Para de agir feito criança

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
6 min readSep 20, 2017

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Caixas de correio que não precisam de chave por Mathyas Kurmann no Unsplash

Eu tentei, juro que tentei destrancar aquela droga de caixa de correio. Nenhuma das sete chaves do molho que eu segurava na mão funcionava — e olha que eu já tinha testado cada uma delas mais de uma vez.

Fazia três meses que eu morava naquele apartamento, mas ainda não tinha lido as cartas que abarrotavam a caixa de correio desde a mudança. De vez em quando eu descia até o subsolo e, através do buraquinho onde elas eram enfiadas regularmente pelo porteiro, eu cutucava com os dedos até conseguir resgatar algumas, aquelas que ficavam mais em cima. Funcionava, mas minha mãe continuava a falar na minha cabeça, como um mantra:

– Beatriz, para de agir feito criança…

Era verdade, ela tinha razão. Desde que fui morar sozinha, não fiz nada além de ouvir música alta e comer miojo Turma da Mônica sabor tomate. Eu já tinha esquecido duas vezes a porta do apartamento destrancada a noite toda e pra piorar, na semana passada, quase fiquei sem internet porque esqueci de pagar a conta.

É óbvio que não contei esses detalhes todos pra minha mãe. Ao invés disso, expliquei (mais pra mim do que pra ela) que eu aprendo com os meus erros muito mais do que com os acertos e que “é por isso que tudo deu errado nesses últimos meses, mãe.”

Ou talvez seja porque meu aniversário está perto e, além do inferno astral que me pegou de jeito, Mercúrio inventou de ficar retrógrado. Todas essas conjunções e o momento astrológico desfavorável conspiram contra mim, mãe. Um monte de desculpas esfarrapadas, ela respondeu.

A questão é que a droga da caixa de correio continuava trancada, mas eu estava atrasada pra faculdade e desisti de tentar. Já era quinta-feira e eu só precisava assistir à mais uma aulinha. No dia seguinte bem cedo o João chega aqui em São Paulo, pra compensar mais uma semana meia boca da minha vida.

Eu sequer tentei prestar atenção na aula. Minha cabeça ia da caixa de correio ao João. Do João à caixa de correio. A impaciência chegou de mansinho e logo tomou conta de mim, já que a mensagem que eu mandei às três da tarde continuava sem resposta. A caneta batia ritmada na mesa, meus pés batiam ritmados no chão.

A gente combinou na segunda-feira que ele viria passar o fim de semana comigo. Ele prometeu, também, ficar de olho no celular. “Eu conversei com a minha irmãzinha,” ele disse, “ela também acabou de sair de casa, você sabe, e me contou que tá foda se acostumar com a cidade nova.”

Eu não precisava dizer uma palavra. Às vezes, nem sabia muito bem porque me sentia esquisita, ou porque era tão difícil contar pra ele que sair de casa não era bem como eu imaginava. O João percebia pelo jeito que a gente se olhava. Ou pela maneira como eu me encolhia inteira para caber entre os braços dele, meio dormindo, meio acordada, enquanto ele passava a mão pelo meu cabelo. O João me entendia mesmo quando nem eu mesma entendia o que sentia por ele. O João sabia o que eu queria mesmo quando eu não era capaz de assumir pra ele (ou pra mim mesma) que era amor tudo aquilo que eu sentia.

Entre as batucadas na mesa e as batidas ritmadas com os pés no chão, continuei a checar as mensagens. Finalmente, uma vibração. Duas. Três. Ele me ligava. Agarrei o celular com força e levantei apressada. Com passos acelerados eu atravessei a sala, esquivei das mochilas no chão, pedi licença e fiz que ia ao banheiro.

— Alô?

Falei antes mesmo de fechar por inteiro a porta da sala.

— Oi, linda, cê tá bem?

— Oi! Eu tava na aula. E aí?

— Ah, me desculpa…

— Não tem problema, não tô prestando muita atenção mesmo. Mas me diz, que horas você chega amanhã? Quer que eu te busque no metrô?

— Poxa, linda, tô tão cansado, essa semana foi puxada! E pra piorar, tô sem grana...

— Você não vem? É isso?

— Você me desculpa?

— Preciso voltar pra aula.

— A gente se fala depois, então? Me liga quando você chegar em casa.

— Tá bom.

