Pipa

Adalberto Sampaio
tripa
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2 min readOct 22, 2017

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Apostávamos quem conseguia empinar a pipa mais alto e então deixá-la presa próxima ao topo da árvore. Depois era necessário escalar o emaranhado de madeira e folhas para recuperá-la. Era um desafio de coragem. Tínhamos até uma escala de sucesso: o primeiro galho grande mais perto do chão chamava galho do mijão, o segundo galho do chorão, o terceiro galho da mulher do padre, o quarto e último era o galho do lambe-cu. Nem sabíamos o que significava “cu”, mas achávamos que ninguém queria ser conhecido por lamber um.

No começo era obrigatório chegar pelo menos ao galho do mijão, mas a competitividade aumentou e o mínimo aceitável se tornou o galho do chorão. O Luizinho foi o primeiro a passar do lambe-cu e ficou quase duas semanas inteiras se vangloriando. Antes mesmo de descer, ele pegou a navalha sem fio que tinha roubado do pai e gravou seu nome na madeira, como um alpinista que finca sua bandeira em um cume virgem. De repente viramos “Luizinho e a turma dos lambe-cus”. Quando eu consegui, em segundo lugar, já não importou tanto. A graça se perdeu quando o primeiro cruzou a linha de chegada.

Durante um temporal, um raio dividiu ao meio o tronco da árvore. Na manhã seguinte, a gente se reuniu ao redor dos destroços e, por ideia de alguém, mijamos em cima dos restos chamuscados de nossa companheira de aposta. Coincidentemente ou não, esse foi o fim da nossa amizade. O Luizinho, por exemplo, começou a treinar pra correr competitivamente e não tinha mais tempo pra brincar. Ano passado ele ganhou um ouro olímpico, saiu em todos os jornais. Mas eu recordei essa história porque ontem ele foi manchete denovo. Esfaqueou a namorada. Lembrei que, além de competitivo, ele também tinha uma certa obsessão por navalhas e outros objetos pontiagudos.

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Adalberto Sampaio
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