(Foto: Daniele Graziolli)

Entrevista: Luciene Lacerda

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Psicóloga e ativista, Luciene fala sobre a campanha “21 dias de Ativismo contra o Racismo” e sobre os caminhos para uma sociedade menos discriminatória

por Iracema Dantas*

Luciene Lacerda é psicóloga e coordena o Laboratório de Ética nas Relações de Trabalho e Educação (Laberte) e a Comissão de Direitos Humanos de Combate às Violências na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2016, ela deu os primeiros passos para criar a Campanha 21 Dias de Ativismo Contra o Racismo. Três anos depois, a iniciativa já supera o número de 200 atividades programadas e se destaca como estratégia para enfrentar os perversos danos da discriminação racial: “Em 2017, foram 102 atividades no estado do Rio e uma em São Paulo. Em 2018, foram 168 em todo o Brasil. Para 2019, tivemos mais de 200 atividades propostas, com destaques para temas como o encarceramento, mulheres negras, saúde e educação da população negra”. Sobre como funciona a campanha, Luciene Lacerda explica: “O que fazemos é juntar as várias formas de ativismo contra o racismo. O que nos orienta é a fala de Angela Davis: “não basta não ser racista; é preciso ser antirracista”.

Na entrevista a seguir, Luciene também exemplifica a maneira com que pessoas não-negras podem participar dessa luta: “é preciso compreender o que é branquitude, entender porque achamos comum não ter negros em determinados lugares e naturalizamos o fato de brancos estarem sempre liderando em todos os espaços de poder. Pessoas brancas precisam entender seus privilégios, inclusive discutindo — entre os seus e nos espaços que ocupam — esse modelo de sociedade”.

Como e quando surgiu a ideia da campanha?

LL — Oficialmente, a campanha existe desde 2017, mas a ideia surgiu ainda em 2016 quando eu participava, pelo Fórum Estadual de Mulheres Negras, de uma tentativa de construir uma relação institucional com a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O Fórum de Mulheres Negras queria ter influência nas formulações de projetos de lei e orçamento que fizessem a diferença para as mulheres negras. Conversando com uma companheira sobre essa a demora para que nossa proposta se concretizasse, citei também a pouca mobilização coletiva e que não tínhamos mais passeatas ou marchas no 20 de novembro, além de ser essa a única data em que a temática da população negra era lembrada.

Pensei então que outra data importante para o ativismo negro deveria ser o dia 21 de março, justamente por ser esse o dia internacional pela eliminação do racismo — escolhido em referência ao dia em que, em 1960, a polícia do apartheid, na África do Sul, atirou em uma passeata pacífica de jovens negros que protestavam contra a lei do passe. Sessenta e nove estudantes foram mortos e mais de 100 sofreram ferimentos. Essa data precisava ser conhecida e lembrada aqui no Brasil também. Surgiu assim a ideia de em 21 dias, durante o mês de março, fortalecer a lembrança da data e ocupar o período com atividades sobre os mais diversos aspectos da questão racial.

Qual o objetivo e como funciona a campanha?

LL — Nosso objetivo é agregar diferentes pessoas e grupos que realizam atividades e estudos antirracistas: ações públicas, debates, contação de histórias em praças, atividades em escolas e hospitais, nas ruas, no candomblé etc. O que fazemos é juntar as várias formas de ativismo contra o racismo. O que nos orienta é a fala de Angela Davis: “não basta não ser racista; é preciso ser antirracista”.

Inicialmente, organizei um grupo de mensagens com amigos e amigas pesquisadoras de outras universidades e conversei sobre a ideia. A receptividade foi ótima e logo me pediram para incluir outras pessoas. Hoje somos mais de 200 pessoas nesse grupo. As decisões são coletivas e temos tido uma boa troca. Somos hoje uma coordenação que troca e trabalha muito para o sucesso da campanha.

Que atividades estão programadas para 2019?

LL — São muitas e bem diversas. Começamos em 7 de março, com um bloco de rua e eleição de um samba que melhor representasse nossa campanha. Participamos ainda das atividades do Dia Internacional da Mulher, das manifestações pedindo justiça pelo assassinato de Marielle Franco, e também dos protestos pelos cinco anos de morte de Cláudia Ferreira, morta após ter sido arrastada por um camburão da polícia militar do Rio de Janeiro. E vamos até o dia 27 de março, com outras atividades bem diversas já programadas, inclusive uma no Ibase, no próximo sábado, dia 23.

Em 2017, foram 102 atividades no estado do Rio e uma em São Paulo. Em 2018, foram 168 em todo o Brasil. Para 2019, tivemos mais de 200 atividades propostas, com destaques para temas como o encarceramento, mulheres negras, saúde e educação da população negra.

Como você avalia a conjuntura política do Brasil e o enfrentamento do racismo que vem sendo protagonizado pelas mulheres negras?

LL — As mulheres negras há muito tempo estão sendo protagonistas. Em 1995, houve a grande marcha pelos 300 anos de morte de Zumbi de Palmares. Dez anos depois, em 2005, voltamos a Brasília com uma pauta específica de políticas públicas elaboradas por mulheres negras. Em 2015, reunimos 30 mil mulheres negras na Passeata contra o Racismo, Sexismo e pelo Bem Viver, justamente para cobrar a implantação das políticas que já discutimos e elaboramos coletivamente.

