Walking Dead versão Brasil: os perigosos defuntos de Incidente em Antares

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Revista Salsaparrilha
8 min readSep 14, 2015

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Por Maurício Sellmann

Os mortos-vivos, por mais decompostos que se encontrem, estão na moda. Há todo tipo de variações do tema: a mais popular, a série The Walking Dead (estreia em 2003 nos quadrinhos e em 2010 na TV) é uma mistura do filme Extermínio (28 Days Later…, 2002) com os zumbis de George Romero; a série de TV francesa Les Revenants (2014- ); os filmes Zumbilândia (Zombieland, 2009), Guerra Mundial Z (World War Z, 2013) e Maggie (2015); o romance Zone One (2011) do cultuado escritor Colson Whitehead. No Brasil, houve recentemente o conto Branca dos Mortos e os Sete Zumbis (2013), de Fábio Yabu, e a minissérie Amorteamo (2015), de Flávia Lacerda. Talvez a encarnação mais diferente dos zumbis por essas bandas, porém, seja o último livro de Érico Veríssimo, Incidente em Antares, que fará 45 anos em 2016.

O tal incidente ocorre em dezembro de 1963 — sim, nas vésperas do golpe militar –, na cidadezinha de Antares, quase fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Com a participação dos coveiros numa greve geral de trabalhadores, sete defuntos — entre eles, a matriarca de uma família influente, um advogado corrupto, um operário agitador torturado até a morte e uma prostituta — ficam no cemitério aguardando seu enterro em vão. Cansados de esperar, dirigem-se ao coreto da praça principal da cidade, onde irão desencavar todos os segredos sujos dos moardores — quem dorme com quem, quem roubou quem — até que os coveiros façam seu trabalho.

Estamos na encruzilhada do realismo mágico com a comédia do absurdo. Ainda assim, Veríssimo — sim, é o pai do Luís Fernando — adiciona detalhes bem realistas à história, curiosamente pouco mencionados nas narrativas de zumbi em geral: os mortos estão apodrecendo. Expostos ao sol e às intempéries, eles fedem tanto que, graças ao vento, o cheiro alcança as bandas da Argentina. Urubus rondam a praça, os ratos saem da toca e as moscas fazem a festa. Combinando isso aos outros podres que saem das bocas dos mortos, entende-se o desespero dos habitantes de Antares com a situação.

Essa preocupação aparentemente é seletiva. Afinal, os poderosos da cidade são os mais atingidos pelo que os mortos têm a dizer. Antes de chegarem ao coreto, os sete visitam seus familiares e amigos. Os pobres reagem, via de regra, com ternura e até alegria com a volta inesperada dos entes queridos. O delegado, o prefeito e os ricos de Antares recebem seus zumbis com repulsa e medo — menos da assombração do que do acerto de contas que eles prometem.

Os mortos-vivos da cultura pop costumam aparecer como símbolos de um mundo onde as ameaças parecem brotar de todos os lados. Eles são as pandemias globais, os imigrantes que vão tomar os empregos (ao menos segundo Donald Trump e o tiozinho do táxi), a maioria agressiva que oprime as minorias, ou a ansiedade moderna de sua escolha. Já os defuntos de Incidente em Antares encarnam algo um pouco diferente e até bastante ambicioso: as contradições da História.

A história oficial e a história secreta

Veríssimo espalha sugestões sobre esse enfoque ao longo da narrativa. Em pelo menos dois momentos do romance, repetem-se frases atribuídas ao espírito de um ex-governador do Rio Grande do Sul, o republicano Júlio de Castilhos:

“A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre cada vez mais governados pelos mortos.”

Trata-se de uma variação de uma frase célebre do francês Auguste Comte no século XIX: “Os mortos governam os vivos”. Para Comte, tudo podia ser explicado e sistematizado a partir da observação pura e simples dos fatos, sem considerar variáveis externas. Os “mortos” de sua frase são a própria história da humanidade, cujos fatos, em conjunto, revelariam o caminho para o progresso — uma ordem tão absoluta quanto as leis da natureza. Daí a pensadores tentarem aplicar a ordem natural nas sociedades humanas foi um pulo. O positivismo sociológico influenciou as cabeças por trás dos fundamentos da República no Brasil. É o “Ordem e Progresso” da nossa bandeira (a “Ordem”, claro, é a natural), da Primeira República, e, muitos diriam, de todas as repúblicas brasileiras desde então. Os mortos governam os vivos por meio da História.

Incidente em Antares vai brincar com essa ideia em suas duas partes: “Antares”, que conta a história da cidade, e “O Incidente” propriamente dito. A primeira parte começa na Pré-História e segue até as vésperas do golpe de 1964. Veríssimo leva a ideia de uma sociedade controlada por mortos ao extremo, comparando os poderosos antareanos das famílias Vacariano e Campolargo aos fósseis de dinossauros encontrados na região:

“Assim, ao findar a década de 20 os dois senhores de Antares pareciam-se um pouco com os gliptodontes e os megatérios no fim do Pleistoceno, isto é, eram dois representantes de animais em processo de extinção.”

