Análise de Handmaid’s Tale e seu figurino como elemento político

Vanessa Fogaço
Trend-In
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6 min readNov 11, 2018
Manifestantes em protesto na Argentina, 2018, sobre a descriminalização do aborto. Fonte: NY Times.

Não ter assistido a série não implica na leitura deste artigo, uma vez que busca tratar dos temas em linhas gerais, basicamente sem o uso de spoilers específicos.

Em um futuro muito próximo, no qual mulheres férteis são levadas a verdadeiros campos de concentração para serem 'treinadas a procriar', segundo “distorções bíblicas” - em uma sociedade em que a fertilidade é basicamente nula — e a obedecer dentro dos lares dos comandantes da extrema onda ultra religiosa de direita, servindo de intermédio nas ‘famílias’ como um “útero ambulante”. Esse é um breve resumo do que se passa dentro de Handmaid’s Tale, a série baseada no livro de mesmo título da consagrada autora canadense Margaret Atwood, publicado em 1985 e ambientada, na atual série, em um Estados Unidos completamente submerso na distopia. A série é exibida pelo serviço de streaming Hulu e no Brasil é transmitida pelo canal Paramount.

Eu diria que, em linhas gerais, qualquer semelhança com a recente história brasileira, e porque não, mundial, não é coincidência. O ciclo conservador volta e meia nos assola na recente história politica. Em Handmaid’s Tale ele está vivo e, para muitos, além do concebível. Junte todas as distopias que você conhece, especialmente no tocante a mulher, que talvez nem assim você chegue perto do que Margaret Atwood nos trouxe. Porém, leia sobre conflitos mundiais e atuais sobre a situação de mulheres na China, na Faixa de Gaza, nas periferias mundiais, sobre casos de abusos sexuais infelizmente tão latentes, lembre daquela sua amiga que viveu um relacionamento abusivo. É esse olhar feminino sensível e atual, que a autora nos inflige.

E é esse mesmo olhar que nos traz detalhadamente uma descrição do guarda-roupa feminino dentro desta narrativa, e, que foi usado na cocriação e desenvolvimento da atual série, trazendo cores mínimas como verde, azul, vermelho e marrom, dentro de um universo cinza em todos os âmbitos possíveis.

Da esquerda para a direita: representação geral do figurino da esposa, Serena Joy Waterford, interpretada pela atriz Yvonne Strahovski ; Figurino da chamada ‘tia’, aqui ‘Aunt Lydia’ interpretada por Ann Dowd; Figurino da Aia, Emily, interpretada por Alexis Bledel. Fonte: Hulu.

A princípio, muito do que se vê na série, principalmente no tocante as aias, foi baseado no traje puritano, popular na época colonial das colônias da Nova Inglaterra (começo de 1600), em seus recém chegados habitantes em busca do novo mundo. São roupas que visam o modesto e a negar a opulência, o orgulho e o pecado, em oposição ao que recebiam visualmente das classes mais abastadas e da corte real. Na colônia de Massachussetts, por exemplo, existiam regras sobre como se vestir: nada opulento, tecidos bordados e costurados com ouro e prata, seda, cintos, tecidos nobres, entre outros. A quebra dessas regras acabavam muitas vezes na corte judicial, com o pagamento de multas e até prisão.

Traje puritano feminino interpretado no séc. XIX

O traje das aias então acaba seguindo essa lógica e é composto de um conjunto para afazeres fora de casa, com capa e chapéu, vestido longo sem muita definição e gorro mais leve, cobrindo os cabelos para uso nas dependências internas, e uma camisola branca e simples para dormir. Tudo isso usado com botas rústicas, geralmente em tom marrom e meias, propositalmente 'feias'.

O chapéu branco que adorna a cabeça é uma extensão do ‘gorro’ puritano, com uma leitura moderna e minimalista e que prevê abas longas nas laterais, caracterizando uma espécie de viseira, para que a aia não desviasse de seu caminho e seus afazeres. A capa possui um capuz e é longa, o que aumenta a questão da cobertura da feminilidade. O vestido, de mangas longas, também comprido, possui corte simples e reto, buscando, além de não ressaltar a feminilidade, deixar mais a mostra a questão da modéstia. O gorro, usado em ambientes internos, se assemelha ao modelo puritano.

