Escola sem partido e seus paradoxos

As consequências causadas pelo discurso retrógrado dos defensores do ESP

Tarik Dias
Tribuna da Pluralidade
6 min readMay 7, 2017

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Para começarmos a discutir o projeto Escola Sem Partido (ESP) na atualidade, é necessário contextualizarmos em que momento essa crítica a escola moderna é apresentada na contemporaneidade. Após treze anos de governo petista, a esquerda conseguiu algum espaço na política brasileira. No entanto, a curta vitória obtida por esses setores não conseguiu produzir uma diferente espécie de cultura no Brasil. Sendo ainda hegemonicamente preenchida com valores conservadores na realidade social, acabou por dar origem a grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e grupos que reivindicam o projeto de uma escola sem partido.

Tendo contextualizado o surgimento do projeto, pode-se começar a debater sobre as pautas indicadas na presente proposta. Em primeiro lugar, pode-se identificar no movimento a tentativa de se auto-legitimar através de uma propaganda defensora da liberdade educacional. Essa enunciação se deve a uma falsa crença em que o alunado estaria sendo submetido a uma hegemonia de ideologias de esquerda no interior do ambiente educacional. Sendo assim, o projeto Escola Sem Partido pretende que se instale uma concepção de escola neutra.

À luz destes fatos, recorreremos de uma análise discursiva dos argumentos apresentados no site do ESP. Minha pretensão com isso é parecida com a de Michel Foucault ao instituir uma arqueologia dos regimes discursivos. Sendo assim, se trata de entender a lógica dos enunciados e tentar compreender suas consequências no campo social.

O problema dela [da arqueologia] é, pelo contrário, definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los. [É] uma análise diferencial das modalidades de discurso (FOUCAULT, 2008, p. 157–158).”

“No Brasil, entretanto, a despeito da mais ampla liberdade, boa parte das escolas, tanto públicas, como particulares, lamentavelmente já não cumpre esse papel . Vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas, essas escolas se transformaram em meras caixas de ressonância das doutrinas e das agendas desses grupos e dessas correntes (ESP, Apresentação, 2016, p. 01)”

Para começar com a primeira citação, já seria extremamente complicado, pois imaginar alguma instituição social que não tenha nascido com um objetivo ideológico seria uma tarefa impossível. Por exemplo, as próprias escolas como conhecemos hoje são provenientes de uma concepção iluminista de educação, onde o professor é o detentor do saber e o aluno será aquele que será iluminado com o conhecimento. Em segundo lugar, para determinadas correntes de esquerda, parece paradoxal o ESP defender uma hegemonia de esquerda na escola quando o próprio modelo escolar se baseia naquilo que Paulo Freire chamou de pedagogia bancária. Ou seja, os alunos são colocados na posição de objetos a serem formados sem poderem de fato compreender a realidade social. Consequentemente, se trata de uma realidade constantemente alienada pelo processo educacional.

“Na visão bancária da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações da ideologia da opressão”

Ainda analisando a primeira citação, percebe-se o caráter atrasado da forma de pensamento do Escola Sem Partido, pois na atualidade, não vivemos mais na época das instituições disciplinares onde a escola foi idealizada. Na contemporaneidade, as formas de normalização dos estudantes são diversas. Sendo assim, tomar o professor nos dias de hoje como o ponto principal na formação estudantil é não acompanhar o desenvolvimento da educação no País.

Para resolver o suposto problema da ideologização escolar, o grupo propõe uma educação que planeje abordar questões de todos os espectros políticos, sendo passível de punição os professores considerados doutrinadores pelos pais e alunos. Estabelecendo esses critérios, temos teoricamente uma inversão no jogo das relações de poder, sendo aqueles que exercerão a coerção (pais e alunos) normalizando o ser-sujeito dos professores.

“No exercício de suas funções, o professor:

I — não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;

II — não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III — não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

IV — ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;

V — respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções;

VI — não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.”

Deveres do professor, Escola Sem Partido

Sendo assim, a escola passa a exercer sobre o professor as principais características compartilhadas pelos regimes disciplinares modernos, como o controle da atividade a vigilância hierárquica e a elaboração temporal do ato (entende-se por um controle rigoroso tanto da fala quanto das ações do sujeito). Pode-se compreender a tentativa do ESP em tentar impor determinada formada de regime semelhante ao Panóptico de Jeremy Bentham, utilizado por Foucault para exemplificar o tipo perfeito de sistema disciplinar.

“(…) Na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível.”

Como efeito primário, induzimos no vigiado um estado consciente e permanente de visibilidade assegurando o funcionamento automático do poder. Por conseguinte, uma sujeição nasce não sendo necessário recorrer a força para obrigar o vigiado ao bom comportamento.

Essa determinada pratica discursiva que se vende como pregadora de liberdade gera um determinado tipo de professor capaz de produzir o tipo desejado de aluno, ou seja, mero corpo dócil onde as práticas disciplinares produzem seu ser. Um exemplo do paradoxo presente nos enunciados que se propõem a defender a liberdade estudantil é a proibição da “ideologia de gênero” nas escolas, como se vê, a falsa premissa de uma doutrinação educacional, gera um controle sobre o corpo docente que transforma a educação em uma pratica de conservação.

ele atrela a educação escolar aos valores morais das famílias, não atentando para o fato de que o ingresso da criança na escola pública é seu ingresso em um ambiente de circulação de diversos códigos morais, aos quais se deve conhecer, e aprender a respeitar desde que não violem a legislação vigente. A ideia de que a educação escolar é uma continuação da educação familiar, e de que a professora é uma segunda mãe, estão manifestas nesse modo de compreender as coisas (SEFFNER, 2016, p. 09).”

Da mesma forma que no sistema fabril se adotou o modelo Taylor com intenção de homogeneizar os agentes da classe operária como objetos, esse tipo de regime defendido pelos apoiadores do Escola Sem Partido tem, como fim, a formação de sujeitos que se adequem às normas ideais em uma sociedade de mercado e conservadora. Sendo assim, para os autores do projeto, a escola perde função de contato com a diferença, acabando com todas as linhas referentes a educação cidadã, como a de Paulo Freire ou a de Anísio Teixeira. Se trata de uma revolução às avessas, que ao invés de lançar o alienado à luz da dúvida e da crítica, se trata da ditadura do instituído, impedindo qualquer relação com uma experiencia de liberdade por parte do instituinte.

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