como a falta de competitividade ou a escassez no atendimento podem estar envolvidos.

Analisando inicialmente a falta de competitividade nos serviços regulares, dados da ANTT, em resposta ao Ofício nº 6.872/2019 do Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando informações no âmbito da ADI nº 6.270 sobre o mercado de transporte interestadual, apontam para um alto grau de concentração no referido mercado. Aproximadamente 66% dos pares de origem e destino interestaduais são operados por apenas uma empresa, 26% são operados por duas empresas e apenas 8% são operados por mais de duas empresas.

Se observarmos os dados operacionais da ANTT, entre 2013 e 2019 a proporção de pares de origens e destinos com apenas uma empresa (CNPJs distintos) aumentou 3% enquanto a proporção dos pares com duas ou mais empresas reduziu 11%. Isso sem levar em conta a existência de grupos econômicos que detêm diversos CNPJs, com participação societária comum. Vale lembrar que antes da Deliberação 955-ANTT, de 22/10/2019, e do Decreto 10.157, de 04/12/2019, de Estímulo ao TRIIP, não foram autorizadas operações de novos mercados. Com a mudança do regime de outorga dos serviços autorizada pela Lei 12.966/2014, que passou de permissão para autorização, o período de transição entre regimes resultou, até 2019, no abandono de linhas exploradas pelas antigas permissionárias e no aumento potencial de mercados desatendidos.

Analisando a capilaridade e concentração do modo rodoviário do transporte regular de passageiros, segundo dados da ANTT, desde 2014, somente 4% dos processos para autorização de operação de linhas regulares foram deferidos, demonstrando certa inércia do órgão regulador. Os deferimentos dizem respeito a trinta empresas distintas e apenas 33% delas são novas entrantes.

No mapa da figura a seguir, disponibilizado pela ANTT, é possível ver as diferenças da operação interestadual entre 2019 e 2020 (para o ano de 2020, foram incluídos todos os pedidos de mercados aprovados naquele ano).

Houve um aumento no atendimento, que se consideradas as populações dos municípios atendidos, passaram de 157 milhões de habitantes para 159,5 milhões. Apesar da melhoria, existem ainda mais de 52 milhões de brasileiros não atendidos pelos sistemas regulares de transporte rodoviário.

Evolução dos passageiros transportados por serviços interestaduais

Nota-se, portanto, que no âmbito interestadual não há qualquer evidência de que esteja havendo migração de usuários entre os tipos de transporte rodoviário, mas tudo indica que eles trabalham de forma complementar. A redução do número de passageiros nos serviços regulares talvez esteja ligada, dentre outros motivos, à falta de competitividade do setor.

Análises estaduais

Obviamente, o atendimento de pequenas cidades do interior de um estado não necessariamente precisa ser conectado a municípios de outros estados. Por esse motivo, torna-se importante analisar o transporte rodoviário regular intermunicipal. A dificuldade dessa análise está na falta de dados e, quando existentes, na falta de padronização dos dados.

Foram obtidos, através de pedidos baseados na Lei de Acesso à Informação (LAI), dados de viagens e passageiros nos serviços intermunicipais regulares dos estados de São Paulo e Minas Gerais, as duas principais unidades da federação em termos de passageiros do transporte rodoviário.

Em São Paulo, os dados obtidos por LAI foram enviados pela ARTESP, a agência reguladora do transporte intermunicipal do estado. Nos dados, o padrão do envio foi de quantidade de viagens e passageiros por pares de municípios, por sentido (ida e volta). Um dos campos da base de dados é o tipo de serviço, onde constavam “SUBURBANO” e “RODOVIÁRIO”. Para essa análise, levou-se em consideração apenas os serviços rodoviários. Por fim, notou-se algumas linhas com descrições envolvendo mais de um município destino. Nesses casos, utilizou-se nas análises apenas o destino final. A figura a seguir apresenta o atendimento do estado de São Paulo para o ano de 2019, agrupado por passageiros no município de origem da viagem.

Atendimento do serviço rodoviário intermunicipal em São Paulo em 2019

O serviço regular intermunicipal apresentado tem função complementar ao serviço interestadual da ANTT. Sobrepondo os dois atendimentos, e levando em consideração que nos interestaduais também foram retiradas da análise as viagens de serviços “SEMI-URBANO”, nota-se que o Estado de São Paulo conta com mais de 200 municípios sem atendimento rodoviário regular, e mais de 100 municípios onde o atendimento é feito com média de passageiros-dia menor do que 46 pessoas — lotação de um ônibus rodoviário padrão. Aparentemente, o serviço regular não está sendo capaz de dar acesso ao transporte coletivo rodoviário a todos os paulistas.

Em Minas Gerais, os dados obtidos por LAI foram enviados pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (SEINFRA). Nos dados, o padrão do envio foi de quantidade de viagens e passageiros por pares de municípios, agrupadas nos dois sentidos (ida e volta juntos). Para essa análise, adotou-se metade em cada sentido. Não há especificação de linhas suburbanas, logo tratou-se todas como rodoviárias. A figura a seguir apresenta o atendimento do estado de Minas Gerais para o ano de 2018, agrupado por passageiros no município de origem da viagem.

Atendimento do serviço rodoviário intermunicipal em Minas Gerais em 2018

Sobrepondo o atendimento apresentado ao atendimento interestadual da ANTT, e levando em consideração que nos interestaduais foram retiradas da análise as viagens de serviços “SEMI-URBANO”, nota-se que o Estado de Minas Gerais conta com mais de 200 municípios sem atendimento rodoviário regular, e cerca de 260 municípios onde o atendimento é feito com média de passageiros-dia menor do que 46 pessoas — lotação de um ônibus rodoviário padrão.

Fica claro que o serviço regular sozinho não será capaz de dar acesso ao transporte coletivo rodoviário a todas as pessoas. E mesmo que haja um aumento forçado de linhas regulares em todos os municípios, haverão muitos casos onde a oferta em horário e dias fixos não serão suficientes para atender as demandas específicas dos cidadãos.

A importância do fretamento colaborativo para a efetividade do transporte como direito social

Desde 2015, com a promulgação da Emenda Constitucional 50, o transporte passou a figurar no rol dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. Significa dizer que deve o Estado garanti-lo direta ou indiretamente à população, mediante emprego do aparato estatal ou da utilização de recursos de terceiros, a despeito do regime jurídico mais adequado à sua efetivação, se público ou privado.

Se o transporte de passageiros, na condição de direito social fundamental, já não é atividade de monopólio estatal, pois foge do rol taxativo do art. 177 da Constituição, e ainda está definido como uma atividade econômica vinculada aos Princípios Gerais da Ordem Econômica do art. 170, também da Constituição Federal, cabe ao Estado tutelar a prestação do transporte de natureza jurídica privada em favor da população e da expansão da cobertura dos modais rodoviários de transporte de passageiros, como política pública.

Observando os dados disponíveis e obtidos através da Lei de Acesso à Informação, fica evidente que existe uma necessidade real de complementar o acesso dos brasileiros com serviços além do modelo tradicional regular, cujo sistema, como visto, não é suficiente e viável para atender a todo o território nacional. A atuação do privado, por conseguinte, é a forma mais eficiente e menos onerosa para a expansão do transporte coletivo de passageiros, pela flexibilidade oferecida a um custo menor, em decorrência da redução da ociosidade de assentos disponíveis.

Essa complementaridade ou participação do regime privado em favor do usuário e da maior capilarização dos serviços não poderia ser imaginada exclusivamente com o fretamento rodoviário tradicional, com milhares de pequenos empresários sem comunicação entre si, e planejando viagens de maneira analógica e limitada à pequenas “excursões”.

