A mistificação liberal da liberdade individual

Como o velho pensamento ainda possui o poder de fetiche da realidade

Tarik Dias
Tribuna da Pluralidade
6 min readJul 6, 2017

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Introdução

Esse artigo tem como pretensão discutir a concepção de liberdade individual proposta por determinados grupos e provar seu caráter ideológico (ilusório) diante da realidade social instituída. Para realizar tal empreitada, analisaremos a categoria de indivíduo imposto pelos setores mais conservadores e como o mesmo conceito se relaciona com os processos sociais imanentes em uma sociedade burguesa.

Desenvolvimento

Segundo os grupos mais liberais entre o meio acadêmico, a liberdade individual teria como causa uma dialética entre três elementos: a liberdade, a razão e a individualidade. Enquanto razão, quer-se dizer a capacidade do sujeito de ser autêntico, e assim, reconciliar as antíteses entre sujeito — objeto e aparência — e essência. Portanto, a razão na sociedade burguesa tomou forma de uma subjetividade racional, sendo ela um exercício individual da capacidade de conhecimento.

Dessa forma, a categoria da razão está intimamente vinculada à liberdade, uma vez que é necessário ser livre para que se possa racionalizar o existente. Essa forma de ver a filosofia tem como seus antecedentes os filósofos alemães Kant e Hegel. Um deduz a liberdade enquanto único verdadeiro espírito; o outro, supõe a mesma enquanto estado de autonomia da vontade.

“A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, a liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de coisas estranhas que a determinem; assim como necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de coisas estranhas”. (KANT, 1974)

Em suma, liberdade, razão e individualidade aparecem como concepções idealistas de mundo que não possuem uma conexão com a exterioridade social, — apesar de Hegel historicizar a liberdade, a mesma não possui um caráter materialista — se resumindo a uma dualidade entre necessidade e liberdade, sendo a supressão da necessidade individual a condição de possibilidade para a liberdade.

Embora as concepções de liberdade pelos filósofos da direita não possuam exatamente as características herdadas pelos filósofos citados, a dita liberdade individual — anunciada pelos intelectuais na contemporaneidade — tem a semelhança de existir apenas como categoria subjetiva, seja ela ética ou jurídica, e uma característica ahistorica, que não vê a individualidade como produto externo ao homem. Consequentemente, ao divagarem sobre a categoria "indivíduo", tem como principal erro atribuir essa característica ao todos os agentes sociais, não importando a origem social dos mesmos.

No entanto, como demonstram os estudos tanto sociológicos quanto antropológicos, a categoria de indivíduo tem como origem não um caráter metafísico — como propõem os liberais — , mas sim a característica de ser histórica e ter como origem o próprio embate social.

Comprovando a tese, o sociólogo Simmel — em seu texto “ A metrópole e a vida mental” — associa o fenômeno da individualidade como consequência da vida urbana, já que através da razão gerada pela divisão social do trabalho, o homem conseguia se diferenciar do coletivo, tendo atribuído a este comportamento o nome de "snobismo".

“ O século XIII lançou ao homem o repto de se libertar de todos os laços históricos no Estado e na religião, na moral e na economia. ” (…)

“Esta diferenciação leva à individualização das características mentais e psíquicas, que devem aqui ser entendidas em sentido restrito, e que é impulsionada pela cidade proporcionalmente à sua dimensão. ”

Dessa forma, como mostrado acima, a individualidade e, portanto, as liberdades individuais, aparecem como construções sociais historicamente determinadas.

Tendo sido comprovado que os argumentos liberais responsáveis por propor a liberdade individual como imanente a todo processo histórico não passam de uma má interpretação, é necessário que se dê um passo a mais ao que foi dado pelo sociólogo Simmel na compreensão da realidade.

Além de categorizar a liberdade individual pelo seu caráter sócio-histórico, deve-se compreender a mesma como uma consequência dos processos objetivos da realidade. Diferentemente da compreensão idealista da história, que identificava a liberdade como um processo individual dependente apenas do próprio sujeito, deve-se a partir de agora entender que a liberdade individual só pode ser realizada no momento em que as contradições entre os mais diversos setores da sociedade forem sendo superados, dando origem à possibilidade da liberdade.

