A universidade pública e o neoliberalismo.

A universidade como fonte de autonomia da sociedade.

Tarik Dias
Tribuna da Pluralidade
7 min readOct 11, 2017

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Recentemente, com as mudanças político-sociais no país — isto é, o fim do governo petista e a ascensão de uma racionalidade neoliberal presente tanto nos campos da economia quanto da cultura — as universidades públicas não ficaram de fora como uma das principais pautas dos grupos de direita que atuam no ambiente social brasileiro. Diante de um contexto caótico, é chegada a hora dos movimentos de esquerda começarem a tentar entender o fenômeno do neoliberalismo em sua essência, e não como as representações ideologizadas se manifestam aos olhos do indivíduo. Em suma, é necessário que os movimentos de esquerda comecem a olhar para os espaços públicos como a universidade e identificar sua importância dentro de um regime que impõe uma nova racionalidade. O debate no campo da educação, que no Brasil foi representado por grandes nomes da esquerda como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, deve ser defendido contra o indivíduo empresarial que se impõe na educação de hoje.

Tendo isso como ponto de partida, podemos afirmar com toda a certeza que o modelo empreendido pela nova direita não se resume à volta ao modelo do laissez faire, e com isso, a simples redução do Estado nos campos da economia. Se trata de um novo modelo de gestão, que baseada em uma nova racionalidade, impõe o modelo microeconômico a todas as esferas da vida social. Como consequência, os espaços garantidores da liberdade são suprimidos pela moderna empresa racional.

“O fundamento último de toda esta ordem econômica colocada sob o signo da liberdade é, com efeito, a violência estrutural do desemprego, da precariedade e da ameaça de despedimento que ela implica: a condição do funcionamento “harmonioso” do modelo micro-econômico individualista é um fenômeno de massas, a existência do exército de reserva dos desempregados”.

Pierre Bouridieu.

Podemos explicar essa passagem pela metáfora utilizada por Bourdieu em uma entrevista para o jornal Le Monde, na qual afirma que essa mudança de racionalidade — principalmente pela instituição do Estado — é representada pela passagem da mão esquerda do Estado para a direita. Assim, enquanto a primeira se refere ao cuidado, do conforto e do bem-estar, a educação, os cuidados de saúde e a segurança social, a mão direita seria encarregada do orçamento de estado, das finanças e dos impostos, da “economia”, e da “justiça”.

Ao delimitarmos como campo de observação o espaço acadêmico, percebemos que a racionalidade neoliberal se impõe através de duas maneiras principais: a defesa sistemática do modelo de pagamento das universidades por aqueles com “renda” suficiente, e a privatização de fato das universidades públicas.

Estabelecendo isso como ponto de partida, a intenção desse texto é justamente analisar a ideologia desses grupos emergentes e sua contradição com os valores de uma democracia ativa que não se limita aos meros processos institucionais, como por exemplo, o Legislativo e o Executivo. Porém, para que essa empreitada tenha êxito, não devemos começar pelas aparências dos fenômenos, pois a pura manifestação dos acontecimentos não nos possibilitar apreender a totalidade dos fenômenos, e sim uma visão caótica do todo.

Sendo assim, deve-se ter paciência se pretendermos comprovar a importância das universidades e a implementação de uma democracia radical. Tendo em vista esses fatores, começaremos concebendo formas abstratas de agir e só após aplicaremos na análise das universidades.

Com o propósito de começarmos, podemos utilizar o filósofo Jürgen Habermas, que em seus escritos se incumbiu de historicizar o nascimento da esfera pública e suas implicações para um regime democrático.

No olhar do intelectual, com o nascimento da modernidade, o surgimento de uma reprodução social burocratizada passou a ser a forma determinante na contemporaneidade. Como consequência, os indivíduos estariam sujeitos a um agir com relações afins, ou seja, uma instrumentalização das ações.

Para exemplificar o uso da burocracia nesse texto podemos utilizar o tipo ideal de Max Weber:

“A natureza específica da burocracia se desenvolve mais perfeitamente quanto mais desumanizada, quanto mais completamente consegue eliminar das relações oficiais o amor, o ódio e todo elemento puramente pessoal, irracional e emocional que escapam ao cálculo”

Continuando a tradição da escola de Frankfurt, Habermas utiliza o método dialético para explicar as consequências da razão instrumental. Dessa forma, para o autor, a ação instrumental que tinha a capacidade de libertar o homem se torna instrumento de dominação na modernidade. Consequentemente, essa formal racional-cientifica de se conceber o conhecimento, penetra os mais diversos campos sociais gerando uma objetificação dos sujeitos.

Obviamente, as ideias apresentadas por Habermas tem como raiz os primeiros intelectuais da escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, que através das suas influencias weberianas, decifram a dualidade da ação racional no capitalismo monopolista.

“Quaisquer que sejam os mitos que possa se valer a resistência, o simples fato de que eles se tornam argumentos por tal oposição significa que eles adotam o princípio da racionalidade corrosiva da qual acusam o esclarecimento. O esclarecimento é totalitário”.

