A Lava Jato, Black Mirror e as algemas de Cabral.

O episódio White Bear (“Urso Branco”), em especial, tece críticas a comportamentos comuns dos brasileiros diante da operação e de abusos da Justiça .

Thiago Süssekind
Tribuna da Pluralidade
7 min readJan 21, 2018

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Acima, uma cena do episódio de Black Mirror "White Bear". Abaixo, Sérgico Cabral acorrentado nos pés ilegalmente, sem haver necessidade para isso. Dois espetáculos de linchamento público.

A Operação Lava Jato tem seus méritos. Reconhece-se a quantidade de reais já reinstituída aos cofres públicos, por exemplo. No entanto, é ela a responsável por cada vez mais abusos cometidos por agentes do Estado, que usam a lei como instrumento de perseguição política e que desrespeitam os direitos fundamentais, garantidos pela Constituição, de dezenas de cidadãos.

E por consequência tanto da operação quanto da atuação da imprensa e também da banalidade do mal na sociedade, observa-se passivamente à espetacularização do processo judicial e participa-se ativamente do linchamento público de figuras conhecidas. No episódio “White Bear”, de Black Mirror, aborda-se tais tópicos de maneira direta. A trama começa com uma moça, Victoria, acordando sem saber quem é ou como foi parar ali. Tudo o que ela acha é o retrato de um homem e outro de uma menina, que ela assume ser sua filha. Contudo, o episódio acaba tomando um rumo inesperado.

Fiquem avisados que, a partir de agora, haverá spoilers do 2º episódio da 2ª temporada da série Black Mirror, originalmente exibida no canal britânico Channel 4 e que depois teve seus direitos autorais comprados pela Netflix.

Depois de acordar, Victoria se vê sozinha em casa – onde acha apenas a fotografia de uma menina que supõe ser sua filha – e sem nenhuma memória. Assim, decide sair pelas ruas, mas apenas encontra pessoas a filmando com seus celulares. De repente, Victoria se vê perseguida por um grupo de pessoas mascaradas, até que, por sorte, acaba topando com outra mulher, Jem. Depois das duas conseguirem fugir dos assassinos – sob o olhar impassível de espectadores com seus telefones celulares –, Jem conta a Victoria sobre a realidade em que elas estão inseridas.

Um signo maligno, que pode ser visto nas televisões e celulares, hipnotizou a maio parte das pessoas – à exceção daquelas que são imunes, como ambas as protagonistas da trama – as transformando em meros espectadores, que andam por aí com seus celulares filmando tudo o que acontece e sem ajudar os outros, mesmo que sob o risco de morte. Um bando que ignora o sofrimento alheio. Enquanto isso, um grupo de outras pessoas, também imunes, se tornaram caçadores – e são quem aparentemente tentam matá-las ali.

Jem diz a Victoria que ambas precisam chegar a um lugar chamado de “White Bear”, ou “Urso Branco”, em tradução livre. Lá, encontraria-se segurança. Contudo, na jornada percorrida até esse lugar, a dupla passa por momentos assustadores, deixando Victoria em desespero. Situações que pareciam ser de vida ou morte – verdadeiramente agoniantes, para a personagem e à quem assiste a série. Até que, no fim, revela-se que todos os envolvidos diretamente – ou seja, tanto Jem quanto aqueles que, para Victoria, tentavam assassiná-la – eram atores.

No clímax do episódio, a protagonista consegue pegar o que achava ser uma arma de fogo e disparar, mas apenas confetes saíram do revólver. Neste momento, uma cortina se abre , revelando uma plateia enorme assistindo àquilo como se fosse uma peça de teatro.

Um espetáculo.

Victoria é amarrada, e à ela se revela que a menina na foto, que ela achava ser sua filha, era na realidade uma garota de seis anos chamada Jemima Sykes. A criança teria sido sequestrada por Victoria e seu noivo, Iain Rannoch, a poucos quilômetros de sua casa.

Explica-se que Iain torturou e matou a menina, e em seguida queimou seu corpo. Enquanto isso, Victoria teria apenas gravado as atrocidades pela tela do seu telefone celular. A única coisa encontrada da garota não foi um membro de seu corpo ou sua vestimenta, mas sim um ursinho branco que ela possuía – daí o nome “White Bear” – que se tornaria um símbolo da investigação e da comoção que tomou o Reino Unido após o assassinato.

Já o desenho que, teoricamente, teria hipnotizado a todos na fantasia criada para Victoria, havia sido reprozuido com o intuito de ser idêntico à tatuagem que tinha Iain – forma pela qual teria sido a identificação do assassino.Também é revelado que o mandante do crime se suicidou, no interior de sua cela, enquanto aguardava julgamento.

Insistindo que estava “sob o feitiço de Iain”, a sentença de Victoria foi sofrer a mesma experiência da sua vítima, repetidamente, todos os dias. Logo depois de todas essas revelações, tem-se uma cena chocante: a personagem é levada de volta ao “complexo penitenciário” onde a sua punição acontece, sendo no caminho insultada e tendo contra ela arremessados pedras, tomates e tinta vermelha. Ao fim do dia, Victoria, em desespero, é torturada por eletrodos na sua cabeça, que a fazem esquecer dos acontecimentos no dia.