Nesse momento político de perda de direitos, de escolas públicas sendo fechadas, as mulheres negras são as mais atingidas. E em termos de mortalidade materna observamos que são as mulheres com menor escolaridade as que mais morrem. Estamos vendo um ataque aos nossos direitos trabalhistas, previdenciários, além da ameaça às cotas raciais como política pública afirmativa. Vivemos um momento delicado e de muitas ameaças, mas também de esperança.

O assassinato de Marielle Franco tem, como uma das reações, o nascimento de várias outras “sementes”?

LL — Pela primeira vez, temos cinco mulheres negras eleitas como deputadas estaduais, sendo que três dessas eram assessoras de Marielle. São sementes não apenas porque tiveram seus nomes escolhidos, mas porque muitas mulheres negras as escolheram como representantes. A nós cabe a pressão social para que as mudanças sejam possíveis, agregando pessoas na luta antirracista. É nisso que a campanha aposta.

De que maneira pessoas não negras podem colaborar com a luta antirracista?

LL — Para eliminar qualquer tipo de opressão, não se pode esperar que apenas um determinado seguimento lute contra essa situação. A sociedade é feita de muitas pessoas, de diferentes gêneros e raças. É preciso que se entenda que a luta contra o racismo não é só dos negros e negras; assim como a luta contra o machismo e o sexismo não é só das mulheres e a luta contra a homofobia não é só da população LGBTQ+.

E é preciso compreender o que é branquitude, entender porque achamos comum não ter negros em determinados lugares e naturalizamos o fato de brancos estarem sempre liderando todos os espaços de poder. Pessoas brancas precisam entender seus privilégios, inclusive discutindo — entre os seus e nos espaços que ocupam — esse modelo de sociedade.

Quais são os danos psicológicos causados pelo racismo? Podemos afirmar que as mulheres negras são as mais atingidas?

LL — São muito sérios e atingem diretamente a nossa identidade. Há um dano muito grande quando, por exemplo, uma criança negra chega a uma creche e só vê bonecos e boneca brancas, além de fotos apenas de “bebês Jonhson”. Ao não se ver, essa criança já recebe um recado silencioso e doloroso. Essa subjetividade está na nossa desvalorização cotidiana, na falta de nossos empregos, no ataque a nossos cabelos, a nossa tez, nosso fenótipo. Tal como água em pedra dura, tanto batem que um dia nos atingem. Outros danos são os que sofrem as mulheres negras que perdem seus filhos atingidos pela violência cotidiana urbana, impetrada pela insegurança do Estado. E há ainda casos de baixa autoestima, depressão e inadequação do ambiente de trabalho, gerando uma enorme violência psicológica e até casos de suicídio.

Esses danos fizeram com que o Conselho Federal de Psicologia elaborasse uma resolução tornando obrigatório que o profissional de psicologia saiba trabalhar com a identidade racial. Mas é necessário que esse psicólogo entenda a importância desse processo, o que infelizmente ainda não é comum na formação profissional.

Não podemos reduzir também a uma única categoria essa necessidade de lidar com o racismo. Essa é uma questão que deve preocupar a todos que querem uma mudança na sociedade, pois o racismo não nos atinge só nas relações pessoais mas principalmente nas estruturas institucionais que nos cercam. O fato é que o racismo é um fator estrutural que colabora com a manutenção do capitalismo, dessas “hierarquias raciais”.

E para acabar com essas hierarquias, a sociedade não pode aceitar, por exemplo, que uma mulher negra receba menos anestésico na hora do parto ou que seu tempo de consulta seja reduzido por “não ter o que falar”. Não pode aceitar também que a obrigatoriedade do ensino da história da África, prevista na lei 10.639, seja ignorada.

Como é o financiamento da campanha? Existe algum apoio de governos?

LL — Nossa iniciativa é autogerida, feita com a contribuição voluntária e possível de cada pessoa e movimento social envolvido. Para ajudar, estamos vendendo livros com a nossa experiência de campanha e camisetas, além de conseguir contribuições pontuais de sindicatos e entidades sociais. Quanto aos órgãos oficiais, não queremos que as atividades tenham logos de prefeituras, governos estaduais ou governo federal. O papel dessas esferas é outro. Que procurem reverter a mortalidade materna das mulheres negras, que criem políticas estudantis para fortalecer a permanência de estudantes negros na universidade, parem de fechar escolas, principalmente noturnas, ampliem a rede de saúde, em especial a de saúde da família, e criem procedimentos que não permitam o assédio racial nos ambientes de trabalho e ensino.

Como entrar em contato com a campanha e acompanhar suas atividades?

LL — Nosso email é contatomovimento21@gmail.com. Também temos nossas mídias sociais, como Instagram e Facebook, e usamos a hashtag #21diasdeativismocontraoracismo.

*Iracema Dantas é jornalista e atualmente trabalha como consultora de comunicação no Ibase.

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