Apesar de todos esses autores lidarem com as questões do novo tipo de racionalidade emergente na contemporaneidade, apenas Habermas,ao fugir do pessimismo de seus predecessores, concebeu na modernidade uma saída que não fosse através da racionalidade instrumental.

Para o intelectual, os novos tempos também seriam caracterizados pelo nascimento da esfera pública e dessa maneira um novo tipo de ação poderia existir. Diferentemente da racionalidade que objetifica das instituições burocratizadas, a esfera pública poderia se valer do que ele chamou de ação comunicativa.

Como característica desse novo tipo de conduta, os agentes tem a possibilidade de interagir sem uma relação de dominação que as perpassa. Dessa maneira, o agir comunicativo, através das esferas públicas, tem como função a discussão das normas sociais sem que os regimes da técnica dominem os espaços.

“Por outro lado, entendo por agir comunicativo uma interação mediatizada simbolicamente. Ela se rege por normas que valem obrigatoriamente, que definem as expectativas de comportamento recíprocas e que precisam ser compreendidas e reconhecidas por, pelo menos dois sujeitos agentes”.

Consequentemente, o sociólogo enxerga nessas esferas a capacidade de emancipação social, onde a sociedade civil tem a possibilidade de discutir os problemas sociais e pressionar as instituições políticas.

Desse modo, o autor constrói uma dualidade das relações sociais, onde enquanto a esfera pública seria marcada pela intersubjetividade, ou seja, o diálogo como tentativa de convencimento e formação de uma opinião pública, as instituições burocratizadas pela ação instrumental são marcadas pela dominação e por consequência a tentativa de tirar a autonomia do campo público.

Esse conflito entre as duas formas de conduta se fazem mais visíveis quando o filósofo ao tratar do confronto entre o agir comunicativo e a ação instrumental, responsabiliza o campo da economia capitalista e o Estado pela apropriação das formas de intersubjetividades.

Ao apresentarmos o quadro onde as esferas públicas estão em uma constante tensão com os campos da economia e do Estado, percebemos que no Brasil a reprodução desse conflito se faz nos dias de hoje através do neoliberalismo. Dessa maneira, a racionalidade técnica encarnada pela nova ideologia liberal, mobiliza formas de conceber o espaço público que retiram do mesmo seu caráter humano e portanto comunicativo.

Assim, as universidades públicas não deixam de ter seus espaços invadidos pela mesma racionalidade, onde a gestão mercantilizada estabelece critérios que moldam o espaço universitário e os agentes que passam a interagir sobre o modelo do agir empresarial, onde cada individuo gerindo a si mesmo não se reconhece no outro e portanto é incapaz de realizar a intersubjetividade que era presente nos espaços públicos. Um exemplo concreto do nascimento das novas formas de se conceber o espaço público é o aumento maneiras técnicas de se medir a educação pública e privada em relação a sua consequência econômica. Como por exemplo, o surgimento do CERI- Centro para Pesquisa e Desenvolvimento Econômico e o uso de políticas públicas baseadas em termos como capital humano.

Uma pequena observação que pode ser feita é que o simples fato da universidade ser pública não a coloca dentro das relações da de dominação da técnica.

Ao analisar as diversas propostas frequentemente afirmadas pelo campo da direita exigindo o pagamento de mensalidades ou até mesmo a privatização das universidades, percebemos que se trata de um pensamento que acaba por não se libertar de um tipo estrito de racionalidade. Para usar a metáfora weberiana, poderíamos dizer que os indivíduos que pronunciam essas ideias não se libertaram de suas jaulas de ferro.

“Essa inversão da ordem, por capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica”.

Por outro lado, não devemos nos enganar e criar projeções que escondam o real — se o fizéssemos, estaríamos optando por trocar uma ideologia por outra, e dessa forma, não nos diferenciaríamos daqueles que criticamos. Portanto, é necessário que se afirme que as universidades públicas em seu estado atual não podem ser caracterizados como democráticas quando se menciona o acesso à mesma. Contudo, a aniquilação dos espaços públicos pela racionalidade burguesa é a destruição da possibilidade para uma sociedade democrática.

É necessário que se entenda que a forma neoliberal de pensamento que se impõe nos dias de hoje não se caracteriza apenas por uma menor concentração do Estado. Visto isso, deve-se compreender o neoliberalismo como novas técnicas de gestação nos campos da educação, que no caso das universidades públicas, possuem a intenção de mercantilizá-las e converter seu caráter comunicativo para um racionalidade instrumental.

Ao permitirmos que a subjetividade neoliberal seja produzida no campo das universidades públicas, percebemos a colonização da esfera pública pela governamentalidade empresarial, que como ilustrado nos parágrafos anteriores, se mostra prejudicial no campo da sociedade civil. Tendo isso em mente, podemos dizer que o grande nos dias de hoje é a fuga ao modelo tecnocrático de gestão e a defesa de formas mais democráticas de interação.

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