A política nos tempos da cólera
Palavras de ódio e diálogos cada vez mais agressivos tem sido a marca dos debates no Brasil. Como tentar retomar o diálogo quando as posições políticas são declaradamente opostas?
*por Leandro Uchoas
Não é fácil definir o momento exato em que o Brasil enlouqueceu. Há os que elegem as Jornadas de Junho de 2013 como marco dessa mudança de ciclo, rumo a um roteiro inverossímil de acontecimentos sociais e políticos dramáticos e patéticos. O indiscutível é que o Brasil de hoje é tragicamente diferente daquele de seis anos atrás. Em uma velocidade surpreendente, o ódio ganhou as ruas e as redes, a violência ganhou fôlego em diferentes esferas da vida, e as crises social, econômica, política, ambiental e ética tomaram contornos de filme de terror.
Esse drama todos acompanharam ao vivo, com exasperação e desesperança. Há seis anos, ninguém imaginava viver em um país partido, escancaradamente polarizado. Para benefício de ninguém, as ruas estão encharcadas de ódio e violência — aumentam os números de homicídio, feminicídio, estupro, prisões, assassinato da população LGBT etc. Nem é preciso dizer que esse ódio ganhou repercussão eleitoral, alavancando projetos políticos antes completamente inviáveis nas três esferas — municipal, estadual e federal. O ódio está nas ruas, nas casas, nos porões, nos becos, nas vielas — e é claro, nas redes.
O que fazer diante desse cenário dramático? Há muito por onde caminhar. A primeira medida a se tomar é não se deixar tomar pela estupefação e desesperança. É tarefa, de nossa geração, reerguer o país da delicadeza de outrora por sobre os escombros desses tempos de ódio. Conseguiremos! Vale dizer que, para os que têm fé, meditação e oração ajudam. Alimentar o sentimento de gratidão à vida e foco na face bela do mundo também.
Em segundo lugar, mais do que nunca, deve-se disputar as consciências. Nas ruas, não há caminho senão o do diálogo. Nesse sentido, a Comunicação Não Violenta (CNV) torna-se instrumento poderoso de acesso às pessoas. Não é por acaso que tem se popularizado tanto. A CNV nos ensina a olhar a vida como necessariamente relacional, qualificando cada troca de comunicação com o outro, com afeto e empatia.
É preciso colocar-se com humildade no debate político das ruas, ouvindo com empatia as diferentes cosmovisões, com abertura a diferentes visões de mundo. Foi com esse foco que criei o projeto “troco um bolo por uma conversa sobre política”, reproduzido por pessoas do Brasil inteiro em 2018. É preciso ir para as ruas sem armas na mão, com o ouvido atento, e respeito à divergência de pensamento. Quando mergulhamos fundo em uma escuta, percebemos que aquela pessoa antes antipática, cuja escolha de voto nos pareceu inicialmente inaceitável, partiu de valores e preocupações que são as mesmas da gente.
Como sugestão de formas de agir neste cenário, quero sugerir dois vídeos. O primeiro é um TED de Julia Galef que cria a ambivalência entre soldado e sentinela. Nossa comunicação, nas ruas e redes, não deve ser como a do soldado — que escolhe um lado ao qual adere sem questionamentos, e tudo o que quer é derrotar os adversários. Deve ser, sim, como a do sentinela (ou batedor), que observa a batalha de longe, questionando a cada segundo seus pontos de vista.
Outra reflexão interessante é oferecida pelo TED de Jon Ronson. Ele aborda o hábito de destruição de reputações que frequentemente ocorre nas mídias sociais, contra personalidades que eventualmente cometeram algum erro. Na internet, a guerra por “lacrar” ou “mitar” inviabiliza o debate. Infelizmente, vemos até deputados importantes aderindo a isso como estratégia política — causando euforia em suas bolhas, e ódio fora delas. Precisamos de menos gente atrás do oclinhos “Thug Life”, e mais pessoas buscando dialogar com a diferença.
A facilidade da troca de mensagens em redes sociais — em especial WhatsApp, Facebook, Instagram e Youtube — e a segmentação promovida pelo desejo de acomodação de confortos nas redes, provoca uma tribalização na sociedade. As pessoas se isolam em suas bolhas, próximas a outras que compartilham conteúdos semelhantes e pensamento parecido. Dessa forma, se isolam em suas certezas, que parecem inquestionáveis porque são reiteradas por conteúdos novos a cada dia. Esse processo ocorre na direita, na esquerda e no centro.
Na teoria do conflito, isso é chamado de “conflito de valores”. Ocorre quando as pessoas têm dificuldade de discutir um tema, porque sua posição lhe parece uma obviedade clara. Essas pessoas estão enraizadas em suas certezas, com dificuldade de dialogar para fora de sua bolha. Esse fenômeno ocorre em várias tribos. Por isso, a CNV torna-se um campo vasto de possibilidades. Cabe mergulhar no universo do interlocutor, investigar suas premissas, e entender quais sentimentos e necessidades busca atender.
Esse trabalho será monumental, gigantesco, mas temos que nos lançar a ele com força e coragem. Precisamos restaurar o Brasil, plantar as sementes do afeto nos vãos das manchas de sangue, para fazer dessa guerra um país.
*Leandro Uchoas é educador, jornalista e escritor. Dirige o Instituto Shanti Brasil, de promoção de Cultura de Paz e Direitos Humanos. É autor do livro “Seja a Mudança — o Brasil visto e debatido a partir do legado de Gandhi”. Em 2019, recebeu o prêmio Fazedores do Bem com o “Jogo da Política”.