Wania Sant’anna, vice presidente do Conselho Curador do Ibase (Foto: Arquivo Pessoal)

“O censo é da população”

Ibase
Trincheiras
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5 min readJun 6, 2019

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Em entrevista à Trincheiras, Wania Sant’anna, ativista e vice presidente do Conselho Curador do Ibase, fala sobre a importância do censo demográfico do IBGE ser realizado de forma ampla e em diálogo com a sociedade

por Iracema Dantas e Clara Araújo*

Wania Sant’anna é historiadora e desde 2018 exerce o cargo de vice-presidente do Conselho Curador do Ibase. Na década de 1990, quando era pesquisadora, também no Ibase, fez parte da campanha “Não deixe sua cor passar em branco — responda com bom c/senso”, que colocou a importância do recorte étnico-racial no debate sobre as formulações do censo demográfico brasileiro. “Foi por meio dessa campanha, que pudemos afirmar que ter a questão cor/raça coletada era primordial para o aprimoramento de políticas públicas voltadas à população negra”, relembra.

Quase três décadas após essa iniciativa e do reconhecimento da importância dos indicadores sociais gerados pelos censos demográficos, o atual governo anunciou que fará a reformulação da proposta para o levantamento previsto para 2020, com possíveis cortes nas questões já elaboradas. Para Wania Sant’anna“ as informações coletadas pelo censo são um patrimônio da sociedade brasileira — a real proprietária desses indicadores. Não são informações que pertencem a um órgão de governo; o censo é da população”.

O que as ameaças de corte no orçamento do Censo significam para o desenvolvimento do país?

WS — Corroboramos todas as análises que apontam que a completa execução do censo é importante para elaboração de políticas públicas e para o avanço das pesquisas, sobretudo nas áreas sociais. O censo interessa muito à comunidade acadêmica e aos movimentos sociais, principalmente para o aprimoramento de políticas públicas.

É notório também que muitas organizações sociais que têm utilizado os indicadores do IBGE, em especial do censo, transmitem esses dados para os meios de comunicação e, consequentemente, esses dados são repassados à população em geral. Portanto, as informações coletadas pelo censo são um patrimônio da sociedade brasileira — a real proprietária desses indicadores. Não são informações que pertencem a um órgão de governo; o censo é da população.

De que maneira isso afeta as políticas públicas para a população negra? A pergunta sobre cor/raça corre risco de ser retirada do questionário?

WS — O momento do censo é o momento de maior complexidade para identificar qual é a situação socioeconômica da população negra no conjunto da população brasileira. Qualquer mudança na metodologia usada no censo e nas perguntas que serão apresentadas à população, terá um alto impacto. A abrangência do censo é o que garante essas informações tão apuradas, pois sabemos da importância das políticas públicas aplicadas nas esferas locais para a superação da situação de vulnerabilidade da população negra brasileira.

Não acredito que haja risco de retirada do item cor/raça do questionário do censo. De toda forma, sabemos que o atual governo tem muita dificuldade em admitir que o recorte étnico-racial é absolutamente importante na formulação de qualquer política pública. Diante disso, eu creio que cabe às organizações do movimento negro e seus ativistas assegurarem não só que o item cor/raça seja mantido, mas também garantirem que a manutenção dessa questão leve a um diagnóstico atual o sobre o perfil da população negra e das políticas públicas que ela necessita.

Quais as implicações desses possíveis cortes para as políticas públicas voltadas às mulheres?

WS — Tanto para as mulheres como para a população negra, é inadmissível que se pense em qualquer alteração nas questões sobre renda presentes no censo. Sabemos muito bem os rendimentos diminutos que têm as mulheres, principalmente as negras. É absolutamente importante que as organizações de mulheres tenham atenção particular ao censo — é um momento de especial atenção dos movimentos feministas. Espero que o movimento de mulheres e o movimento de mulheres negras também tomem para si a defesa da realização do censo.

A elaboração de políticas públicas para esses grupos depende desses indicadores, em várias dimensões: na saúde, no trabalho, no emprego e renda, na estruturação de políticas para uma melhor urbanidade. Não podemos permitir que transfiram para as mulheres responsabilidades que são do poder público, em ares como saneamento, coleta de lixo, habitação, água potável etc.

Cartaz da campanha “Não deixe sua cor passar em branco”, lançada nos anos 1990 pelo Ibase

Você participou da campanha “Não deixe sua cor passar em branco — Responda com bom c/senso”, liderada pelo Ibase, em 1991? Como foi essa campanha? Quais foram os resultados?

WS — Foi uma honra ter participado da campanha e do grupo que formulou seus objetivos e empreendeu esforços para articular organizações do movimento negro em torno de uma ideia absolutamente original. A campanha ajudou a criar várias outras iniciativas em países da América Latina e propiciou novos diálogos entre movimentos sociais e institutos de pesquisas para que o recorte étnico-racial fosse introduzido em censos nacionais.

Não foi só a campanha que ampliou a consciência étnico-racial da população negra brasileira e mostrou a importância de declarar sua cor e sua raça. Na verdade, essa tem sido uma conquista das organizações do movimento negro, das mulheres negras e dos ativistas de combate ao racismo no país. Mas, sem dúvida, essa campanha representa um ponto de inflexão. Foi por meio dessa campanha, que pudemos afirmar que ter a questão cor/raça coletada era primordial para o aprimoramento de políticas públicas voltadas à população negra.

Se hoje nós temos tantos estudos e avaliações com recorte étnico-racial, a campanha “Não deixe sua cor passar em branco — Responda com bom c/senso” deu sua contribuição específica para o esse fato. Acredito que estamos no momento de rearticular essa incidência e garantir que o censo do ano de 2020 conte com uma articulação ainda mais ampla que na década de 1990, reunindo movimento negro, movimento de mulheres negras, diversos ativistas e todas as organizações que entenderam, ao longo desses anos, que ter o recorte étnico-racial é a maneira mais adequada de entender o perfil de desigualdade no país, reconhecendo que a discriminação e o racismo são o que motivam essas diferenças.

O Sindicato dos Trabalhadores do IBGE lançou a campanha “Todos pelo Censo 2020”. Qual sua expectativa sobre isso?

WS — Vejo como algo de enorme importância que os próprios funcionários do IBGE tenham mobilizado tão rapidamente a sociedade brasileira em defesa do censo. Fundamental também foi a adesão de pesquisadores e outras instituições que atuam na elaboração e no aprimoramento do conhecimento nacional sobre a realidade social brasileira. Estamos todos envolvidos em uma resposta rápida à tentativa de diminuir o censo. Importante ressaltar também que o censo, nas últimas décadas, tem sido construído em diálogo com a sociedade. Então, uma decisão que diminua sua importância e sua abrangência é absolutamente inconcebível. Minha expectativa é que seja reestabelecido esse importante diálogo para a sociedade brasileira e seja mantida a estrutura já formulada anteriormente para o censo de 2020.

*Clara Araújo e Iracema Dantas são jornalistas e trabalham na comunicação do Ibase.

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