O guerreiro, a santa e os meninos: festas de rua
As festas dos santos populares como um fator integrante da história da cidade do Rio de Janeiro
por Luiz Antonio Simas*
O padroeiro da cidade do Rio de Janeiro é São Sebastião, festejado no dia 20 de janeiro. A festa de santo mais popular, todavia, é a de São Jorge, no dia 23 de abril. A presença de São Jorge nos subúrbios, especialmente em seu perfil de guerreiro que vence as dificuldades, os sufocos e demandas, é extremamente forte, caracterizando-se em especial pelo cruzamento que, na Umbanda, amálgama santos católicos a orixás africanos com características percebidas, no imaginário popular, como similares.
A principal igreja dedicada ao cavaleiro na cidade do Rio de Janeiro fica no bairro de Quintino Bocaiúva, na Rua Clarimundo de Melo, a mais movimentada da região. A festa do santo, precedida por uma alvorada anunciada por clarins militares e queima de fogos, é marcada pela fascinante mistura entre o sagrado e o profano. A missa, as quermesses, as rodas de samba, os leilões de prendas, o pagamento de promessas, o mar de gente trajando o vermelho e o branco — as cores do manto do santo, utilizadas nas giras de Umbanda pelos devotos de Ogum — fazem do festejo a mais popular celebração religiosa carioca do século XXI.
Um dos eventos mais impactantes das celebrações suburbanas do santo é a tradicional carreata com a imagem de São Jorge realizada pelo GRES Império Serrano. A imagem sai da quadra da escola, em Madureira, nas primeiras horas da manhã, passa pela paróquia do santo, em Quintino, atravessa bairros próximos, como o do Engenho de Dentro, e retorna ao celeiro dos bambas imperianos no final do dia. Madureira, aliás, é um bairro marcado pela existência do maior mercado popular da cidade, o Mercadão de Madureira, com uma profusão de lojas que vendem artigos religiosos de Umbanda e Candomblé. Ao lado de imagens de exus, malandros e pombagiras, a estátua do guerreiro montado em seu cavalo e matando o dragão é das mais populares e negociadas do local.
São Jorge é o protetor dos apontadores do jogo do bicho — loteria popular das ruas -, está presente em bandeiras de clubes de futebol, protege quadras de escolas de samba, prostíbulos e balcões de botequins, inspira tatuagens, camisas, grafites, toalhas de rosto, pulseiras, medalhas de ouro, cordões e anéis de prata. Trafega pelos trilhos dos trens suburbanos, povoa o imaginário das luas cheias e derrota os perrengues daqueles que matam, diariamente, os dragões cotidianos para sobreviver e festejar.
A força que a festa de São Jorge tem hoje encontra similar com o que representou para o Rio de Janeiro, em outros tempos a Festa da Penha.
Contam que, no início do século XVII, o português Baltazar de Abreu Cardoso saiu para caçar. Subitamente, apareceu diante dele uma cobra gigantesca. Apavorado, o português apelou para Nossa Senhora da Penha. Feito o apelo, um lagarto botou a peçonhenta para correr. Baltazar ergueu uma ermida no local do milagre e prometeu fazer anualmente uma festança para relembrar o fato. Surgia assim uma das maiores tradições cariocas.
Feita a devida referência ao sagrado, é fácil constatar que milagre maior do que o da santa foi o do povo carioca, que tomou para si a festa e a transformou, no início da República, numa espécie de folia pré-carnavalesca e espaço de exercício da cidadania informal.
A República das oligarquias criminalizava a cultura popular. A ordem era modernizar e higienizar o Rio de Janeiro em padrões europeus, adotando Paris, a capital francesa, como modelo. E tome de derrubar cortiços e criminalizar as referências culturais do povo mais humilde. Neste clima, as manifestações populares — o samba, a capoeira e a macumba, por exemplo — eram duramente reprimidas, vistas como símbolos do atraso e da barbárie.
Mas o povo deu o nó em pingo d´água, virou dono da festa e dela fez seu pertencimento. Os capoeiristas cortaram o mato nas rodas de volta ao mundo, as baianas prepararam a comida do santo e os bambas mostraram os sambas que tinham acabado de compor. A festa se transformou, depois do Carnaval, no maior evento popular do Rio de Janeiro.
Os poderosos fizeram de tudo para impedir a festança. Em 1904, 1907 e 1912, a prefeitura proibiu rodas de samba na Penha. A rapaziada foi lá, zombou da proibição e fez. Havia ordem de prisão para praticantes da capoeira. O berimbau puxou o toque de São Bento Grande e o povo gingou. A baiana temperou o acarajé, a cerveja gelou e o Rio de Janeiro mostrou que o espaço da civilização da cidade é a rua.
Acho, por tudo isso, que a cidade do Rio de Janeiro deveria zelar pelos festejos da Penha. A festa é parte integrante da História carioca. A decadência dos festejos — por uma série de motivos que demandariam inúmeras discussões — é emblemática dos paradoxos de uma cidade que, vez por outra, parece querer negar seus traços culturais mais fecundos.
Fechando a trinca das festas da fé na rua, é inevitável lembrar das comemorações de São Cosme e São Damião. O dia das crianças no Brasil, 12 de outubro, foi criado em 1924, em projeto de lei proposto pela Câmara Federal e sancionado pelo presidente Arthur Bernardes. No calendário de afetos de muitos brasileiros, todavia, a festa das crianças é a de Cosme e Damião, os médicos anargiros (inimigos do dinheiro, já que não cobravam consultas) martirizados durante a perseguição aos cristãos na antiguidade.
No Brasil de todos os encantamentos, deu-se o encontro entre os santos gêmeos do catolicismo e Ibeji — o orixá dos iorubás que protege as crianças e representa os mistérios das dualidades que se integram sem se anular. A encruzilhada do encontro entre os santos católicos e o orixá africano (visto aqui mais como acréscimo de força vital que como disfarce para permitir o culto) transformou Cosme e Damião nos donos de todos os doces e carurus. Festa de Dois-Dois, conforme o povo.
Na folia, até Doum apareceu. Entre os iorubás da Nigéria, quando nascem gêmeos, a primeira criança gerada recebe o nome de Taiwo; a segunda é chamada de Kehinde. Idowu é o nome dado à criança que nasce após o parto de gêmeos. Por aqui, o irmão mais novo dos gêmeos africanos virou Doum e passou também a ser cultuado nos fuzuês de Dois-Dois, especialmente nos terreiros de umbanda, como o irmãozinho de Damião e Cosme.
A festa de Cosme e Damião, portanto, passou a ser o dia brasileiro dos santos estrangeiros e orixás africanos. Dia de igreja aberta, terreiro batendo, samba de roda, criança buscando doce.
O encontro entre Jorge Guerreiro, a Penha e meninos gêmeos sintetizam, de certo modo, as formas de encantar o mundo em festa no terreiro carioca, em práticas de sacralização do profano e profanação do sagrado tantas vezes perseguidas, mas constituintes de modos de ser mais fraternos da vida nos perrengues da cidade.
*Luiz Antonio Simas é historiador e escritor. Tem 16 livros publicados sobre culturas das ruas e festas populares. Ganhou o prêmio Jabuti de livro do ano de não ficção, em 2016, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes.