Barroso x Gilmar Mendes
Todos os textos que você deve ter lido enchiam a bola do primeiro. Eu prefiro o segundo.
Uma porção de gente se posicionou de maneira favorável a Barroso em sua briga com Gilmar Mendes, compartilhando o vídeo da discussão em redes sociais e tudo. É parecido com o que fez o Jornal Nacional, ou o BuzzFeed News, que parecem se consolidar como veículos de imprensa populistas. Mas como discussões de tribunal estão cada vez mais virando política, que por sua vez vem se assemelhando ao futebol, vale um verdadeiro tira-teima para sanar as dúvidas em relação às falas de ambos os ministros.
Gilmar Mendes estava com a palavra na sessão plenária, e fez três críticas a outros ministros do Supremo Tribunal Federal. Primeiro, se referiu à presidente Cármen Lúcia, que se sentindo como sempre a detentora do monopólio das virtudes, fez algo esdrúxulo: não pautou as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), especialmente por se referirem à execução da pena depois da condenação em segunda instância.
A Constituição não deixa muita margem para interpretação, dizendo, no inciso LVII do artigo 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. No entanto, considerando que muitos ministros se tornaram políticos, o STF decidiu por permitir a prisão com a condenação na segunda instância – mesmo ainda havendo direito a recurso. À época, a comunidade jurídica fez bastante barulho, e o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) chegou até a escrever uma nota de falecimento da Constituição.
Em 2018, com as ADCs, acreditava-se que com os votos de Marco Aurélio, Dias Toffoli, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Rosa Weber, o respeito à Constituição finalmente votaria. Mas essa decisão livraria Lula da prisão, algo que Cármen Lúcia, com a prepotência de uma Chefe de Estado populista – para manter o status de rainha das redes sociais – não podia deixar acontecer. E, em uma aposta arriscada, pautou antes o habeas corpus preventivo do ex-presidente da República, pois assim haveria mais chance de algum desses ministros votar com a bancada populista de Barroso e Fachin.
Gilmar falou o óbvio, isto é, que as ADCs deveriam ter sido votadas, dizendo ser “um processo objetivo que já estava com pauta suscitada pelo eminente relator do processo [Marco Aurélio]. Afinal, questões gerais devem preceder as específicas. Em seguida, completou: “E eu acho que estamos vivenciando no Brasil umas falsas questões. Eu estou há 15 anos e eu nunca vi problema para pautar qualquer processo”.
Pois bem, fazendo questão de prosseguir, alfinetou Luiz Fux pela sua decisão, naquela mesma data, de suspender o julgamento de auxílio-moradia. O ministro, que assim como Barroso é da UERJ, decidiu agradar os juízes federais que inclusive entraram em greve pelo privilégio. Era claro para todos que o Supremo acabaria por limitar o recebimento do benefício aos juízes que trabalham fora de suas cidades. Fux adiou essa definição, e foi cutucado por isso.
E, por fim, o inspirado Gilmar também fez declarações dirigidas a Barroso. Cabe explicar que uma das questões ali discutidas se tratava do veto de doações ocultas a candidatos. O ministro, embora concordando com tal veto, achou pertinente comentar acerca de outras intervenções do Supremo no processo eleitoral, em especial a proibição às doações de empresas.
“Eu quero ver alguém que é capaz de indicar o dispositivo constitucional que a doação de empresas privadas viola”.
A resposta é nenhuma, mas de uns anos para cá o Supremo Tribunal Federal tem se visto no dever de legislar, assumindo a função que deveria pertencer ao Congresso Nacional. E é daí que veio a última cutucada, dessa vez dirigida a Barroso de maneira direta:
“Ah, agora eu vou dar uma de esperto e vou conseguir a decisão do aborto. De preferência, na Turma, com dois, com três ministros”.
Veja bem, aqui não se trata da minha opinião pessoal no que diz respeito o aborto. Eu tendo a concordar com a tese de, considerando que não há um sistema nervoso central desenvolvido passados três meses da concepção, dever-se-ia permitir que as mulheres pudessem abortar. A medida salvaria a vida de milhares delas, que precisam ir para clínicas ilegais com médicos sem qualificação nenhuma.
Mas essa é uma matéria que cabe ao Legislativo. Não deveria caber ao Supremo criar leis; eles sequer foram eleitos. Cabe aos representantes do povo, no Congresso, aprovarem a questão. Mas Barroso passou por cima disso, como Gilmar afirmou, na Primeira Turma do STF (onde há 5 ministros apenas). Votaram com ele Rosa Weber e Luiz Fux. Já Marco Aurélio e Edson Fachin foram favoráveis ao habeas corpus, mas não endossaram a visão do professor da UERJ quanto a autorizar o aborto. Por 3 votos a 2, ele conseguiu o que queria, como um bom deputado.
Depois de tudo isso, aí sim que Barroso deu o piti que viralizou mais do que aquela disputa entre ratos da ficção pelo Facebook. Disse ele: “Me deixa de fora desse seu mau sentimento, você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo vossa excelência vir aqui fazer um comício cheio de ofensas, grosserias. Vossa excelência não consegue articular um argumento, fica procurando, já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para vossa excelência é ofender as pessoas, não tem nenhuma ideia, nenhuma, nenhuma, só ofende as pessoas”.
O tira-teima, infelizmente, não consegue registrar nada de válido na fala do ministro para comentar. Afinal, apenas se proferiram ofensas. Não há aí nenhum argumento para rebater às falas de Gilmar Mendes. Mas, mesmo assim, é Barroso que ganhou a discussão sob a ótica do povão nas redes sociais.
Sim, ele que usa o Supremo para agir como político. Há pouquíssimo tempo, ao decidir e alterar o indulto concedido pela presidência da República, tomou uma atitude digna de impeachment, desrespeitando o que a Constituição define como “competência privativa” do Chefe do Executivo. E Gilmar Mendes, que mais uma vez apenas defendeu a Carta Magna deste País, saiu novamente como vilão – com o auxílio de sempre da Globo, é claro.
Algum dia – não hoje, não amanhã – os historiadores vão se debruçar sobre o período que vivemos. Só então se fará Justiça, e prevalecerá a verdade: verão, longe das agarras da polarização política, que estamos imersos em um contexto de exceção. A Lei é usada como instrumento político, e persegue-se candidatos à presidência. Os partidários deste, porém, são incapazes de ver que os abusos já chegaram a atingir todos os seus adversários com magnitude similar. As pessoas comuns, por sua vez, já começaram a ser afetadas. Mas se a Lei não vale nem para o Aécio, como defender o pobre que sofre das truculências policiais, por exemplo?
Quando esse momento chegar, o Supremo vai ter deixado de ser um órgão político com pretensões de se tornar Congresso Nacional. E o Estado Democrático de Direito vai ter prevalecido, mesmo tendo sofrido tantos ataques, à esquerda e à direita. Esse dia há de chegar. E vai chegar.
Bônus
Depois de Barroso proferir todos aqueles impropérios, Gilmar terminou com uma alfinetada direta:
“O senhor deveria fechar seu escritório de advocacia!”
A cutucada se explica por duas razões possíveis. A primeira é o fato de, após a saída do ministro do escritório — que passou ao controle de seu sobrinho — este cresceu muito. A outra interpretação possível diz respeito ao fato de Luís Roberto Barroso ter advogado pela Globo antes de ser indicado para o Supremo, o que deixou muitos petistas enfurecidos no ano de 2013. Assim, Gilmar teria deixado implícito que o ministro carioca continua a seguir os interesses da família Marinho. Contudo, não dá para saber exatamente com qual das duas possibilidades a fala foi dita.