Dê uma chance aOs Sertões
Admita: você nunca leu Os Sertões, de Euclides da Cunha. Pode até ter o livro em casa, mas não leu. Tudo bem, não há do que se envergonhar. Na década de 60, muita gente comprava O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, ou o Ulisses de James Joyce para exibir debaixo do sovaco; ler que é bom, poucos o fizeram. A história se repete ainda hoje com O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty. E assim será. Apesar de tudo isso, aquela edição de Os Sertões que você herdou da biblioteca do seu avô vale um esforço.
São poucos os livros dos quais se pode dizer serem, ao mesmo tempo, enervantes e apaixonantes, difíceis e eletrizantes, antiquados e modernos, conservadores e liberais, polifônicos e dominados por uma voz. Os Sertões se encaixa com folga em todas as categorias acima. Em termos mais atuais, ele tem tanto drama e paixão quanto Breaking Bad; retrata uma era por meio de uma situação particular, como Mad Men; é tão engajado quanto um filme de Ken Loach; e chega a ter um ritmo tão empolgante quanto o de Mad Max: Estrada da Fúria.
A história real do livro é conhecida. Antônio Conselheiro, um pregador messiânico, entrincheira-se em Canudos, um vilarejo perdido no meio do semiárido baiano, para praguejar contra a república, rezar, e preparar-se para o fim do mundo e o início do paraíso. Para isso, conta com a proteção de bandoleiros de toda sorte. O governo – primeiro, o estadual e, depois, o federal – envia tropas militares para botar abaixo o local. (Botar abaixo casa de pobre é esporte nacional, como se pode ver também na destruição dos casebres do centro do Rio por Pereira Passos em 1903, ou na demolição dos barracos nas proximidades das obras da Copa e das Olimpíadas, também no Rio, por Eduardo Paes nos últimos anos.) Acreditava-se, então, que os fanáticos maltrapilhos de Canudos faziam parte de uma grande conspiração para restaurar a monarquia. Mais sobre isto adiante.
O ano é 1897. O regime monárquico havia caído de podre menos de dez anos antes, não muito diferente da ditadura mais recente em 1985. A república é jovem, e a oficialidade militar é culta, extremamente politizada. Euclides da Cunha, engenheiro e militar de formação, é convocado pelo jornal O Estado de S. Paulo para acompanhar a última das expedições ao interior da Bahia. Os Sertões usa como base os seus artigos enviados à redação de agosto a outubro de 1897, quando a campanha chegava a seus últimos dias. Publicado em 1902, o livro revê e expande o escopo daquelas matérias jornalísticas. Euclides tem a ambição de explicar não só as batalhas, mas também tudo o que veio antes. Mira no Brasil de ontem e acerta no Brasil de sempre.
Os Sertões, um cartapácio de mais de 500 páginas escrito em português castiço até para a época, encara a Guerra de Canudos como um microcosmo da nação. Por isso, começa do começo. Divide-se em três partes: A Terra, O Homem e a Luta – tudo muito determinista, como era de bom tom conforme a ciência da época. Então, cientistas naturais e sociais de vários matizes ainda buscavam uma teoria que explicasse tudo. Usavam interpretações enviesadas da teoria da evolução de Darwin para explicar por que o Brasil era atrasado e como poderia ser melhorado. Para isso, empenhavam-se até na criação de políticas sociais junto aos governos. Euclides – assim como muita gente do seu tempo e também nos dias de hoje – acreditava, com base puramente empírica, que o homem era produto do meio. Seguia o darwinismo social, especialmente a corrente adotada por Ludwig Gumplowicz, um sociólogo polonês que acreditava na sobrevivência da raça (povo ou nação) mais forte. A divisão esquemática de Os Sertões segue, por sua vez, as ideias do historiador francês Hippolyte Taine, mais um positivista social. Para Taine, a literatura em particular e a humanidade em geral eram produtos da trindade povo-meio-momentum (momento histórico). Taine acabou influenciando o escritor Émile Zola (Germinal), cujas narrativas detalhadas, com ambições de exatidão científica, por sua vez, influenciaram Os Sertões. Nada mais natural que Euclides resolvesse seguir tudo à risca e começar o seu relato do barro.
O meio
“A Terra” é a parte mais entediante de Os Sertões; não há como escapar disto. Euclides basicamente escreveu um manual de geologia para leigos, mas Stephen Hawking ele não era. Não são exceção passagens como “as massas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia.” Imagine o Cid Moreira lendo esse trecho em voz alta para ter uma ideia melhor da coisa. Ainda assim, não se pode dizer que esta seção seja de todo, com o perdão do trocadilho, árida. Transparece a paixão do estudante de geologia da Escola Militar do Rio de Janeiro: um dos capítulos leva o título de “Um sonho de geólogo”. É preciso entender bem o terreno para compreender o drama, ele raciocina. Portanto, formações rochosas e bacias hidrográficas do sul ao norte do país funcionam como trampolim para explicar o elemento humano em seguida.
Isto não quer dizer que Euclides esqueça a narrativa. Pedras comportam-se como animais ou soldados, elevando-se e rasgando o solo, separando rios e planícies, numa batalha dos elementos. Há aqui também teasers do que está por vir. Num dado momento, em meio a uma descrição perfeitamente inócua de arbustos e árvores, surgem cadáveres mumificados de homens e cavalos. Esta cena chocante prova que o homem de ciências Euclides sabia ser o showman Euclides quando queria:
“Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, sua sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.
Descansava… havia três meses… Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus.”
Além do geólogo, encontra-se aqui também o Euclides engenheiro, dando seus pitacos sobre o problema crônico das secas no agreste brasileiro. Pode-se até contestar a eficácia da solução que o escritor propõe: o uso de técnicas e práticas antigas de países europeus para deter o processo de erosão e acidificação do solo. De qualquer maneira, não faz muito tempo, Fernando Lyra, ex-ministro da Justiça no governo Sarney, afirmou, quase que ecoando Euclides, que a resposta para o problema secular das secas já existe e é mais simples que todos os projetos mirabolantes tentados. Falta mesmo, bradam Lyra e Euclides, é vontade política de implementar os planos mais eficazes.
A raça
A seção seguinte, “O Homem”, é mais polêmica e esteticamente ambiciosa, pois daria sozinha um livro à parte. Começa com uma análise dos tipos humanos brasileiros para terminar com uma biografia de Antônio Conselheiro. A história do líder de Canudos, à primeira vista, serve de ilustração para o espécime sertanejo, segundo as teorias adotadas por Euclides. Porém, a seção é tão ambígua que o contrário pode ser verdade, isto é, as ideias sobre raça seriam apenas uma introdução ao verdadeiro “Homem” do título e peça central do drama que irá se desenrolar na seção seguinte. O Conselheiro é um fantasma pairando sobre toda a narrativa, tal qual o Mágico de Oz ou o Sr. Kurtz. Por isso, é o único personagem que ganha uma biografia mais demorada em Os Sertões. Euclides o faz por meio de depoimentos de terceiros, lendas populares, matérias de jornal e documentos históricos, criando uma multiplicidade de vozes rara na literatura brasileira da época.
É neste ponto, também, que Os Sertões abraça, sem pudor, a eugenia e o conceito de desequilíbrio de raças, em voga na época e volta e meia desenterrado. O mestiço é um “desequilibrado”, “decaído”, condenado “ao plano inferior da raça menos favorecida”. O Conselheiro é uma “sombra” que “condensava o obscurantismo das três raças”. Cientistas da época saíram-se com a tese de que o Brasil seria tirado do atraso mestiço (especialmente se esse mestiço tivesse sangue negro) a partir do momento que os mestiços passassem a procurar exclusivamente os brancos para reprodução. Para Euclides, o mulato percebe isso e despreza “irresistivelmente o negro”, procurando “cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida” para reatar “a série contínua da evolução”. Como esse branqueamento purificador se daria, uma vez que genética não é homeopatia, é um mistério ainda a ser explicado. Assim, somos atrasados porque o clima e a natureza nos oprimem, e também porque fomos colonizados pelos portugueses, que se misturaram com os africanos. Sabe aquele seu complexo de vira-latas? Pois é, surgiu na segunda metade do século XIX.