Herbert Marcuse, em seu texto “ Filosofia e Teoria Crítica”, expõe as contradições entre as duas correntes filosóficas. Para o pensador, a segunda corrente tem seu mérito em desmistificar a liberdade do seu caráter inteligível, associando a mesma aos processos reais da sociedade. Para os intelectuais da teoria crítica, através da condição material, a liberdade individual — clamada pelos setores da burguesia — se mantinha limitada às classes altas, sendo necessária a transformação da mesma para que as outras classes possam conquistá-la.

Desse modo, a teoria crítica retira o caráter metafísico do indivíduo e associa aos processos de subsistência do homem; dessa forma, compreender o caráter de exploração do trabalho presente na sociedade capitalista é condição para que se promova a liberdade.

Diferentemente das velhas falácias que associam o marxismo ao autoritarismo e a luta contra a liberdade, podemos afirmar que o problema principal para essas correntes é justamente fazer com que a liberdade individual se traduza como condição real e não ilusória. Assim, trata-se de substituir as relações independentes de sua vontade, por um “plano geral de indivíduos livremente associados”.

Istaván Mészáros, em seu livro “Filosofia, Ideologia e Ciência Social”, afirma que Marx tem como preocupação a liberdade pessoal — entendida como controle significativo das relações interindividuais pelos próprios indivíduos — como oposição às condições de existência que escapam à sua vontade.

“Na representação, os indivíduos são mais livres sob a dominação da burguesia do que antes, porque suas condições de vida lhes são contingentes; na realidade eles são menos livres, porque estão mais submetidos ao poder das coisas”

Marx, Karl (Ideologia Alemã)

Desse modo, a liberdade aqui não aparece enquanto ilusão ou interioridade, preservando tudo como estava, mas sim como possibilidade real.

Há de se ressaltar também que o conceito de liberdade individual sofre grandes transformações ao longo da história. Conceituamos que, com os filósofos acima, o indivíduo — por possuir um caráter subjetivo onde só se relaciona consigo mesmo — desenvolve uma noção de liberdade onde a propriedade aparece como fonte de manifestação da mesma. Visto isso, para essas correntes, a propriedade teria sua extensão não só na posse dos objetos exteriores ao indivíduo, mas ao próprio sujeito como governante de si próprio.

Ancorando nessas convicções, as teses liberais, através de seu conceito universal de homem, justificam as deploráveis condições materiais existentes, alegando que a supressão das mesmas acarretaria no fim da liberdade individual.

Contudo, como já foi comprovado durante esse artigo, liberdade enquanto conceito abstrato e idealista não possui a capacidade de analisar a complexidade social presente na sociedade moderna. Se quisermos seguir a análise dos liberais, afirmaríamos que a esquerda quer sim acabar com o indivíduo e sua liberdade, porém se trata do indivíduo burguês que será suprimido. Marx, procurando esclarecer esse pensamento, escreve em seu manifesto:

“ Por conseguinte, na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista, o presente domina o passado. Na sociedade burguesa o capital é independente e tem individualidade, enquanto pessoa enquanto a pessoa é dependente e não tem individualidade.”

“E o burguês equipara a abolição de semelhante estado de coisas à abolição da individualidade e da liberdade! De fato, é a abolição da individualidade burguesa, da independência burguesa e da liberdade burguesa”

O filósofo alemão, preocupado com o tema da liberdade, ainda descreve nos Manuscritos de Paris que, através da relação do trabalhador e a propriedade privada, tem-se como consequência a sua reificação, e portanto, a supressão da liberdade. Isso se deve pois, como descreve Marx, a propriedade privada encarna na atualidade características semelhantes a religião. Quanto mais o homem põe em Deus, menos reteria a si próprio. Da mesma forma funcionaria o trabalho dentro do regime privado. Para o filósofo, o homem se distinguiria do animal devido à sua capacidade consciente de lidar com os objetos. Porém, devido ao seu trabalho estranhado, o trabalhador tem como objetivo de vida o trabalho, apenas como forma de subsistência. Consequentemente, Marx descreve a alienação do ser genérico humano, que impediria o florescimento da autonomia do homem.

Conclusão

Tendo exposto todos esses argumentos, fica claro que a liberdade e o indivíduo tem como dependência principal as condições materiais de existência e, para isso, não se deve abandonar o estudo ontológico da economia-política.

Da mesma forma que Marx teve como principais adversários os jovens hegelianos, que se caracterizavam por expor a velha ideologia alemã, na atualidade esse pensamento se mistifica, aparentando-se como novo. De fato, os personagens se repetem duas vezes: “primeiro como tragédia, depois como farsa”.

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