“O Urso”: luto e caos no calor de uma cozinha

Erick Rodrigues
Trocando de Canal
Published in
4 min readNov 23, 2022
Divulgação/Star+

Pedidos chegando, panelas no fogo, ingredientes separados, louça para lavar, clientes no balcão. Na cozinha apertada de “O Urso”, série disponível no catálogo do Star+, há, ainda, outros dois elementos que se relacionam. A rotina do estabelecimento comandado pelo chef Carmen Berzatto (Jeremy Allen White) também é marcada por luto e caos.

Carmy, como é chamado pelos amigos e familiares, vai parar na cozinha do “The Original Beef of Chicago” depois do suicídio do irmão, Michael (Jon Bernthal). Ele abandona uma carreira de sucesso na alta gastronomia para assumir a função nesse restaurante especializado em sanduíches e pratos mais populares. O comando do estabelecimento é dividido com Richie (Ebon Moss-Bachrach), sócio e primo de consideração de Michael.

Uma das primeiras medidas de Carmy é reorganizar o cardápio e os processos de preparo. Para isso, ele adota comandos e técnicas trazidos da alta gastronomia, o que gera atritos com a equipe, muito acostumada ao sistema estabelecido por Michael. Para lidar com esse problema e fortalecer a mudança, o cozinheiro contrata Sydney (Ayo Edebiri) para ser a sous chef dele.

Tina (Liza Colón-Zayas), que sempre foi a ajudante de confiança de Michael, é uma das integrantes da equipe que reage mal à proposta de Carmy. Além de questionar a nova organização, a cozinheira implica com o espaço dado a Sydney. Richie é outro que não aceita os planos do agora sócio e defende com vigor que tudo se mantenha como sempre foi.

A cozinha de “O Urso”, apesar de muito pequena, abriga uma quantidade desproporcional de luto. Todos os integrantes da equipe convivem com alguma variação do sentimento de perda e da desorientação que o acompanha. Carmy, que foi proibido de trabalhar no restaurante enquanto o irmão estava vivo, lida com a ausência de Michael e recebe de herança a missão de salvar aquele negócio. Richie não se conforma com a falta que sente do primo e responde a isso adotando um comportamento reativo, violento.

Sydney, de alguma forma, também vive uma espécie de luto. Depois de uma aposta fracassada em um buffet, ela reúne os “cacos” que restaram para recomeçar. Tina, Marcus (Lionel Boyce) e os demais integrantes da equipe são tirados de uma rotina confortável e passam a questionar o espaço deles e as próprias habilidades, sem contar o peso que sentem pela morte do antigo chef do restaurante.

Divulgação/Star+

Tantos lutos vividos internamente pelos personagens os transformam em panelas de pressão que estão prestes a estourar. A interação de tantas dores instaura, na convivência entre eles, um verdadeiro caos. O ambiente fica pesado e chega, diversas vezes, ao limite por conta dos atritos, que se dão por meros esbarrões ou por uma quantidade absurda de pedidos que chegam e com os quais a equipe não é capaz de lidar.

“O Urso” também aborda a questão do luto que não é, de fato, processado, mas sufocado. Isso é visível, especialmente, em Carmy e Richie. O patriarcado transmite a ideia de que os homens não podem expressar sentimentos ou, então, que é aceitável reagir apelando apenas para a brutalidade. Enquanto o irmão de Michael reprime a dor da ausência e escolhe não dividir os traumas com ninguém, o primo de consideração opta por ser grosseiro, errante e explosivo para esconder o quanto está ferido.

Em meio a tantos traumas, há alguns vislumbres de que a vida se transforma e segue em frente, ainda que os personagens percebam pouco esse movimento. As mudanças impostas por Carmy, por exemplo, surtem efeitos depois das reações negativas da equipe. Marcus descobre o valor do incentivo e a beleza do desenvolvimento de uma habilidade. Já Tina, antes muito acomodada, se sente provocada pela presença de Sydney e se empolga com a possibilidade de melhorar.

A riqueza da construção dos personagens de “O Urso” é acompanhada por um ótimo texto e por uma direção muito arrojada. O penúltimo episódio da primeira temporada da série, todo feito em plano-sequência, é tecnicamente impecável e, seguramente, um dos melhores que a televisão mundial já produziu. A trilha sonora e o ótimo elenco também merecem destaque.

Ainda falta um pouco para o fim do ano, mas já dá para dizer que “O Urso” é a melhor série de 2022 e uma das novidades mais interessantes da TV e do streaming nos últimos tempos. No calor de uma cozinha sufocante, entre panelas e utensílios, dores reprimidas e que se esbarram pelos cantos produzem luto e caos, elementos que se misturam e deixam uma equipe à beira da exaustão mental.

O URSO (primeira temporada)

ONDE: Star+

COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)

--

--