Com a chegada de plataformas tecnológicas capazes de organizar esses pequenos empresários através de adequação das múltiplas demandas às ofertas existentes, e com potencial de atingir mais usuários através do marketing digital e centralizado — com a redução de custos de transação, de logística e de operação, com a possibilidade do transporte em multitrechos de mais de um grupo de passageiros por viagem e tripulação — será possível tornar o transporte rodoviário uma realidade para todos os municípios do Brasil.

O fretamento colaborativo, como vem sendo popularmente chamada a intermediação do transporte coletivo privado por plataformas de tecnologia entre grupos de pessoas e transportadoras autorizadas e credenciadas juntos às autoridades competentes, ganha roupagem distinta do modelo de fretamento tradicional, na medida em que algumas viagens intermediadas pelo aplicativo coincidem, graças ao ponto de equilíbrio entre oferta e demanda identificada pelo aplicativo, ainda que não configure a regularidade e continuidade do transporte, e a oferta do serviço privado ganhe visibilidade, sem configurar venda aberta de passagens.

Contudo, pela lógica que o difere do sistema público de transporte de passageiros, ou seja, da não regularidade, não universalidade e não continuidade do transporte, há itinerários e demandas que são atendidas pelo transporte privado, mas não justificam atendimento pelo transporte público.

Veja o que ocorre na prática em virtude dos facilitadores trazidos pela tecnologia no fretamento colaborativo: os usuários cadastrados podem escolher qualquer destino nacional de sua conveniência, a partir de seu ponto declarado de embarque. Escolhido o local de destino e data pretendida da viagem, o sistema selecionará se há empresas fretadoras cadastradas que ofereçam esse destino. Em havendo o match, é aberta a possibilidade do usuário integrar um grupo de pessoas já existente ou iniciar, a partir de si, um novo grupo de pessoas para a viagem que, a critério da transportadora, poderá se confirmar ou não, de acordo com a demanda e os custos do transporte rateados entre os usuários. O sistema, obviamente dotado de padrões de inteligência artificial, é um importante indicador de demanda não atendida. O que isso significa? Que a depender de uma quantidade de buscas por um trecho, as transportadoras são estimuladas a ofertar serviços para novas localidades, aumentando a oferta do transporte para o território nacional ou estadual. Disso surgem trechos que sequer as transportadoras do regime regular oferecem. Por exemplo, no Estado de São Paulo: Sorocaba/São José do Rio Preto, Ribeirão Preto/Botucatu, Sorocaba/Catanduva, entre outros, intermediados pela Buser e não cobertos pelo transporte público.

Fretamento colaborativo operado pela plataforma Buser

O fretamento colaborativo tem como característica a elasticidade, pois a oferta de serviços pelas empresas cadastradas na plataforma responde na mesma proporção e velocidade à demanda por transporte pelos usuários. Portanto, o argumento de que o fretamento colaborativo canibaliza o transporte regular de linhas, por atuar exclusivamente nos itinerários economicamente vantajosos ao transporte regular, não é verdade e não se comprova pelos dados aqui demonstrados.

Vale lembrar que a lógica do que é vantajoso para o fretamento colaborativo, de acordo com a elasticidade da demanda e racionalidade de custos de logística, não é a mesma lógica do que é vantajoso para o operador de linha de transporte regular, obrigado a manter, pelo prazo de 12 meses, a operação de pares de origem e destino com a frequência mínima semanal estabelecida pelo agente regulador.

Se tratam de sistemas distintos, sob regimes e características distintas e que atendem a demandas e perfis diferentes, cuja coexistência harmoniosa deve ser estimulada em benefício à coletividade. Para o usuário não interessa saber se a empresa que o transportou atua sob regime público ou privado. O que lhe interessa é que o transporte está sendo prestado com qualidade, segurança e a preço justo.

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A Buser é uma plataforma que faz intermediação de viagens de ônibus, conectando pessoas interessadas em viajar e empresas de fretamento.