Vão entre o trem e a plataforma na Estação Calmon Viana

Procura-se um milagre

Sobre trens, vãos, correria e como a construção de consciência parece ter ficado de lado.

COMMU
Trens Metropolitanos
3 min readDec 24, 2017

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Negligência milagrosa

Intitulado “Milagre é pegar um trem 3 segundos antes das portas se fecharem”, a crônica de Jéssica Moreira romantiza suavemente a convivência do passageiro com as intermináveis obras de modernização da CPTM e a conivência com o mau comportamento, aquele mesmo que todos sabemos ser o causador de inúmeros atrasos e acidentes, mas que muitas vezes ignoramos na correria cotidiana.

Vamos direto ao ponto. Um passageiro segurou a porta do trem e a passageira desesperada (vou assumir que se tratava da própria cronista) saiu correndo para entrar. Eis o tal “milagre”. Sobrou ainda espaço para superstições a respeito dos trens de carga:

De repente, um fiozinho de esperança surge. Há um trem de carga vindo do centro, um trem nunca dá partida quando um outro de carga está pra chegar.

Resumo da ópera

Tá tudo errado. A CPTM faz papel de metrô e está cada vez mais inserida numa dinâmica que não tolera intervalos acima de 15 minutos — 30 minutos é uma verdadeira eternidade — e que impõe cada vez mais restrições para a circulação de trens de carga, os quais já deveriam circular em vias segregadas há décadas (o tal Ferroanel não é nenhuma novidade).

Avisos na Estação Tatuapé em junho/2017: intervalos a partir de 20 minutos

Correr para entrar num trem, que muito provavelmente pertencia à Linha 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí), já que a autora da crônica é de Perus, significa se rebaixar e se colocar em risco. Bastava um vacilo para cair no vão e terminar como Tatiane Lago, que rompeu todos os ligamentos do tornozelo direito e quebrou os ossos de três metatarsos, além de ter trincado um deles.

Conforme apurado pela Folha, 989 pessoas caíram nos vãos das estações da CPTM no ano de 2016. Quem se acidenta pode precisar se submeter a fisioterapia e ainda ficar com sequelas. Se tem algo que alguém que mora na periferia não precisa, é sofrer uma lesão, principalmente com o emprego informal em alta.

E a consciência?

Desde que o COMMU surgiu em 2014, ficou nítido de que existem dois campos bem distintos quando o assunto é transporte coletivo. De um lado, as parcelas mais endinheiradas do campo progressista vivem numa bolha, de outro lado, aqueles que vivem de perto os problemas não nutrem interesse em lutar por soluções definitivas.

Talvez as parcelas mais endinheiradas do campo progressista achem a crônica linda, mas ela é preocupante. Negligência a gente não romantiza e nem normaliza. São atitudes assim que fortalecem a marginalização da periferia, simbolizada por aqueles comentários sobre a “etiqueta” em linhas como a 4-Amarela (Luz-Butantã) ou 2-Verde (Vila Madalena-Vila Prudente), sendo que o usuário é o mesmo. Quem usa o transporte sobre trilhos sabe do que eu estou falando.

Precisamos do Ferroanel, precisamos dos trens de carga devidamente segregados e a operação da CPTM nos finais de semana não deveria proporcionar intervalos maiores do que dez minutos.

Sem trens de carga brigando por espaço, a CPTM não precisa mais ter vãos imensos, pois se ela ampliar as plataformas ou colocar prolongadores nas áreas das portas dos trens, nenhuma locomotiva da MRS irá passar e arrebentar com tudo devido à diferença de tamanho dela e dos trens metropolitanos — também se diz diferença de gabarito, para usar um termo mais técnico e relativamente comum. Vãos menores reduzem a possibilidade de acidentes, tanto para quem corre, como para quem não corre.

Vãos menores na plataforma Estação Autódromo, facilitados pela ausência de circulação de trens de carga na Linha 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú)

Que 2018 traga outros ares para a discussão do transporte público. Tá aí algo que seria um verdadeiro milagre.

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por Caio César

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