Não sei aonde as palavras foram

Um dia acordei sem voz

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
Published in
3 min readJul 24, 2018

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Um dia eu acordei e já não tinha voz. É mentira se eu disser que foi ao acaso, em questão de horas, minutos talvez, que algo me arrebatou e me arrancou as palavras. Eu vi tudo acontecer diante dos meus olhos, uma dessas rupturas que me despedaçam.

Tudo começa com um pequeno nozinho na garganta, talvez nem isso. É como uma coceirinha, em alguma parte do peito que conecta meu pulmão à boca. Seja intuição, seja uma profecia auto-realizadora (ainda não sei no que acreditar), a coceirinha se desenvolve com rapidez até o momento em que se torna um monstro grande, real e concreto. Eu ainda tenho dificuldade em crer que aquela aberração colossal que tomou conta da minha vida foi criada com a força do meu pensamento — ou que a previ com o poder da minha intuição. Por isso, oscilo entre esses dois opostos, numa tentativa de encontrar um equilíbrio inefável entre extremos.

Em algum ponto entre o momento tarde demais para reverter o cenário e o momento muito cedo para perceber o que aconteceria, eu me despedaço. É simples assim. Meus pedaços se espalham por todo lugar, não existe concretude, não existe solidez. Eu aprendi a ver beleza nisso, do mesmo jeito que gosto de prédios abandonados e livros que terminam sem final. Há algo de inebriante nas pessoas, nos prédios e nos livros que resistem sem um propósito claro. Os meus pedaços estão todos e nenhum, atirados pelos cantos, basta juntá-los.

Sem voz acordei e sem voz fiquei, por longos meses. Ao buscar meus fragmentos por aí, percebo que alguns se foram para sempre, outros se transformaram em peças irreconhecíveis. Eu junto todos os pedaços primeiro, dispondo-os na minha frente, e decido o que fica e o que vai. As peças que sobraram desse quebra-cabeças de mim mesma moldam-se uma à outra, encaixando-se da melhor maneira que conseguem. As palavras só voltam a infestar minha cabeça e invadir meus pensamentos quando meus fragmentos parecem menos etéreos, ainda que frágeis. Antes ouço, observo, reconheço.

Hoje, escrevo como muitas vezes fiz, durante uma madrugada silenciosa no escritório da casa dos meus pais. Na pilha de livros ao meu lado, encontro um livro de sociologia que lia durante as aulas no colégio. Dez anos atrás, eu sentava nessa mesma cadeira enquanto dentro de mim descobria meus primeiros textos. Também sentava-me aqui para estudar matemática, química e sociologia. Dentro do livro, o grifa-texto cor-de-rosa não faz uma linha reta, mas marca frases e parágrafos que eu achara importantes na época. Minha letra, escrita com uma lapiseira fina, parece um pouco menor e não muito diferente do que é hoje. Toco as páginas, fecho os olhos e consigo me ver naquele passado distante. Um pedaço meu esteve grudado ali por tanto tempo e eu finalmente havia o encontrado.

O livro intocado há uma década e a mesa onde apoio meu notebook permanecem iguais, eu que sou outra. Ainda que a natureza cíclica do universo não falhe, consigo sentir na palma das minhas mãos e com a ponta dos meus dedos a impassibilidade dos lugares até agora inalterados. Sinto-me, enfim, um quebra-cabeças desvendado. Para a minha sorte, nesta noite voltaram a mim, também, as palavras.

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