Ônibus são incendiados por traficantes em confronto com a polícia no morro da Mangueira em janeiro de 2007 (Daniel Ramalho/Trombone)

A morte de Playboy e a inútil 'guerra ao tráfico'

Operação que matou o traficante mostra porque é preciso mudar já a política de repressão às drogas

Giuliander Carpes
Trombone Media
Published in
6 min readAug 11, 2015

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Ontem foi Playboy. Anteontem, Matemático. Trasantontem, a gente nem lembra mais como se chamava o cara. Amanhã os principais traficantes candidatos a virar presunto pelas mãos da polícia são uns tais de Peixe e Orelha — de quem você provavelmente ainda não ouviu falar. Mas é só aguardar. Em breve, um novo monstro estará criado. Por ora, fiquemos com o recém abatido.

A polícia matou no último sábado "o bandido mais procurado do Rio de Janeiro", como todos os jornais e portais de internet anunciaram e você deve ter lido. Essas notícias causam um rebuliço tremendo. Apresentadores daqueles programas policiais da TV e editores de jornais mais voltados para notícias populares devem salivar de excitação. Efetivamente, no entanto, são notícias que significam muito pouco.

Playboy era só mais um nome na lista dos bandidos a se temer. Assim como aconteceu depois da morte de Matemático ou de qualquer outro traficante graúdo na hierarquia das facções, o tráfico de drogas não acusa o golpe. Tanto que a ADA (Amigos dos Amigos), facção de Playboy, já planeja até uma vingança contra a polícia, segundo reportagem da revista Veja.

Como uma grande empresa, a facção que perdeu seu comandante permanece praticamente tão forte quanto antes — só que mais irritada. Ou seja, extremamente atuante e com fome de causar mais mortes pelo caminho nas disputas com a polícia e por território. Sim, a lei desse mercado ilegal e sem regulação é a bala. Facção com o maior arsenal, domina os melhores pontos de venda.

A polícia mobilizou 100 agentes especializados, veículos blindados e helicóptero na operação que pretendia capturar Playboy vivo ou morto no Complexo de Favelas da Pedreira. Você tem ideia do que significa isso? Uma fortuna paga pelo contribuinte. E poderia até significar mais tragédia caso algum dos capangas que faziam a segurança de Celso Pinheiro Pimenta (esse o nome real de Playboy) fossem melhorzinhos de mira e tivessem acertado algum policial.

Tudo isso para quê? Causar um auê. Mostrar que "a polícia está atuante", como disse o governador Luiz Fernando Pezão. Por que a quadrilha comandada por Playboy, que não apenas traficava drogas como também agia no ramo do roubo de cargas, dificilmente deixará de atuar nesse negócio ilegal tão lucrativo.

O fuzil, esse equipamento comum nas favelas do Rio de Janeiro (Mauro Pimentel/Trombone)

O que os governos chamam de "guerra contra o tráfico", a gente pode chamar de "enxugar gelo". Obviamente, é impossível para a polícia prender — ou exterminar— todos os traficantes importantes do Rio de Janeiro. Um chefão morre ou é preso, outro logo assume em seu lugar. No dia seguinte à morte de Playboy, o jornal Extra já anunciava os dois candidatos ao seu cargo. Rei morto, rei posto.

A maioria dos governos brasileiros, sob a mira de setores conservadores do eleitorado, se omite de discutir formas diferentes de lidar com o problema das drogas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é, já há algum tempo, um cabo eleitoral de uma abordagem menos repressora e mais humana da questão. Mas o PSDB, seu partido, não trouxe o assunto para a mesa de discussão na eleição presidencial recentemente perdida por Aécio Neves para Dilma Rousseff. Tampouco FHC se manifestou sobre o tema durante a campanha.

Recentemente, o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, uma das poucas figuras desse país que ainda goza de certa reputação no setor, jogou a toalha. José Mariano Beltrame, um cara que normalmente reforça o discurso da impunidade, declarou que "a guerra às drogas é perdida, irracional" e que "no Brasil a discussão sobre a descriminalização das drogas não pode passar desse governo" em excelente entrevista à revista Época. As declarações de Beltrame deveriam ter revirado o Rio, cidade que vive à espreita do tráfico. Mas não causaram nem 1% da repercussão que teve a morte de Playboy.

"Parece que os brasileiros não acordam para o desperdício dessa guerra. Não existem vitoriosos. Descriminalizando o uso, um dos efeitos é o alívio na polícia e no Poder Judiciário, que podem se dedicar aos homicídios, aos crimes verdadeiros." (José Mariano Beltrame, secretário de segurança do Rio)

Beltrame foi simplesmente o principal cabo eleitoral da reeleição de Sérgio Cabral e da eleição de Pezão para o cargo de governador no Rio. Por quê? É o artífice das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que diluíram o poder do tráfico nas principais favelas da capital. O problema é que o modelo é caro e aparentemente impossível de ser espalhado pelas milhares de favelas da cidade e região metropolitana por uma série de motivos.

Enquanto era um projeto localizado, dava certo. Com o passar do tempo, a polícia militar foi obrigada a formar milhares de agentes a toque de caixa para atuar nas UPPs. Novatos acabaram sendo destacados para atuar diretamente onde a chapa é mais quente, como o Complexo do Alemão e Rocinha. Começaram a surgir casos de corrupção e abusos de policiais despreparados. Em geral, o programa também não foi suportado por grandes melhorias sociais nas comunidades — escolas, saúde, saneamento básico — , apenas acesso ao consumo.

Cada inauguração de UPP é um espetáculo: agentes, armas pesadas e equipamentos blindados ao alcance dos olhos de todo mundo (Mauro Pimentel/Trombone)

O resultado é que o tráfico se reorganizou em outras favelas sem UPP como no Complexo da Pedreira, e o programa de "pacificação" passa talvez pelo seu momento de maior contestação pública. Aparentemente a cúpula da segurança pública se deu conta recentemente de que polícia comunitária (de aproximação com o morador) e repressão ao tráfico (com fuzis na mão por entre as casas) não combinam.

Enquanto isso, o nosso vizinho Uruguai regulamenta produção e venda da maconha com resultados positivos. Estados americanos — para onde os nossos especialistas em segurança pública sempre miram quando lhes convém — fizeram a mesma coisa e a indústria da maconha, com arrecadação massiva de impostos, mais que dobrou nos últimos dois anos. Ah, estudos também comprovam que as três drogas que mais matam nos EUA são totalmente legais há bastante tempo: álcool, cigarro e medicamentos.

O debate sobre as drogas precisa deixar o âmbito da guerra e do espetáculo inútil em torno das caras mortes dos bandidos mais procurados do Rio. É dinheiro que podia estar gerando impostos e programas de saúde mais eficientes para lidar com o vício, mas só tem feito jorrar mais sangue.

Talvez a discussão esquente ainda durante essa semana quando o Supremo Tribunal Federal (STF) mais uma vez assumirá funções que deveriam ser exercidas pelo executivo ou legislativo federais: propor soluções para temas de relevância e abrangência nacionais. Já foi assim quando os ministros do STF liberaram o casamento civil de homossexuais, o aborto de anencéfalos, entre outros assuntos polêmicos. Agora a corte máxima do país pode descriminalizar do porte de drogas.

De qualquer forma, mesmo com a decisão positiva do STF, o país já sairá atrasado. Nada leva a crer — a não ser a posição de Beltrame — que o executivo ou legislativo vai assumir seu papel de propor a regulamentação da produção e venda das drogas. É a única tentativa que ainda não foi feita para enfrentar o tráfico e poupar milhares de vidas levadas numa guerra inútil.

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