A tese polêmica, porém, não consegue domar a narrativa. Ao mesmo tempo em que desanca o mestiço, tanto do litoral quanto do interior, Euclides anuncia que o sertanejo, apesar de ser torto, desengonçado e feio feito o Corcunda de Notre Dame (eu não estou inventando isso), também “é, antes de tudo, um forte”. Seu ímpeto merece todos os elogios do autor, que vê cavaleiros medievais nos vaqueiros com suas armaduras de couro. Da mesma forma, o atávico Conselheiro, esse Rasputin do terceiro mundo, consegue, de forma quase sobrenatural, comandar multidões, ricos e pobres, com suas palavras, fazendo-os construir ou recuperar igrejas e cemitérios por onde passava.
A História
Os Sertões começa para valer com “A Luta”. Tanto assim que muitas edições atuais do livro pulam as duas primeiras partes. Para um garoto de 14 anos obrigado a ler por um professor sádico, é justificável. Para um leitor mais maduro, essa omissão significa a perda de nuances na narrativa. “A Terra” e “O Homem” servem como uma longa introdução de temas, todos de uma só vez, para que o autor possa se debruçar na ação na última fase. Para quem nunca esteve no sertão baiano, “A Terra” torna mais claras as movimentações das batalhas e as dificuldades enfrentadas pelos combatentes. “O Homem” traça um perfil, mesmo que parcial, dos inimigos do governo em Canudos. Quando Euclides descreve, por fim, as armadilhas do terreno para os soldados, supõe que seus leitores estejam familiarizados com a terra e o povo apresentados lá no começo do livro. Além disso, quando você terminar a leitura, terá percebido que as ondas humanas que se chocam pela sobrevivência na terceira parte funcionam como um espelho da natureza conflituosa descrita lá na primeira.
O militar Euclides continua com a sua obsessão por detalhes, agora na narração das lutas. Além da ação em si, explica as estratégias militares empregadas pelos oficiais — e como elas vêm a ser um desastre. O resultado são grandes sequências, com multidões e dezenas de atores principais, nas quais o leitor jamais fica perdido. Apesar de pintar o Conselheiro como um vilão bárbaro e ignorante — uma visão que a leitura dos sermões dele contraria –, o livro está cheio de elogios às táticas de guerrilha de seus jagunços contra as tropas do governo, que lutavam em terreno inóspito como se estivessem nas planícies dos pampas. Esta agilidade ao intercalar cenas torna Os Sertões mais que uma reportagem ou um livro de História. Euclides dosa a tensão, recua no tempo, acelera ou diminui o ritmo como se estivesse escrevendo um romance de aventura. E as descrições dos horrores da guerra fariam inveja ao estilo macabro de H.P. Lovecraft. Há cenas surreais ou de pura insanidade, como a da floresta de uniformes e cadáveres que se forma como uma versão grotesca da caatinga. A brutalidade de lado a lado no conflito reduz a picadinho a imagem de cordialidade que o brasileiro gosta de fazer de si.
Ao mesmo tempo, Euclides dá uma pausa na luta para mostrar o contexto nacional em que se deu a guerra de Canudos. A reação desproporcional ao grupo do Conselheiro mostra bem o clima de instabilidade que levaria a uma caça às bruxas. Canudos era a prova de uma conspiração para restaurar a monarquia! Os rebeldes recebiam carregamentos clandestinos de armas da fronteira do Rio Grande do Sul! Jornais de apoio à monarquia foram vandalizados ou queimados em todo o país. A coisa chegou a tal ponto que tropas estacionadas em Salvador hostilizavam os habitantes da cidade por enxergarem na arquitetura colonial amostras de simpatias pelos monarquistas — não muito diferente dos que veem nos eventos atuais evidências de uma conspiração para instaurar uma ditadura comunista no Brasil. O governo do presidente Prudente de Morais, o primeiro civil na República, encontrava-se espremido entre monarquistas e militaristas partidários do ex-presidente Marechal Floriano Peixoto. Sobre o panorama político, Euclides escreve:
“…no meio da indiferença geral todas as mediocridades irritadiças conseguiram imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza. Não lhes bastavam as cisões remanescentes, nem os assustava uma situação econômica desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última insolúvel.”
