A guerra contra as drogas é uma guerra contra as mulheres

Tripby
TRIPBY
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5 min readApr 23, 2017

Você já ouviu falar de uma chefona do tráfico? O tráfico de drogas é liderado por homens, e ainda assim, a prisão de mulheres por crimes relacionados ao tráfico só cresce.

Atualmente a política de drogas é uma das principais causas do encarceramento de mulheres em todo o mundo, que até os anos 80 era majoritariamente constituído por crimes ligados à sua condição de gênero como o infanticídio, aborto, crimes passionais e prostituição.

A famosa guerra às drogas é uma política que prioriza a repressão e medidas de privação à liberdade, e se baseia em um discurso de segurança pública e proteção da saúde, assim como na coibição da produção e distribuição das substâncias proibidas por lei. Todavia o que vemos em mais de um século de repressão às drogas é justamente o oposto do que se alegava: apesar dos enormes gastos de recursos públicos para prender os traficantes (e usuários, visto que a lei não é muito clara em relação a quantidade e isto é subjetivo — e por isso a polícia é o primeiro agente punitivo a filtrar quem é criminoso ou não), o mercado de drogas está em pleno funcionamento e a violência só cresceu. O saldo desta política é um superlotamento das cadeias, que agora estão abarrotadas de presos que respondem por crimes de tráfico e que na verdade não têm nenhum impacto dentro da rede de comércio de drogas ilícitas, mas recebem penas desproporcionais à gravidade dos seus crimes.

Historicamente, esta política atinge justamente grupos de pessoas menos favorecidas dentro da sociedade e desta forma pode ser vista como uma ferramenta de controle social. Associando grupos específicos às substâncias, combina preceitos morais, sociais e raciais em sua seleção penal, criminalizando pessoas baseado em aspectos classicistas, racistas e de gênero.

No Brasil, a quantidade de mulheres condenadas por tráfico de drogas cresceu 600% entre 2005 e 2010

No Brasil, a quantidade de mulheres condenadas por tráfico de drogas cresceu 600% entre 2005 e 2010. Das 15.263 mulheres presas nesse período, 10 mil responderam por tráfico. Esse aumento da criminalização das mulheres por tráfico de substâncias ilícitas ocorre justamente quando há uma mudança nas relações de trabalho e nas estruturas familiares, aprofundando ainda mais um processo conhecido como feminização da pobreza, que diz respeito a um aumento da pobreza baseado em desigualdades de gênero e está muito ligada ao aumento das famílias chefiadas por mulheres, isto é, que têm apenas um adulto do sexo feminino responsável.

E se o tráfico tem a cara de um lord, um chefão, ou seja, um homem, a pobreza tem a cara de uma mulher. Segundo relatório da PNUD em 1995, de 1,3 bilhões de pessoas pobres (incapazes de arcar com os custos de uma dieta básica), 70% eram mulheres. As consequências sócio-econômicas de ser mulher — sem o apoio de um marido — acabam por conduzir à pobreza.

Mulheres estão mais sujeitas à situação de desemprego e subemprego e enfrentam maior dificuldade de inserção no mercado, recebendo menos que os homens em um mesmo cargo e tendo a sua jornada de trabalho dobrada com os cuidados com a casa e os filhos que são sempre delegados à função da mulher. Toda essa desigualdade e marginalização as colocam em uma condição de vulnerabilidade muito maior, fazendo com que algumas passem a considerar as atividades ilegais como uma alternativa para sua dupla, às vezes tripla jornada de trabalho, como uma maneira de combinar suas muitas obrigações. (E com isto, de maneira nenhuma quero dizer que pobres estão mais sujeitos à cometerem delitos, mas que apresentam maiores chances de serem criminalizadas.)

