Dicotomia entre metrô pesado e ônibus de baixo padrão prejudica São Paulo e região metropolitana
Mais uma vez a opinião pública corre risco de ser contaminada por comparações apressadas e que podem induzir a erro
Introdução
A Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), cujo gigantismo pode ser facilmente exaltado pelas cifras de seu PIB (Produto Interno Bruto) ou pelo seu impressionante contingente demográfico, também impõe sérios desafios à mobilidade de pessoas e mercadorias.
As dificuldades de deslocamento não estão apenas materializadas na realidade fática e cotidiana da população metropolitana, mas também nas disputas, estas menos visíveis, que ocorrem nos bastidores. Nos últimos anos, existem algumas narrativas em disputa, que podem colocar em xeque o futuro da expansão da rede de alta e média capacidade sobre trilhos da RMSP, potencialmente selando o destino de centenas de milhares de pessoas.
Neste artigo, veremos como uma comparação entre monotrilho e faixa exclusiva à direita pode ser bastante problemática. O par de imagens a seguir exemplifica de maneira genérica qual tipo de infraestrutura mínima é esperada para cada das soluções.
Este artigo foi motivado por uma análise do Diário do Transporte, publicada em 16/05/2020 com o título “Custando R$ 3,7 bilhões, monotrilho da linha 17-Ouro vai transportar somente 171 mil pessoas a partir de 2022, mas entraves podem prolongar atraso”. A análise basicamente tenta convencer o leitor ou leitora de que o monotrilho tem relação custo × benefício ruim, valendo-se de uma dicotomia entre ônibus, modo que na capital paulista jamais desfrutou de infraestrutura de alto nível, e metrô/trem metropolitano, que na capital paulista corresponde a duas redes com história distinta e uma série de particularidades.
O problema do custo por quilômetro
A comparação foi feita com base na implantação de faixas exclusivas em São Miguel Paulista no ano de 2013, considerando a demanda informada à época numa mídia oficial da Prefeitura de São Paulo:
Pela Av. São Miguel, no sentido Centro, circulam 35 linhas de ônibus, transportando 234.320 passageiros por dia útil. Já no sentido Bairro passam 32 linhas de ônibus, transportando 232.359 passageiros por dia útil. A freqüência média é de 163 ônibus/hora nos horários de picos.
A mesma fonte ainda aponta que a infraestrutura implantada na Av. São Miguel entre a Av. Dr. Custódio de Lima e a Rua Uicó (clique para abrir no Google Maps), totaliza 9,4 km, o que se traduz num custo que varia entre R$ 100 a 500 mil reais por quilômetro, conforme o Estudo sobre Faixas Exclusivas: São Paulo/SP, publicado na primeira metade de 2017 pelo IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente). A estimativa adotada pelo IEMA é muito mais conservadora do que aquela considerada pelo Diário do Transporte.
O pulo do gato é que a estimativa do Diário do Transporte se baseia num custo de R$ 50 mil por quilômetro que, apesar de supostamente ter vindo da prefeitura paulistana, não possui nem fonte e nem data, porém, como a estimativa do IEMA possui as duas coisas, podemos atualizá-la conforme o IPC-A (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) para considerar o fenômeno da inflação, construindo três cenários: otimista, intermediário e pessimista. Os cenários estão organizados na tabela a seguir e foram construídos utilizando a calculadora do Banco Central.
Observação: poderíamos ir além, estimando o custo usando o dólar dos Estados Unidos, que fechou maio de 2017 cotado a R$ 3,2357 para compra (fonte e cotações), enquanto está cotado a R$ 5,8372 para compra no momento em que este artigo está sendo escrito (fonte e cotações). Fica como exercício para o leitor ou leitora.
O fato é que os quase 10 km de faixa exclusiva com 30 linhas de ônibus cujos veículos amontoam-se nos pontos mal desenhados da Ótima pode custar hoje algo entre R$ 1.038.012,67, R$ 3.114.038,02 e R$ 5.190.063,36, ou em outras palavras, entre R$ 1 bi e R$ 5 bi. Temos agora uma estimativa que, no pior cenário, se aproxima do monotrilho, vide citação do texto do Diário do Transporte:
Significa que cada quilômetro de monotrilho na linha 17-Ouro vai custar em todo o primeiro trecho, R$ 486 milhões (R$ 486.026.623,37). Se forem levados em conta somente os 6,7 km operacionais, o km do monotrilho na linha 17 vai custar R$ 558 milhões (R$ 558.567.910,44).