A tortura como sentença contra Victoria – que se assemelha àquela que, na mitologia grega, diz-se que sofreram Íxion (rodando e pegando fogo eternamente), Tântalo (que nunca, por todo o sempre, consegue saciar a sua fome e sua sede) e Sísifo (que precisa carregar uma pedra até o cume de um morro repetidamente por toda a eternidade) – fala muito sobre fenômenos judiciários que, no Brasil, a Lava Jato estimulou e intensificou.

O primeiro é a transformação da pena – e não só isso, mas da prisão em si e até de todo o processo penal – em um espetáculo. Como a “peça de teatro” na qual Victoria sofre violentamente, todos os dias, sob os olhares de dezenas ou centenas de pessoas.

Na verdade, o que acaba acontecendo é que a dor se torna um espetáculo. E, no Brasil – graças à Lava Jato – podemos observar esse fenômeno de camarote: tornou-se comum pessoas celebrarem o fato de que criminosos estejam presos e algemados. Não só isso, mas expostos, com o cabelo raspado, uniformes e, de preferência, sofrendo — ou com a aparência de estarem sofrendo. De preferência, sempre humilhados.

É o caso, por exemplo, do Fantástico mostrando Eike Batista careca, sem o seu implante capilar. Um fato que apenas por ter se tornado notícia já evidencia a espetacularização sobre a qual nos referimos. Qualquer uma das mais de cem conduções coercitivas – a maior parte fora da legalidade – realizadas a mando de Sérgio Moro, feitas para ganhar as capas de jornais. Mas também há eventos específicos a serem citados.

Os casos são muitos: indo mais atrás, a Veja retirou ilegalmente fotos das unidades prisionais que mostravam Marcelo Odebrecht dentro do cárcere. Várias e várias reportagens de TV, inclusive uma em especial do mesmo Fantástico, mostram Sérgio Cabral preso. Noticia-se o que os presos comeram de “ceia de Natal” nos presídios em que agora ficam.

E talvez o melhor exemplo de todos seja o das pessoas filmando – e outras assistindo, rindo – ao ex-governador do Rio Anthony Garotinho gritando em desespero ao ser preso. Pouco depois, o político alegou ter sido agredido dentro da cadeia. No entanto, novamente se riu dele – inclusive nos maiores noticiários do País, como o Jornal Nacional, que debocharam de sua acusação.

Sendo assim, é evidente um paralelo que se traça entre o episódio e o caso Garotinho: independentemente dos crimes que possa ter cometido – apesar de ele sequer ter sido julgado, e portanto, tecnicamente, ainda ser inocente – o desejo de vê-lo sofrer era muito maior do que de ver Justiça feita. Com Victoria, algo bastante similar lhe afligiu: ela foi humilhada e torturada pelo crime que cometeu – e as pessoas também riram, alheias ao seu sofrimento, de forma a apenas a filmarem, contentes em vê-la desnorteada – ou lhe xingaram e atacaram.

E, enquanto isso, a notícia de que, nos últimos dias, o Ministério Público chegou à conclusão de que a gravação da noite em que Garotinho disse ter ageedido foi adulterada passou despercebida. Ou seja: é muito provável que o ex-governador tenha realmente sido agredido. Mas os jornais televisivos não disponibilizaram seu tempo para isso.

O pior é que, assim como a Justiça mostrada no futuro supostamente distópico de Black Mirror, aqui no Brasil se observa que a humilhação do condenado – o linchamento público de sua figura, por se assim dizer – bem como a espetacularização de todo o seu processo são procurados. São encarados como um “objetivo”, sob o olhar entusiasmado da grande maioria das pessoas, que apenas filma e aplaude qualquer operação, não importando o quão absurda ou contra a Lei elas tenham sido.

Outro caso que simboliza esse aspecto do Judiciário atual perfeitamente diz respeito ao fato de Sérgio Cabral ter tido até mesmo os seus pés algemados, durante a transferência de presídios a qual foi submetido esta semana. O problema legal disso é que, em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou a Súmula 11. Desde então, o uso das algemas só são autorizadas caso haja resistência ou “fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”.

Sérgio Cabral Filho, ex-governador do estado do Rio de Janeiro, nunca demonstrou sinais de violência no cárcere. Ele também nunca tentou escapar da prisão. O que leva à pergunta: por qual razão ele foi algemado até nos pés então?

A razão, ao meu ver, parece simples – e guarda várias semelhanças com a história fictícia de Victoria. A intenção era tanto fazê-lo sofrer quanto tornar essa dor, da humilhação, pública. É uma prática de Justiça, portanto, pouco condizente com o século XXI, e atual apenas em tempos medievais.

Mas a população no geral, assim como em Black Mirror, apenas observa pelo celular, ou então acha divertido e justo isso acontecer com um condenado. O problema é quando os abusos legais – diante da falta de respeito aos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente – começam a fazer mal a um conhecido de um amigo. Depois a um vizinho, e a um membro da família. Até chegar na própria pessoa.

Aí, assim como no poema de Martin Niemöller, já não há o que fazer: “agora estão me levando/ mas já é tarde/ não há ninguém para/ se importar com isso”.

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Thiago Süssekind
Tribuna da Pluralidade

Líder Estadual do Acredito-RJ (2020-2022) | Advogado | Direito-UERJ | Contato: tsussekind@hotmail.com | Twitter: @ThiagoSussekind