A inconsistência do direito liberal no Instituto Mises Brasil (IMB)

Juan Ramón Rallo e a fragilidade argumentativa do Instituto Mises

Tarik Dias
Tribuna da Pluralidade
6 min readApr 20, 2017

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Link do artigo mencionado:http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2670

Recentemente, a pagina nomeada Instituto Mises Brasil, ou IMB — conhecida por seus posicionamentos radicalmente liberais — publicou um artigo(www.mises.org.br/Article.aspx?id=2670) que fazia a seguinte inferência:

“O Direito vem antes do Estado; e a propriedade privada originou o Direito”

Nesse texto, pretendo abordar como se dá a argumentação do artigo citado e, além disso, determinados problemas que aparecem ao longo da publicação.

“A propriedade privada e a ação humana são, necessariamente e por definição, anteriores ao Estado. Antes de surgir um estado os indivíduos já agiam; e a noção de propriedade privada já era intrínseca à ação do indivíduo.”

Percebemos com a referência feita a linha de argumentação que o texto começa. Parecido com algumas correntes jusnaturalistas, o autor coloca a propriedade privada como se fosse inata ao ser humano e presente na ação humana. Interessante notar que, após quatro séculos desde que essas afirmações foram feitas, autores surgem propondo as mesmas argumentações que carecem de análise histórica e antropológica.

Antes de citar as críticas históricas e sociológicas que poderiam ser feitas, vemos que o texto não apresenta as bases na qual propriedade privada ganha sua significação. Explicarei o ponto:

O texto comete um erro de argumento ao começar pelo que deveria ser o final da argumentação. O autor começa do “deve ser” e substitui pelo “ser”; isso ocorre pois o autor esquece de distinguir os juízos de fato dos juízos de valor. Essa ocorrência se deve pois, no mundo das sensações, há apenas a posse de algo. Desse modo, a passagem de posse para propriedade necessita de um caráter de normalização. Em síntese: algo que vá atribuir a legitimidade da posse, conferindo um caráter de propriedade.

Embora ainda sendo uma visão anacrônica, o argumento ganharia validade para ser discutido, pois as bases legitimadoras seriam mostradas. John Locke, por exemplo, legitima a posse com a definição de trabalho. Desse modo, para o inglês, a propriedade privada só se torna o que é após essa normalização feita pela ação mecânica.

“O trabalho constituía a propriedade; não se podia privá-los dela, uma vez que fixassem este trabalho em algum lugar. Assim sendo, percebemos que existe um elo entre o fato de subjugar e cultivar a terra e adquirir o domínio sobre ela. Um garantia o título do outro. Da mesma forma que Deus, ao dar a ordem para subjugar as coisas, habilitou o homem a se apropriar delas. A condição da vida humana, que necessita de trabalho e de materiais para serem trabalhados, introduz forçosamente as posses privadas.”

Logo mais abaixo, o autor faz a seguinte argumentação:

“Quando o Direito é determinado e impingido pelo estado, tem-se apenas um conjunto de legislações criadas pelos próprios legisladores. Consequentemente, tem-se inevitavelmente um conjunto de normas que o mais forte impõe sobre o mais fraco.”

Nesse ponto do texto, vemos a confusão que a falta do primeiro ponto mencionado acarreta. A citação parte da premissa que o Estado — idealizado pelos que não compartilham sua maneira de pensar — é um todo autonomizado da esfera social. O que os autores que defendem a importância do Estado para a propriedade privada fazem é, justamente, estabelecer balizas para a posse se tornar legitima. Mesmo se partirmos dos pressupostos de John Locke que legitima a posse pelo trabalho, apenas através do Estado que o direito começa a ter interferência objetiva, não se pautando apenas por um preceito metafísico.

Agora, passando a parte da argumentação em si para o conteúdo apresentado pelo autor — no tópico chamado “Realidade” — o autor faz o seguinte discurso:

“Se a tese socialista estiver correta, ou seja, se a propriedade privada realmente só surgiu após a criação de um ordenamento estatal, então surge um inevitável problema lógico e cronológico: como esse Estado nasceu? Como ele obteve suas receitas tributárias para pagar seu aparato policial, seus funcionários e seus juízes se não havia propriedades a serem tributadas?”