Elas estão na ponta da cadeia de poder dentro da organização, e por isso, são as presas mais fáceis

Dentro da rede do tráfico, a situação de desigualdade não se altera nem um pouco. As mulheres estão na maioria das vezes em posições ainda mais subalternas, e sendo as mais vulneráveis quando se trata da punição pelos crimes. Elas estão na ponta da cadeia de poder dentro da organização, e por isso, são as presas mais fáceis. Além disso, mulheres parecem pegar penas mais longas para crimes pequenos se comparado aos homens que cometem grandes crimes de tráfico.

Se analisarmos o perfil da população carcerária feminina na américa latina, veremos que a grande maioria cometeu delitos de drogas não violentos. Muitas participam como “correios de drogas”, ou mulas, isto é, com a função de carregar droga em troca de alguma vantagem econômica. Muitas apresentam problemas de saúde mental e/ou dependência de drogas, já sofreram abuso sexual ou físico e a maioria é mãe (Harm Reduction International, 2012). O que então explicaria as penas desproporcionais por participação ínfima na rede do tráfico?

Uma explicação pra isso seria seu baixo poder aquisitivo e pouco poder dentro do tráfico, no qual dificilmente elas têm informações privilegiadas ou uma rede de contatos importantes. Outra análise plausível, porém, seria dizer que a mulher é punida por adentrar à um mundo pertencido aos homens e por sair da condição de submissa que se espera dela. Através da seletividade penal, a “justiça” e o sistema carcerário se ocupam de colocar a mulher “em seu devido lugar”.

Serviços de saúde e de redução de danos são primariamente pensados para homens, não levando as necessidades femininas em consideração

Também no âmbito de usuária, a mulher é inviabilizada, e quando se encontra na condição de dependente, dispõe de quase nenhum programa voltado à sua melhora e reinserção social. Serviços de saúde e de redução de danos são primariamente pensados para homens, não levando as necessidades femininas em consideração. A falta de pessoal preparado e sensibilizado às condições de gênero nos hospitais e intervenções também é evidente, visto que é grande a frequência com que mulheres que usam esses serviços relatarem se sentiram indignas de receber o tratamento.

Um documento publicado em 2014 pelo UNODC (Nações Unidas Sobre Drogas e Crime) e a INPUD (Rede Internacional de Pessoas que Usam Drogas), enfatiza que as mulheres que usam drogas são freqüentemente invisíveis quando se trata de investigação, serviços e orientação técnica, estando em maior risco de contrair hepatite C e HIV. Entre os obstáculos enfrentados pelas mulheres ao utilizar esses serviços, a WOLA (Oficina em Washington para Assuntos Latino Americanos) destaca os desafios estruturais, como falta de cuidados para crianças, locais não seguros ou indiscretos, horários de serviço rígidos, longas esperas, obstáculos burocráticos e falta de disposições de serviços suficiente. Também existem as barreiras pessoais que podem incluir medo do parceiro ser violento ou de perdê-lo, medo de perder seus filhos para órgãos governamentais e preocupações financeiras.

O estigma social sobre a usuária também é agravado pelo seu gênero, que muitas vezes é abandonada pelos parentes e amigos, além de serem consideradas promíscuas, amorais e incapazes de cuidar da família e dos filhos. Enquanto os parentes costumam buscar tratamento para os dependentes homens, é muito comum que se queira esconder a mulher dependente, dificultando o acesso das mesmas aos serviços de saúde e assistência social.

A exclusão e aprisionamento destas mulheres tem um alto custo para a sociedade, visto que predominantemente é a figura feminina que assume o papel de mãe e cuidadora, responsáveis por jovens e idosos que necessitam de cuidados, causando efeitos devastadores em famílias e comunidades. Além disso, o aprisionamento acaba com as chances da mulher conseguir um emprego legal, perpetuando um ciclo vicioso de pobreza e encarceramento. Ainda, raramente elas oferecem algum perigo real à sociedade, realizando apenas tarefas de baixo nível e alto risco, como forma de sustentar uma família ou resultado de coerção de parceiros. A interseção do proibicionismo e das desigualdades sociais exacerbam os danos e as violações dos direitos humanos dessa política, tornando a guerra às drogas uma guerra contra as minorias.

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