O que Veríssimo descreve, a partir daí, é menos extinção e mais adaptação a uma nova ordem. Os mortos estão bem vivos. Ou como diria o príncipe de Salina sobre os novos tempos em O Gattopardo, de Giuseppe di Lampedusa: “É preciso mudar para que as coisas fiquem como estão.” Nos próximos 40 anos, os Vacariano e os Campolargo terão o necessário jogo de cintura para manter a região sob suas rédeas, saltando de barco em barco no momento certo. Pense nas Alagoas e em Renan Calheiros.

No meio disso tudo, um fantasma ronda a narrativa. Essas quatro décadas de História do Brasil estão intimamente ligadas a Getúlio Vargas, filho de São Borja, cidade vizinha à fictícia Antares. A primeira parte do livro acompanha os reflexos da ascensão e queda de Vargas sobre os personagens. No dia da morte dele, a empregada de Tibério, o chefão dos Vacariano, lamenta-se: “E agora, o que vai ser dos pobres?” Tibério, então, responde num sussurro: “Os pobres vão continuar tão pobres como no tempo em que ele estava vivo.” Ele próprio havia se beneficiado de contatos no governo do Estado Novo. Além disso, durante o regime militar, a estrutura de poder e influência de fato pouco ou nada mudara, apesar do que afirmava toda a propaganda: “Getúlio, o Pai dos Pobres” antes; “Brasil: ame-o ou deixe-o” depois. Os mortos de Antares virão para o centro da praça bradar aos quatro ventos a história secreta, que os vitoriosos, quando não calam, contam apenas em sussurros. O humor entre amargo e escrachado de Incidente em Antares nasce desse choque de versões da História com “h” maiúsculo, com a insinuação contínua de que a verdade, como os mortos-vivos, cheira mal.

A esta altura, já deu para perceber que o microcosmo de Antares é uma representação do próprio Brasil. Lá estão as relações fisiológicas do poder, dividido, no caso, entre as duas famílias de latifundiários dos Vacariano e dos Campolargo. O delegado tortura, mata e comete arbitrariedades à sua conveniência. O prefeito faz sempre o melhor negócio — para ele. Aos estudantes, resta a galhofa quando a finada Quitéria Campolargo e seus companheiros de vida após a morte começam a soltar o verbo. Uma milícia improvisada vai enfrentar os defuntos, mas ainda há o não-pequeno problema dos jornalistas que vieram atrás dos rumores fantásticos. A forma que as autoridades encontram para resolver a situação é, claro, a repressão — uma tal de Operação Borracha –, cujo alcance também inclui os vivos. Assim, os mortos voltam a governar o mundo como sempre o haviam feito: com o seu silêncio, enterrado sob a história oficial. O último capítulo do livro, que ironiza esta resolução, pode figurar entre os melhores fechos da literatura brasileira.

As capas de Incidente em Antares ao longo dos anos. A primeira está no meio.

Vendo o circo pegar fogo

Por ser uma alegoria sobre o país, impressiona o lançamento de Incidente em Antares no auge da censura do governo militar. Vamos colocar as coisas sob perspectiva: digamos que se alguém que viveu naquele período falar-lhe de “ditabranda”, isto é porque, no lugar de notícias negativas sobre o governo, tudo o que ele leu foram receitas de bolos, trechos da Bíblia e dos Lusíadas. Temendo a proibição da publicação, o esperto diretor da Editora Globo de Porto Alegre, José Otávio Bertaso, partiu para a ofensiva. Levou pessoalmente o livro e a publicidade para serem inspecionados pelo comando do Terceiro Exército. Um dos cartazes de promoção do livro trazia uma imagem da capa sobre um fundo negro e uma frase em letras garrafais: “Num país totalitário este livro seria proibido”. Como os mortos falando na praça de Antares, o absurdo aconteceu: publicou-se tudo sem cortes, aprovaram o cartaz e o livro foi até adotado pela Academia Militar das Agulhas Negras! E Incidente em Antares tornou-se um best-seller por mais de dois anos.

Especula-se que o prestígio de Érico Veríssimo — naquela época dividindo com Jorge Amado o posto de autor mais popular do país aqui e no exterior — fez com que os militares pensassem duas vezes antes de censurá-lo. Por precaução, editor e autor cuidaram de jamais mencionar o lado político do livro em entrevistas. Além disso, Incidente em Antares saiu sem a sinopse na orelha. No entanto, estava tudo claro para quem lia: a alegoria da verdade fedida contra a história oficial.

Uma vez que o absurdo do romance se refletiu no absurdo de sua publicação, é razoável presumir que tudo é possível, inclusive que os mortos voltem à vida para nos falar algumas verdades. Portanto, imaginando que tal cena se daria, óbvio, em Brasília, a praça da nossa Antares nacional, aqui vai uma sugestão de sete zumbis no remake da vida real de Incidente em Antares, escolhidos por seu potencial de jogar sujeira no ventilador da História: João Figueiredo, Paulo Cesar Farias, Celso Daniel, Sergio Motta, Mário Covas, Antônio Carlos Magalhães, Plínio de Arruda Sampaio.

Morto-vivo no Brasil, como percebeu Érico Veríssimo, é assunto de Estado.

Cena da série francesa Les Revenants.

A Companhia das Letras relançou Incidente em Antares numa cuidadosa edição revisada em 2008.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on September 14, 2015.

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