A cor marcadamente das aias é o vermelho que busca o tom de sangue, ressaltando a característica de sua função: o papel da reprodução numa sociedade quase sem crianças, sendo órgãos reprodutores femininos que ‘dão seu sangue’ pelo país e que mesmo assim se vestem de maneira modesta, pois a sociedade prega o fim do sexo como atividade prazerosa, como coloca a figurinista responsável, Anne Crabtree. Também suas roupas não possuem zíper ou botões, sendo algo assustadoramente “livre” de uma certa forma.

O traje das esposas é o mais feminino, remetendo a uma certa severidade e, mesmo que modesto, traz referências aos anos 40 e também ao começo dos anos 50 com tailleurs e golas amplas e mais trabalhadas. As saias são longas e retas, os tecidos nobres e os sapatos são de salto. Seus cabelos ficam a mostra, mesmo que presos em coques e penteados mais sóbrios. O tom das roupas é o azul e, também, o verde. O azul aqui traz toda uma pureza e é ligado à iconografia cristã.

É no mínimo controverso roupas que remetam aos anos 40 para essas personagens, uma vez que foi uma das épocas em que a mulher mais esteve ativa no mercado, e, acima de tudo, na busca por seus direitos, na história. Por outro lado, também se justifica por conta da austeridade e sobriedade, por se tratar de tempos de guerra, mas precisamente a segunda grande guerra e a guerra fria.

As ‘tias’, conhecidas por serem encarregadas das aias e manter a ordem usam roupas extremamente austeras. São vestidos longos em tom escuro, marrom/ verde musgo, visualmente muito pesados, até pela forma como as personagens se movimentam na série. Além disso usam cintos altos, simples em tom marrom, e casacos longos e compridos por cima, tudo da mesma cor. Suas roupas possuem bolsos, muitas vezes com instrumentos de tortura para manter a ordem em caso de qualquer ato de rebeldia por parte das aias. Cenas de tortura não são nenhum pouco estranhas a série, bem como o estupro das aias, a fim de concretizar “a cerimônia” com fins reprodutivos.

Cenas da "cerimônia", com a atriz Elizabeth Moss, interpretando Offred ( June), a narradora principal.
Aunt Lydia e Offred ( June) em cenas da segunda temporada.

O obi japonês também foi usado como uma forma de alongar a frente dos vestidos das aias, fazendo com que a cintura não fique muito marcada ou que também ajude a evidenciar uma gravidez. Uma referência também presente e revelada pela figurinista da série foi a Bauhaus e a inspiração industrial em roupas de trabalho. As roupas das serventes, em geral largas e longas ajudam a pessoa, também, a entrar em um estado psicológico de insignificância em relação ao seu redor, reforçando a ideia do patriarcado e da opressão que pairam sobre os personagens.

Moda e universo político, envolvendo aqui a luta feminista e toda a busca por direitos, não são assuntos estranhos um ao outro. Infelizmente, porém, a política dentro da moda dificilmente acaba ganhando corpo e uma intensidade substancial, em linhas gerais e, porque não, atualmente.

Assim, mesmo essenciais em reproduzir a história de Margaret Atwood para as telas, o figurino de Handmaid’s Tale, em especial o das aias, traz toda uma história de luta e resistência que não se atém a televisão: Ele enriquece novas formas de protesto, como o movimento “Texas Handmaids”, um dos primeiros a usar o figurino da narrativa para protestar sobre questões ligadas ao aborto e aos retrocessos pregados pelo novo governo do país; mas também em outros protestos como o da Polônia na recepção do presidente Donald Trump, na Argentina, aquecendo discussões sobre discriminalização do aborto, bem como no Brasil.

Assim, se entra num terreno em que a moda deveria, conscientemente, cada vez mais buscar unir forças: o de ser ativamente politico em uma sociedade na busca pelos direitos humanos e igualdade feminina, temas tão recorrentes na série e um assunto extremamente necessário em um país em que, literalmente, não se sabe o que esperar de seu próprio futuro político.

Cenas de Handmaid's Tale

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