A mídia nos golpes: conivência e jogo de interesses
Como parte da imprensa brasileira colaborou e colabora para as mudanças no jogo político e democrático no país
por Rosangela Fernandes*
“Faça uma pesquisa, consulte os jornais, revistas, filmes da época. Você vai ver era sim um tempo de medo e ameaças. Ameaças daquilo que os comunistas faziam em que era imposto, sem exceção, prendiam e matavam seus próprios compatriotas. Havia sim, muito medo no ar. Foi aí que conclamado por jornais, rádios, TVs e principalmente pelo povo na rua, povo de verdade, pais, mães, igreja, que o Brasil lembrou que possuía um Exército nacional e apelou a ele. Foi só aí que a escuridão foi passando, passando e fez-se a luz. O Exército nos salvou”.
Foi com essas palavras que um senhor — de cabelos brancos e em tom dramático — descreveu o golpe midiático-civil-militar que derrubou João Goulart em 1964. O vídeo distribuído pelo WhatsApp do Palácio do Planalto no dia 31 de março comemorava a ruptura democrática que mergulhou o país em 21 anos de ditadura. A realidade reconstruída na peça publicitária aciona elementos historicamente explorados para resistência ao avanço da esquerda. O medo do comunismo está presente, assim como a imagem das Forças Armadas como salvadoras dos cidadãos de bem. A gravação poderia nos levar a inúmeras reflexões, mas destaco aqui o papel da mídia, presente de forma marcante como base de argumentação nos dois minutos do vídeo.
Jornais, revistas e filmes da época são indicados como prova de que o Exército atuou para livrar o Brasil das trevas. De fato, quem seguir o conselho se convencerá de que, no contexto da Guerra Fria, a chamada “república sindical” que teria sido instituída por João Goulart estava prestes a implantar o regime comunista no Brasil. Ao analisar as primeiras páginas do jornal O Globo no mês que antecedeu o golpe de 1964, identificamos em 25 edições do período 53 manchetes que faziam alusão ao comunismo. Os leitores recebiam, diariamente, ao menos duas notícias do perigo que se aproximava. Os editoriais, publicados nas primeiras páginas corroboravam com a tese da necessidade da intervenção militar. Em “A Nação Unida às Forças Armadas” (O GLOBO, 31 mar. 1964) a família Marinho exige a tomada do poder: “Todos têm a certeza de que o Brasil não poderá mais suportar que à sombra das liberdades e garantias constitucionais os comunistas e seus auxiliares trafeguem comodamente, preparando o asfixiamento daquelas liberdades e a derrubada da Constituição”.
As primeiras páginas trazem manchetes que alertam para o perigo iminente: o golpe que, na versão da imprensa, seria imposto por João Goulart. Não há nenhuma menção à conspiração golpista dos militares. Revistas e jornais contribuíram decisivamente para criar ambiente propício à tomada do poder pela direita. Sim, a mídia conclamou o povo às ruas, se constituiu como importante aliada para a deposição do governo eleito e, para isso, foi financiada com recursos internacionais através do IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais.
Depois da democracia golpeada, muitos dos veículos que participaram da articulação golpista se reposicionaram. Jornalistas vítimas da censura, perseguição e até de prisões e torturas, buscaram constituir formas de resistência à ditadura. Com a passar dos anos, a imprensa se dedicou ao discurso que isenta a si própria da responsabilidade na ruptura institucional. A mídia disse sim ao golpe de 1964 e a consulta aos jornais, revistas e até aos filmes da época não levam à constatação da realidade, como sugeriu a gravação citada anteriormente, mas sim à versão que contribuiu com a construção do ambiente propício à estratégia de deslegitimação da democracia.
Cinquenta e dois anos depois do golpe midiático-civil-militar, em 2016, a nova versão de tomada de poder se estruturou como um golpe parlamentar-jurídico-midiático. Mudaram as estratégias, mas as forças de direita continuaram unidas contra os avanços sociais e políticas de inclusão tendo como marca de continuidade o protagonismo midiático. A corrupção surgiu como tema capaz de mobilizar a população, substituindo o comunismo, que se manteve presente subliminarmente na aversão ao vermelho e em expressões como “Vai pra Cuba!”. Da mesma forma que descrito no vídeo citado anteriormente, cinco décadas depois, a mídia conclamou o povo à derrubada do governo.
Se em 1964 os meios de comunicação não previram que a ditadura se estenderia por 21 anos, é possível que em 2016 os apoiadores do impeachment não tenham previsto que a deposição de Dilma Rousseff levaria à eleição da extrema-direita em 2018. Guardadas todas as diferenças entre o Brasil das décadas de 1960 e 2010, que incluem o novo cenário comunicacional, e ainda que tenhamos a consciência de que a história não se repete, são no mínimo incômodos os traços de semelhança entre os dois períodos. Mais uma vez, consumado o golpe a mídia se exime da responsabilidade, atuando como se não houvesse apoiado as manobras realizadas ao fim do mandato da presidenta com ataques que minaram a confiança da população na política, levando à eleição de Jair Bolsonaro à presidência. No discurso dos grandes grupos de comunicação a extrema-direita assumiu o poder exclusivamente por força das mídias sociais. O poder das novas ferramentas de comunicação e o uso criminoso de sua utilização na campanha presidencial, com impulsionamento ilegal pelo WhatsApp, que tem mais de 120 milhões de usuários ativos no Brasil é inegável. No entanto a parcela que cabe à mídia hegemônica na crise institucional não pode ser menosprezada.
O Brasil de hoje, que vê todos os avanços de fortalecimento da cidadania conquistados nos últimos anos serem destruídos em velocidade assustadora, vive um golpe em processo. As consequências da ruptura de 2016 estão vivas e agora fazem ressurgir um passado que imaginávamos superado. A conjuntura atual expõe o fato de que o país não realizou, em relação a 1964, o trabalho necessário de resgate da memória sobre a ditadura para que se evitasse que o passado voltasse a assombrar. Da mesma forma, não houve a mea-culpa necessária a respeito do papel desempenhado pela mídia no período. Se militares parecem hoje vencer a batalha das ideias, reafirmando em parte significativa da população a imagem de defensores a paz e íntegros, a mídia por sua vez se esforça para que os cidadãos acreditem no que escrevem em seus princípios editoriais: que atuam com base na isenção, independência e de forma apartidária. Enfrentar o debate sobre os interesses comerciais e políticos dos grupos de comunicação e suas consequências nos abalos à democracia é um passo fundamental não só para que possamos enxergar saída para a crise atual, mas também para que daqui a 50 anos não nos vejamos novamente, de alguma forma e com todas as ressalvas, assistindo a história se repetir.
*Rosangela Fernandes é jornalista, mestra em comunicação pela UFRJ, coordenadora da ONG Criar Brasil e ex-ibaseana.