Pois é, podemos dizer que o valor do quilômetro flutua entre R$ 486 milhões e R$ 558 milhões, de fato, mas como o valor está situado no tempo em relação com a capacidade? Pode parecer muito caro olhando para a demanda sem considerar que ela pode crescer no futuro. É preciso considerarmos que o aumento pode estar associado, inclusive, à ampliação da linha, que por sua vez, pode estar associada à velocidade média e, consequentemente, o tempo de percurso. É muito cômodo ignorar processos complexos de modelagem, que utilizam múltiplas variáveis e simulações computacionais, para especular usando soluções de quinta categoria, como são as faixas exclusivas: o tipo de solução mais frugal existente, que, combinada a uma infraestrutura de pontos de ônibus insatisfatória, a calçadas de má qualidade e à completa ausência de um sistema de informações voltado para o pedestre, está separada por um abismo em comparação com qualquer solução metroferroviária. Só um ator fica feliz com comparações do tipo: o empresário do setor de ônibus.
O problema da oferta de lugares
A estimativa também desconsidera a escalabilidade e a matriz energética (falaremos mais sobre as duas coisas mais abaixo), se valendo ainda da menção ao número de linhas circulantes na Av. São Miguel como se mais linhas fossem sinônimo de maior eficiência, quando geralmente expõem problemas sérios de racionalização, como sobreposição excessiva, que provoca congestionamento da infraestrutura de priorização dos ônibus, potencial aumento do consumo de diesel e, consequentemente, perda de eficiência. Adicionalmente, cabe a nós lembrarmos o leitor ou leitora de que o problema dos pontos de ônibus, associado à sobreposição excessiva, é bem conhecido da prefeitura de São Paulo, que já relatava em boletim técnico da CET, datado de 1979 (p. 17):
Em 1977, quando na Política de Prioridade ao Transporte Coletivo intensificou-se a implantação das faixas exclusivas de ônibus no município de São Paulo, ficou patente que para diminuir o tempo de percurso dos ônibus era necessário além das faixas (que possibilitam livrar o ônibus do congestionamento de tráfego geral ou ainda encurtar o itinerário, quando implantadas no contra-fluxo), um cuidado com os pontos de embarque ao longo do Corredor para evitar que os ônibus se congestionassem junto a eles.
O resultado foi a subdivisão de pontos de ônibus em algumas parcelas da cidade, esquema que muitos anos depois também foi adotado pelo Rio de Janeiro, cidade que, não surpreendentemente carrega um longo histórico quando o assunto é resistência à racionalização de linhas e ausência de infraestrutura de troncalização (como terminais de integração). A subdivisão era vista como uma forma de permitir a formação de comboios de até 6 ônibus sem aumentar a degradação da performance da infraestrutura de priorização. A foto a seguir, retirada do mesmo boletim, ilustra o cenário que existia naquele momento:
Se considerarmos que os ônibus que circulam nas linhas da Av. São Miguel possuem determinado número de lugares, sabendo que a prefeitura estima uma oferta de 163 ônibus por hora, podemos fazer algumas estimativas de forma fácil e rápida: geralmente, estima-se uma capacidade de 10 mil lugares/hora por sentido para uma faixa de ônibus com boa frequência. Veremos que a situação da Avenida São Miguel chega perto dos 9 mil lugares/hora por sentido. A ilustração a seguir organiza faixas de capacidade por tipo de veículo, permitindo então mais uma rodada rápida de construção de cenários:
Para estimarmos as capacidades, coletamos dados de GTFS por meio da plataforma de desenvolvedores da SPTrans (São Paulo Transporte) e utilizamos os dados da licitação de 2017, em especial o arquivo de formato xBase “ATUAL_REDE.DBF”, importado com sucesso pelo LibreOffice. Os arquivos de GTFS, por serem simples CSV, também foram tratados sem dificuldades pelo LibreOffice, já o QGIS foi utilizado para a seleção das linhas na Avenida São Miguel sentido centro, sendo selecionada a seguinte parada:
