A disputa cultural na sociedade moderna

O papel dos intelectuais na luta pela hegemonia popular

Tarik Dias
Tribuna da Pluralidade
6 min readJun 15, 2017

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O presente artigo tem a pretensão de tentar desenvolver as relações entre a complexificação da sociedade e seus desafios a serem enfrentados. Procurarei explicitar como que com o aparecimento da sociedade civil, a figura do intelectual ganha um papel de importância ainda maior na organização das lutas sociais.

Deve-se ter em mente que, com o termo "sociedade civil", não nos referimos a classificação de Marx e Engels que associavam a sociedade civil à produção, mas sim à tipificação de Antônio Gramsci, que classificou a mesma como uma série de relações sociais de direção político-ideológica, que tinham como função complementar a dominação Estatal. Sendo assim, a diferença das antigas sociedades que possuíam uma estrutura de complexidade mais baixa — as quais Gramsci chama de "orientais" — para as mais “modernas” — "ocidentais" — é a importância das formas alternativas de combate para a conquista do poder.

“ Não pode existir sociedade civil efetivamente autônoma e pluralista sem uma rede de organismos culturais, e vice versa”

Carlos Nelson Coutinho — Cultura e Sociedade no Brasil

Diferentemente das formais orientais de organização, onde a tomada do Estado era vista como a única forma do processo revolucionário ocorrer, a sociedade civil acarretará na descentralização da importância do Estado e o aparecimento da esfera da cultura como campo de disputa entre os diferentes setores. Consequentemente, a sociedade se organiza em uma constante batalha pela cultura, através dos chamados "aparelhos privados de hegemonia".

Com essa transformação, o intelectual deixa de ter seu papel ligado somente ao Estado e às classes dominantes, passando a ter um papel de disputa conivente com outros diversos setores da sociedade. O chamado “intelectual orgânico” tem seu nascimento em instituições que antes serviam como aparelhos de dominação, e agora passam a ser combatentes pela hegemonia na sociedade civil. Exemplos desse fenômeno são os intelectuais de partido, sindicatos e presentes no campo da educação.

“A tendência democrática de escola não pode consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada cidadão possa se tornar governante. “

Antonio Gramsci

Diante desse quadro, percebemos que, quando nos referimos a Brasil, esse processo de consolidação da sociedade civil se deu de maneira muito lenta, tendo apenas sido concluído apenas recentemente na história do país. Por exemplo, desde o processo de independência, que realizou a chamada “revolução pelo alto”, o Estado Brasileiro e a sua classe dirigente necessitaram da cooptação e da criação de instituições específicas que legitimassem o status quo, como por exemplo, as instituições de ensino superior e jurídicas, tendo sido o desenvolvimento da sociedade civil bem mais tarde.

Um dos principais autores que trabalhou com a superestrutura da cultura e da sociedade civil foi o filósofo húngaro Gyorgy Lukacs. O autor — refletindo sobre a importância das instituições culturais — , forjou o conceito de "intimismo a sombra do poder", onde ocorreriam o desenvolvimento de subjetividades que, embora tenham certa autonomia no seu desenvolvimento, se acorrentam perante às estruturas dominantes. Esse fenômeno pode ser exemplificado com o desenvolvimento da literatura romântica e naturalista no Brasil, onde o primeiro manifestando — sua preocupação com a subjetividade — demonstrava uma alienação da realidade e a segunda, ao cristalizar as condições eternas da miséria brasileira.

Desse modo, é de se observar que, após a complexificação da sociedade no Brasil, o país conseguiu desenvolver a chamada sociedade civil, o que, consequentemente, acarretou em uma mudança na forma de combate entre os grupos progressistas e a “nova” direita emergente.

Além disso, em uma maior dificuldade na organização dos movimentos sociais por causa da ramificação dos diversos setores, como por exemplo, entre Movimento Negro, LGBT, feminista, dentre outros. A direita, em contrapartida, foi capaz de se reorganizar e, em alguma maneira, se apropriar de parte desses novos movimentos e utilizar os aparelhos de hegemonia para conseguir uma manutenção nas formas de pensamento. Um exemplo disso é a utilização de personagens que, apesar de possuírem as características identitárias dos grupos minoritários, revelam uma forma de pensamento contaminada pela hegemonia dominante.

O ex-presidente Lula em comício. (Foto: Ricardo Stuckert/ PR)

Após os treze anos de governo do Partidos dos Trabalhadores (PT), a esquerda teve a falsa impressão de que somente a conquista dos aparelhos políticos seria o suficiente para a implementação das medidas necessárias para o estabelecimento da justiça social. Porém, a realidade se mostrou completamente inversa: os anos do governo do PT trouxeram uma grande decepção no campo da esquerda e, com isso, o enfraquecimento da mesma. Enquanto isso, o crescimento surpreendente da direita brasileira, representada atualmente por organizações como o “Movimento Brasil Livre”, “Vem pra rua”, e “Revoltados”, revela uma falha nas formas de luta dos campos progressistas na transformação da realidade brasileira.

Desse modo, é necessário que os outros âmbitos da sociedade civil, em especial o campo progressista, se conscientizem da necessidade da disputa dos aparelhos de cultura frente as os grupos dominantes. É importante que a esquerda tome consciência que a simples conquista do Estado não é o suficiente no combate dessas formas intimistas de subjetividade. Um exemplo é o apoio gerado por grande parte da sociedade civil ao ex-presidente Lula. No entanto, como não se havia conquistado a hegemonia de fato, esse mesmo eleitorado acabou por se submeter ao falseamento da realidade promovido por esses grupos.

Observação: Não se diz expressamente aqui que o Governo Petista teve a pretensão de ser de fato um governo de esquerda, e sim que, caso houvesse essa possibilidade, ela seria completamente frustrada por forças maiores do que a organização política pode dar conta.

Embora a situação brasileira seja peculiar, podemos encontrar em pensadores como Gramsci as formas de como esse combate ao intimismo elitista deve se estabelecer. O italiano, ao cunhar a expressão "nacional-popular", tinha como pretensão o desenvolvimento de uma cultura que pudesse se contrapor aos processos de revolução passiva e de cooptação dos intelectuais pelas instituições dominantes. No Brasil, essas formas de resistência apareceram em figuras como o compositor Noel Rosa, em sua música “ Com que Roupa”, na qual, fazendo uso da melodia do Hino Nacional, conseguiu fazer uma canção que reivindicava a tradição popular — diferentemente do próprio hino, que com sua intenção positivista, produzia uma falsa consciência sobre o real.

Outro exemplo que obteve algum êxito se trata do movimento tropicalista no Brasil, que apesar de distorcer as contradições imanentes na realidade brasileira e “eternizá-las numa abstração alegórica e irracionalista”, originou futuramente produções como “Janelas Abertas”, de Caetano Veloso. Não se trata de definir um modo artístico ou apenas uma visão de mundo, trata-se de um método — o "realismo critico" que unifica as várias expressões referentes ao pensamento social, e, portanto, tem como base unificar o povo com o intelectual.

“E sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado”

Feurbach — Prefácio da segunda edição de "A essência do cristianismo"

Em suma, trata-se do uso do intelectual brasileiro na reconciliação do mundo que foi alienado pela própria realidade de classe, através do combate da cultura dominante. Da mesma forma que Feurbach constatou que a religião é a alienação da essência humana, a cultura nos tempos modernos ganha o mesmo poder de mistificação. Assim, faz-se necessário o combate pela hegemonia nos campos da sociedade civil. Pois, diferentemente do que Theodor Adorno e Max Horkheimer pensavam, a indústria cultural não é um bloco monolítico onde brechas não podem ser encontradas.

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