Portaria 216: o AI-5 da comunicação pública

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Trincheiras
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4 min readApr 15, 2019

Determinação para que NBR e TV Brasil passem a utilizar um só canal vai contra a Constituição e compromete caráter público na comunicação

*por Carol Barreto

9 de abril de 2019 foi um dia triste para a comunicação pública brasileira. Numa portaria que cita a Constituição para violá-la, a direção da EBC juntou TV Brasil e NBR. Isto significa que a partir de agora a programação da TV pública pode ser interrompida a qualquer momento para a transmissão de atos do governo. Isso sem falar no jornalismo misturando comunicação pública e estatal. Já tivemos amostras de ambas as situações em menos de dois dias inteiros de nova programação no ar.

Nesta quinta-feira, por exemplo, não foi exibido o “Brasil em dia”, nova “inserção jornalística” de 15 minutos que agora deveria ir ao ar diariamente no lugar do Repórter Brasil Manhã. No lugar desta atração, a TV Brasil transmitiu a coletiva de imprensa sobre os primeiros 100 dias do Governo Bolsonaro. Transmissão que avançou, inclusive, sobre o horário dedicado aos desenhos animados, audiência mais consolidada da TV. O “Brasil em dia”, na verdade, pelo menos a julgar pelo que já se viu, dirá respeito apenas a ações de governo e ministérios. Apenas dois dias depois do Rio de Janeiro enfrentar mais uma tragédia decorrente de fortes chuvas, o “jornalismo” matinal da emissora sequer abordou o tema. Pelo contrário, praticamente todos as entradas ao vivo foram feitas de Brasília e somente uma dessas teve a participação de repórteres da TV Brasil. Todas as outras ficaram a cargo de trabalhadores da NBR.

O que se percebe nesse início de nova programação no ar é que o governismo prevalecerá na TV pública, que terá cada vez mais cara de estatal. É como se a NBR tivesse engolido a TV Brasil, da qual aparentemente não restará nada muito além do nome. Não à toa a nova diretora de jornalismo da EBC é Sirlei Batista, funcionária com anos de NBR no currículo. No primeiro dia da nova programação no ar, o Repórter Brasil Noite, agora com 45 minutos de duração, gastou 13 deles em entrevista com o ministro Ônix Lorenzoni. 13 minutos de tempo televisivo é uma eternidade. No caso em questão, equivale a quase um terço do jornal.

E se engana quem pensa que o governismo se apoderou apenas do telejornalismo. No primeiro dia da nova programação no ar, além da entrevista com Lorenzoni no telejornal, outro ministro, o Santos Cruz, participou de um dos programas de maior prestígio e tradição da casa, o “Sem Censura”. Enquanto saem da grade programas como telejornais e o excelente e inovador “Estação Plural”, o espaço é ocupado por programas sobre obras do exército e fortes do Brasil. Com isso, as forças armadas se apoderam de parte significativa da programação da TV pública brasileira. Isto apesar de já possuírem canais institucionais próprios. Mas atenção, não para por aí: a bancada do agronegócio também ganhou de presente um programa bem ao seu gosto, o “Agronacional”. E também haverá um programa inteiramente dedicado à defesa da Reforma da Previdência.

A lei de criação da EBC é clara ao garantir que a empresa deve ter autonomia frente ao Governo Federal e que é vedado o proselitismo. As forças armadas e aliados do governo Bolsonaro, no entanto, resolveram utilizar a TV pública para o enaltecimento de suas ações.

Divulgada nas redes sociais, orientação para que jornalistas da emissora deixassem de usar a expressões “golpe” e “ditadura” gerou revolta entre os trabalhadores da empresa.

Para completar o rosário de problemas, a censura nunca esteve tão forte no jornalismo. Agora, além de pautas vetadas na cobertura, como foi o caso da renúncia do deputado Jean Wyllys ou de atos contra a Reforma da Previdência, há também palavras proibidas por aqui. Exemplos disso são “ditadura militar” e “golpe de 64”, sistematicamente cortadas de todas as matérias recentes que fazem referência a esses tempos de triste memória. “Militarização das escolas” é outro termo banido. Ele vem sendo substituído pelo muito mais suave e conveniente “gestão compartilhada”. Até a palavra “fuzilado” está proibida de ser usada para fazer referência ao carro do músico, alvo das balas de fuzil disparadas pelo Exército no Rio de Janeiro. Ao invés disso, a referência deve ser “atingido por 80 tiros”. A justificativa é de que “fuzilado” não seria um termo “oficial”. Porém, se é para usar somente termos oficiais, talvez fosse melhor nos limitarmos a ler as notas do Exército ao invés de continuar fingindo que ainda fazemos jornalismo.

Com a fusão de conteúdos públicos e estatais sob o guarda-chuva de TV Brasil, o Governo Bolsonaro parece querer se aproveitar da audiência conquistada ao longo dos últimos anos pela TV, que hoje é a sétima mais vista do país. Isso apesar de o presidente ter dito tantas vezes, durante e depois da campanha, que a emissora deveria ser extinta porque não tinha audiência. Essa mistura de conteúdos confunde o público e viola a Constituição Federal de 88, que estabelece o princípio da complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação. No momento, o que vemos é o estatal engolir o público. Por isso temos dito, entre nós, que a portaria que funde TV Brasil e NBR é o AI-5 da comunicação pública. Ela põe a perder uma grande conquista da sociedade brasileira. Certamente, no entanto, não o fará sem resistência. Nós, trabalhadores, estamos engajados nela desde já.

*Carol Barreto é jornalista da EBC. Já trabalhou na TV Brasil e atualmente é repórter das Rádios Nacional e MEC. É membro da Comissão de Empregados da empresa.

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