- Número de identificação: 890012076
- Nome da parada: Av. S. Miguel, 6717
- Referência: R Felipe Jose De Figueiredo/ R Palmeira De Leque”
- Coordenadas: -23.501157,-46.470528
- Sistema de referenciamento de coordenadas: EPSG:4326
De posse dos arquivos e das informações necessárias, uma lista de linhas foi gerada:
A capacidade média por ônibus por cenário é de 99 (pessimista),105 (intermediário) e 110 (otimista). Vamos ser bonzinhos e calcularmos apenas o cenário otimista: 163 ônibus numa hora × 110 lugares) ÷ 2 sentidos = 8.965 lugares/hora por sentido
. Considerando que 163 ÷ 60 minutos = 2,72 ônibus por minuto
, não parece factível imaginar um aumento substancial da oferta. Na pior das hipótese, se fosse possível replicar o que foi feito nos anos 1970, estaríamos falando de cerca de 15 segundos a menos de espera por ônibus, mas ainda assim seria uma experiência que contraria o consenso de que, se existe espaço, pode ser melhor implantar boas soluções troncais baseadas em BRT (Bus Rapid Transit).
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Observação: como um olhar atento pode ter se dado conta, a quantidade de linhas encontradas foi cerca de 50% menor do que aquela apontada pela prefeitura em 2013. Para simplificações do modelo, vamos considerar que as 15 linhas são realmente as atuais (ou seja, a prefeitura racionalizou e reduziu linhas) ou que, se existem mais linhas, a condição de oferta não altera significativamente o cenário calculado.
É por causa de fatores como os descritos acima, que a solução da Avenida São Miguel pode até ser mais barata, mas só quando ignoramos a possibilidade de crescimento da demanda e as condições às quais se submetem passageiros e passageiras. A estimativa do IEMA é mais interessante, porque permite pensar na possibilidade de requalificação da estrutura (cenário pessimista), que comumente fica de fora. Não deveria ser motivo de orgulho para um gestor público dizer que passa um ônibus a cada 30 segundos, quando ele não é capaz de garantir pontos adequados, informação adequada e deixa os veículos circulando em pavimento flexível, que rapidamente se deteriora e, devido à frenagem, fica todo ondulado na região das paradas, reduzindo a segregação física entre a calçada e o leito carroçável e produzindo problemas de microdrenagem.
Quanto à escalabilidade, esta diz respeito à possibilidade de aumento da capacidade por m² da infraestrutura construída. Em sistemas sobre trilhos, a escalabilidade, embora não trivial, costuma ser considerável, uma vez que é possível utilizar sistemas sofisticados de sinalização e de controle automático de trem (como sistemas baseados em comunicação por rádio, que têm se tornado regra em linhas construídas do zero), além disso, a adoção de tração elétrica, além de não emitir poluentes diretos, permite um controle fino e extremamente preciso das curvas de aceleração e frenagem, o que se traduz em mais confiabilidade, segurança e menos desconforto para o passageiro. Juntando a sinalização e a tração ao tipo de material rodante possível, rapidamente o monotrilho se distancia do ônibus no caráter oferta.
Não conseguimos localizar informações precisas sobre a plataforma SkyRail da BYD, que deverá fornecer os trens da Linha 17-Ouro após a desistência da Scomi, que faliu, porém, sabemos que cada composição da Scomi deveria carregar até 687 passageiros em trens de 5 carros (slide 38), no caso da Linha 17. Sabendo-se que o intervalo nos picos será de 180 segundos (3 minutos ou 20 trens/hora por sentido), a capacidade nos picos será de cerca 14.200 lugares/hora por sentido.
Se considerarmos a capacidade da faixa da Avenida São Miguel como sendo de 8.965 lugares/hora por sentido, este corresponde a 65% da capacidade da Linha 17. Com base na apresentação linkada no parágrafo anterior, sabemos que o sistema de sinalização originalmente previsto para a Linha 17 é o SelTrac da Thales, baseado em CBTC (comunicação por ondas de rádio), informação esta que nos permite a recuperação de outra apresentação da AEAMESP, na qual a Thales menciona a possibilidade de redução de intervalos para menos de 90 segundos sem necessidade de instalação de equipamentos adicionais (slide 6). Como o pátio tem capacidade para apenas 26 trens, uma redução tão drástica provavelmente exigiria um segundo pátio, mas numa eventual redução para 120 segundos, a capacidade da faixa exclusiva cobriria apenas 44% da oferta do monotrilho.
Outras considerações
Poderíamos ainda elencar que o monotrilho, por se tratar de uma solução completamente em desnível, é praticamente imune a interferências externas. Uma faixa exclusiva, como conceitua o mesmo estudo do IEMA, tem muitos cruzamentos em nível, o que eleva significativamente a possibilidade de interferências (p. 10):
Veículos de transporte coletivo trafegam em faixas exclusivas, mas sem elementos de separação física do tráfego geral. A faixa exclusiva costuma estar na lateral da via (embora possa estar também no centro) e ter ou não faixa dupla para ultrapassagem junto aos pontos de parada. Número considerável de cruzamentos em nível.
Existe ainda uma intenção de comparação sucinta, mas também problemática, com sistemas de metrô pesado e de BRT, contida no texto do Diário de Transporte, que menciona, sem hiperligações para fontes envolvendo os órgãos:
De acordo com estimativas de órgãos como ANTP — Associação Nacional de Transportes Públicos, UITP — União Internacional de Transportes Públicos, BRTData e MonorailSociety, o custo por km de um metrô de alta capacidade é de entre R$ 700 milhões e R$ 1 bilhão, mas pode transportar 1,2 milhão de passageiros por dia. Um BRT (sistema de corredor de ônibus superior a um corredor comum) pode transportar 380 mil passageiros por dia, mas com km custando até R$ 100 milhões.
O parágrafo adota premissas equivocadas. A diferença é que elas são tão grosseiras, que não vamos precisar nos alongar ainda mais, até porque já publicamos um artigo em 2018, que continua apresentando uma boa contra argumentação.
O fato é que exceto pelas linhas 1-Azul (Jabaquara-Tucuruvi) e 3-Vermelha (Corinthians·Itaquera-Palmeiras·Barra Funda), nenhuma outra transporta 1,2 milhão de passageiros por dia (confira as demandas da malha operada por estatais aqui e aqui), aliás, com o regime de intervalos adotado pela CCR na Linha 5-Lilás (Capão Redondo-Chácara Klabin), nem existiria capacidade para tal.
Já a faixa de demanda do BRT hipotético do Diário do Transporte fica entre a das linhas 12-Safira (Brás-Calmon Viana) e 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra), que movimentam, respectivamente, 286,6 mil e 409,5 mil passageiros passageiros em média por dia útil. Se alguém acha que um BRT tem a mesma possibilidade de escalar tão bem e a custo competitivo se comparado com as duas linhas da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) acima, que ao contrário de linhas mais novas, como a 5-Lilás e 2-Azul (Vila Prudente-Vila Madalena), estão em superfície, estamos ávidos pelos memoriais de cálculo e croquis.
Conclusão
Sem mais delongas, como argumentou Dawid Danilo Bartelt no livro Mobilidade Urbana no Brasil: Desafios e Alternativas, ao se referir a sistemas BRT, sistemas de metrô continuam sendo a melhor opção (p. 6):
O metrô continua sendo a melhor opção, sendo independente dos congestionamentos na malha viária (o BRT, apesar das faixas “exclusivas”, não o é), podendo ser operado com energia de fontes renováveis e tendo uma capacidade muito superior a qualquer ônibus BRT, além de ter um número muito menor de acidentes e andar a uma velocidade média maior.
Precisamos parar com o endosso a comparações sem sentido, que poluem a discussão sobre a mobilidade nas nossas cidades e vendem falsas soluções baseadas na manutenção de oligarquias donas de empresas de ônibus. Felizmente não estamos em 1996, pois se estivéssemos, seria elevado o risco de surgirem artigos exigindo a conversão de linhas da CPTM em corredores ou faixas exclusivas de ônibus.
por Caio César