Desliguei meu celular, mas não voltei pra aula. Garoava lá fora, mas eu precisava tomar uma cerveja. Era só pra ver se aquele nó enorme na minha garganta se desfazia, pra ver se aquela vontade de chorar diminuía.

Era tão típico que eu nem me surpreendia quando algum plano meu dava errado. Mesmo depois de confirmar meu endereço direitinho (é o bloco D, tá? 104 D), depois de falar que estava ansioso pra me ver porque queria dormir abraçadinho, porque queria me levar naquela padaria que ele sempre ia quando morava aqui no bairro, pra gente comer o melhor pão de queijo na chapa que ele tinha provado na vida. Eu estava ansiosa pelo pão de queijo na chapa. Eu estava ansiosa pra dormir abraçadinho.

Falei pro João que depois do pão de queijo a gente podia ficar lá no meu apartamento mesmo, né? Por que sair? A gente fica lá no meu quarto e transa a noite toda. Depois a gente acorda, divide uma xícara de café e transa mais um pouco. Vai ser tão bom dormir e acordar com você do meu lado, aqui nessa cidade cinza e suja. O dia vai clarear, mas a vista feia da minha janela vai passar despercebida porque do seu lado sempre tem coisa melhor. E olha só, lembra daquela bolacha-do-mar que você me trouxe de Florianópolis? Ela tá inteirinha aqui, deixo no meu criado-mudo do lado da cama, pra quando acordar lembrar de você.

Toda quinta-feira tem happy hour lá na faculdade e eu, que só queria uma cerveja, acabei por pedir logo três. Estava na promoção. Encostei nos banquinhos da praça onde ficavam o happy hour e as cervejas, longe da caixa de som e do pessoal da atlética que tinha acabado de comprar e instalar um karaokê.

— Ei, você não devia estar na aula do Edu? — O Gustavo se materializou do meu lado com um sorriso debochado, uma cerveja na mão esquerda e um baseado na direita.

— E você deveria estar na aula da Alice…

— Ela liberou a gente mais cedo, tá todo mundo ali, ó — Ele apontou para uma rodinha composta por todas as pessoas da turma dele. — Mas você tá aqui sozinha. Tá tudo bem?

— Hm, acho que sim. Só alguns problemas com o meu namorado…

— Ah, nem encana, essas coisas se resolvem sozinhas. Quer mais uma breja?

— Não, não, tô de boa.

O Gustavo voltou pra turma dele, mas não sem antes virar pra me olhar umas duas vezes, com um meio-sorriso de quem até que acha uma boa notícia quando eu tenho problemas com o meu namorado. Terminei aquela cerveja, mas não tomei as outras duas. A garoa se transformou em chuva forte e eu guardei minhas fichas para uma quinta-feira melhor.

No dia seguinte, acordei com um barulho. Era a bolacha-do-mar de Florianópolis que se esborrachou no chão em seis grandes pedaços. O João continuava lá no interior e eu continuava aqui em São Paulo. Juntei os fragmentos e guardei num Ziploc. Se a gente continuar junto, eu tento colar com Superbonder. Não é assim que a gente faz? Tenta?

Como não tenho aula na sexta-feira, um chaveiro passou lá em casa para abrir a minha caixa de correio. Enquanto eu estava no subsolo e o dito cujo se entendia com seus equipamentos, o João ligou. Acho que ele terminou comigo. Tentei segurar o choro, mas não deu.

— Moça, eu esqueci um negocinho lá no carro, já volto.

Acenei com a cabeça, mas nem vi por onde ele saiu. A semana, que antes estava só meia boca, tinha se transformado num completo desastre. A cidade ainda era cinza e suja, eu ainda me sentia uma criança e botar a culpa no inferno astral ou em Mercúrio retrógrado não tornava a dor menor, nem resolvia os meus problemas. O chaveiro voltou e trouxe consigo: uma caixa de ferramentas e uma barra de chocolate ao leite Lacta.

— Não sei se você gosta desse… Mas eu não gosto de ver moça bonita chorando. Vai ficar tudo bem, tá bom?

Em menos de cinco minutos, a droga da caixa de correio estava aberta, o chocolate eu devorei e o chaveiro se foi. Mas aí eu já tinha uma porção de outros problemas empilhados na minha mão. Liguei pra única pessoa que poderia me salvar.

— Mãe, eu tenho que pagar IPTU?

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