No início da citação, o escritor comete o erro de generalizar todas as categorias dos autores que divergem do seu pensamento como “socialistas” , um erro que os setores mais liberais vem cometendo com cada vez mais frequência. Ademais, no meio do parágrafo, ocorre uma falta de contextualização histórica, sendo colocado o nascimento do Estado de uma maneira altamente mecânica.

Como demonstrado por autores como Friedrich Engels, a propriedade privada tem sua origem derivada do desenvolvimento das forças produtivas, sendo a propriedade baseada no lucro um acontecimento relativamente recente.

“O desenvolvimento de todos os ramos da produção — criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos — tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra.”

Portanto, como mostra Engels, não é possível fazer a generalização do autor em associar diretamente a propriedade privada como concebemos hoje a origem do Estado. Consequentemente, percebemos o caráter ideológico da posição do autor, acabando por criar uma metafísica sobre a história com objetivos de tentar legitimar determinada forma de sociedade e apagar o sujeito sócio-histórico. Sendo assim, na sociedade atual, o direito tem a função de legitimar a tese de uma ideia eterna de propriedade privada

No direito privado, exprimem-se as relações de propriedade existentes como sendo o resultado de uma vontade geral. O próprio jus utendi e abutendi exprime, por um lado, o fato de que a propriedade privada se tornou completamente independente da comunidade e, por outro lado, a ilusão de que essa propriedade privada repousa sobre a simples vontade privada, sobre a livre disposição das coisas. Na prática, o abuti tem limites econômicos bem determinados para o proprietário privado, se este não quiser ver sua propriedade, e com ela seu jus abutendi, passar para outras mãos; pois, afinal de contas, a coisa, considerada unicamente em sua relações com a vontade, não é absolutamente nada, mas somente no comércio, e indepentemente do direito, torna-se uma coisa, uma propriedade real (uma relação, aquilo que os filósofos chamam uma idéia)”

Marx

Para terminar a análise dessa parte, vemos que o escritor — ao inferir um falso problema lógico naqueles que discordam do seu ponto de vista — se esquece de olhar a falsa argumentação que acabou criando, pois se o autor parte da premissa de um estado “natural” onde a livre iniciativa e a ação humana regulam a vida social, da onde surge, então, a degeneração do direito?

Para finalizar seu artigo, o texto apresenta no tópico chamado “conclusão”, novamente, a tese de um estado natural com a capacidade de se auto regular e apresentando os indivíduos segundo uma ontologia abstrata.

“Vale repetir: o estado de direito — isto é, o primado da lei — não requer um Estado (governo) para garantir um estado (uma situação) de direito. Somente sem um Estado será possível descobrir competitivamente qual é o melhor Direito. E a conclusão final é que se a propriedade privada e a liberdade são a origem do direito, então, por definição, um organismo que se baseia na coerção e na permanente violação da propriedade privada e da liberdade não pode criar outra coisa senão um Direito violentado e corrompido.”

Para não sermos repetitivos, podemos concluir algo de novo na apresentação desses dois parágrafos. Além da metafísica de um estado natural, o autor — nas três primeiras linhas — trabalha segundo uma igualdade abstrata presente em todos os indivíduos nessa época pré-estatal. Essa igualdade, por sua vez, será uma visão rústica de liberdade de ação. Analisando esse conceito, percebemos que o autor passa do abstrato para o concreto, e não ao contrário. Sendo assim, ele comete o mesmo erro dos idealistas, que não consideraram a situação material efetiva para depois passar para as abstrações.

“As premissas de que partimos não são arbitrárias, não são dogmas, são premissas reais, e delas só se pode abstrair na imaginação. As nossas premisses são os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto as que encontraram como as que produziram pela sua própria ação”

“Em oposição à filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui sobe-se da terra ao céu”

Karl Marx

Fica claro, após essa breve análise, a deficiência argumentativa e a consistência dos conteúdos apresentados. Embora seja óbvio o anacronismo dos argumentos apresentados pelo Instituto Mises Brasil, esse pensamento continua ganhando força na modernidade. É preciso mobilizar os diversos setores para desmascarar a realidade que se esconde atrás dessas práticas argumentativas. Tanto pelo seu caráter mistificador da realidade, quanto pelo seu caráter retrógrado.

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