É 1897, mas poderia ser 1964. Ou 2015.
Mais que um diário de guerra
O mais extraordinário é que este livro extremamente crítico do estado da nação e dos rumos da República tenha sido escrito por um ex-militar conservador e republicano de carteirinha. Em 1902, Os Sertões foi saudado pelo país como uma potente crítica às ações do exército. É mais que isso.
Walnice Nogueira Galvão, uma das maiores estudiosas da vida e obra de Euclides, vê paralelos entre Os Sertões e O Coração das Trevas (Heart of Darkness, 1899), noveleta escrita pelo igualmente conservador Joseph Conrad que originou o filme Apocalypse Now (1979). Lançando mão de sua experiência como marinheiro na África em 1890, Conrad apresenta a exploração de um país não-identificado na costa africana por um oficial colonial. Tratava-se de um ataque pouco disfarçado à ocupação brutal do Congo pelo imperador Leopoldo II da Bélgica. O Coração das Trevas condena a aventura imperialista das potências europeias, refletindo sobre o processo de modernização e as necessidades devastadoras do capitalismo. De maneira similar, Os Sertões contesta a ideia de progresso civilizatório da qual o próprio Euclides é defensor. Arrasar Canudos significava impor a ferro e fogo a modernização representada pela república naquele fim de mundo, um país dentro do país de que os brasileiros do Sul e Sudeste pouco tinham conhecimento. Ironicamente, isto dava razão à desconfiança matuta dos fieis do Conselheiro. As duas últimas linhas de Os Sertões cimentam essa condenação ao aludir aos “crimes das nacionalidades”.
Lido a partir do século XXI, Os Sertões ganha ainda mais ressonância. A ordem dos soldados d’antanho era arrasar Canudos com quem estivesse ali dentro. Hoje, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte — exatamente o nome com que o Conselheiro batizara Canudos — no Pará repete a mesma lógica de botar abaixo comunidades inteiras em nome do progresso, com descaso pelo destino dos desalojados e em desrespeito às próprias regras. Euclides ironizou os projetos extravagantes de combate à seca. Hoje, um projeto bilionário de transposição do moribundo Rio São Francisco — na verdade a execução de uma ideia da época de D. Pedro II, com o argumento de resolução do problema — revela-se crônica de um fracasso anunciado. O messianismo fundamentalista do Conselheiro fundia religião e sociedade ao recusar qualquer transformação modernizadora, da arrecadação de impostos aos casamentos civis. Hoje, uma facção neopentecostal teima em impor-se nos assuntos do Estado laico. Canudos revelou que havia dois Brasis e que eles não se entendiam. A polarização crescente que se verificou nas últimas eleições revela dois Brasis que não se entendem e não querem se entender. Canudos é aqui.
Os Sertões, com todos os seus defeitos, é o seu mapa para conhecer o Brasil. Com tiros, explosões e sangue, muito sangue.
Há edições de Os Sertões por quase todas as editoras brasileiras. Caso você não tenha uma e não queira gastar dinheiro, o livro também está disponível em versões em e-book gratuita para todas as plataformas. Para um olhar mais moderno (ou estrangeiro) sobre Canudos, há o romance do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo, e do húngaro Sándor Márai, Veredicto em Canudos — ambos inspirados no livro de Euclides da Cunha. Algumas das fotos do conflito por Flavio de Barros, encontradas em várias edições do livro de Euclides, podem ser acessadas aqui, seguidas de uma análise por Walnice Nogueira Galvão (para as fotos de Flávio de Barros, adiante para os três últimos minutos).
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Originally published at revistasalsaparrilha.com on July 5, 2015.