As altas torres de prédios que tomam conta da paisagem da Barra da Tijuca (Mário Moscatelli/Olho Verde)

Como as construtoras vendem a Barra em tempos de crise

Corretores não escondem congestionamentos, mas apostam em "caldeirão cultural" longe da zona sul

Julia Michaels
Trombone Media
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8 min readJul 22, 2015

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A pouco mais de um ano dos Jogos Olímpicos, o mercado imobiliário podia estar mais agitado não fosse a crise econômica. Pela primeira vez em anos, o preço dos imóveis está caindo. Essa dinâmica afeta o principal canteiro de obras do Rio de Janeiro: a Barra da Tijuca. Centenas de empreendimentos ainda estão sendo construídos na região. E precisam de comprador.

O enorme bairro da zona oeste abriga as principais obras para a Olimpíada, especialmente o Parque Olímpico e a Vila Olímpica. Esta última vai se tornar um grande condomínio chamado Ilha Pura após a realização do evento. São 3.602 unidades habitacionais em 32 prédios de 17 andares — uma opulência típica da Barra.

Segundo reportagem do jornal O Dia, os construtores do Ilha Pura estão em dificuldade para vender os apartamentos do empreendimento. Ao contrário da Vila do Pan — que ainda hoje sofre com severos problemas estruturais e desvalorização, mas teve 90% dos seus imóveis negociados num único dia há quase 10 anos atrás — , a Vila Olímpica vendeu apenas 50% dos apês dos três primeiros prédios comercializados.

Projeção da Vila Olímpica/Ilha Pura quando for inaugurado: primeira vila de atletas de alto padrão, segundo a construtora (Divulgação)

Em setembro do ano passado, no início da crise econômica atual e pouco antes da eleição, visitei o lançamento do projeto. Embora houvesse um bom número de pessoas aparentemente interessadas no empreendimento, já existia uma compreensão dos corretores de que seria preciso fazer de tudo para cativá-las a comprar o seu cantinho no Ilha Pura — que não é uma ilha, mas “um pedaço de terra cercado de belezas naturais por todos os lados”, como descreveu Ricardo Correa, assessor de marketing da presidência da construtora Carvalho Hosken..

Espumante, salgadinhos e música ao vivo

A conversa de vendedor no Ilha Pura no dia do lançamento começou por aí depois que os clientes desceram de seus carros (entregues a um serviço de valet) para conhecer o projeto, tomar espumante, beliscar salgadinhos e ouvir uma música suave ao vivo.

A ampla maioria dos possíveis compradores nesse ambiente eram brancos. O vídeo promocional do empreendimento, narrado pela veterana atriz Fernanda Montenegro, mostra uma única família de pele um pouco mais escura.

Perguntado sobre diversidade cultural no Ilha Pura, Correa disse que a Carvalho Hosken é patrocinadora da Orquestra Sinfônica Brasileira, cuja nova sede é a Cidade da Música, a megaconstrução superfaturada que fica a alguns minutos do projeto imobiliário de carro.

Correa também falou de shoppings, cinemas, das praias próximas, e do grande parque no entorno do condomínio. Disse que cada prédio do complexo contará com um pequeno home theater. Mencionou o pólo gastronômico e as enormes esculturas nos jardins de outro empreendimento da Carvalho Hosken, o Península — o maior condomínio da Barra da Tijuca, que já recebeu até uma exposição de objetos de art nouveau e art decó.

“A Barra é um grande caldeirão cultural onde as tribos se encontram, como em Nova York. Só não tem identidade própria ainda por ser nova”
(Ricardo Correa, assessor de marketing de construtora)

Correa acrescenta que o bairro já mudou em relação ao estereótipo antigo que possuía. “A Barra dos emergentes não existe mais. As pessoas que moram aqui produzem muito, trabalham muito. Há engarrafamentos nas saídas dos prédios, na hora do rush”, disse.

A ideia da vida na Ilha Pura, diz o assessor de marketing, é que o morador “pare seu carro na sexta-feira, depois do trabalho, e só o pegue de novo na segunda-feira, para ir ao trabalho”. A Barra “é outra cidade”, explica. “Ninguém vai precisar mais ir para a zona sul.”

Quem quer se mudar para a Ilha Pura, de acordo com Correa, são famílias jovens, que já moram no bairro e pensam num ninho próprio. Os quatro mil clientes que visitaram o stand no primeiro mês e meio de vendas procuram segurança e espaço para as crianças brincarem.

Agito total entre os corretores imobiliários no dia do lançamento (Julia Michaels/Trombone)

Os futuros moradores, na visão dos corretores, gostam do contato com a natureza e os cuidados com o meio ambiente (a construtora promete esgoto tratado e levado até o emissário submarino da Barra, o que não é uma realidade em muito condomínio de alto padrão do bairro) e valorizam a sustentabilidade, que possibilitou a certificação LEED ND, a primeira da América Latina para um bairro novo.

Os sete condomínios irão oferecer transporte até as estações mais próximas dos BRTs e, provavelmente, traslado até a praia e à Linha 4 do metrô. O layout dos apartamentos é moderno e flexível, e leva em conta a tendência de não mais contar com empregados domésticos que dormem no emprego.

E os preços ainda são, para a classe média, relativamente acessíveis: o apartamento menor, de 75 metros quadrados, custa em torno de R$ 712 mil — espaço semelhante em um edifício antigo de Ipanema, na zona sul, sai facilmente por mais de R$ 1 milhão. O maior, de 230 metros quadrados, é vendido por pouco mais de R$ 2 milhões.

Para muitos, morar no Ilha Pura é a realização de um sonho (Julia Michaels/Trombone)

O Ilha Pura dificulta a existência da Vila Autódromo. Não porque os futuros moradores se incomodem com os antigos habitantes da vizinhança. A comunidade está sendo retirada das proximidades do empreendimento pelo prefeito Eduardo Paes para abrir vias de acesso ao Parque Olímpico e à Vila Olímpica, apesar de a comunidade ter sido premiada com o Deutsche Bank Urban Age Award em 2013, pelo plano de requalificação urbana desenvolvido em conjunto com a UFRJ e a UFF.

Impulso com os Jogos 2016

No momento em que a cidade do Rio venceu a competição para receber os Jogos Olímpicos de 2016, houve questionamentos, da parte de urbanistas, do plano para sediar a maior parte dos Jogos na Barra.

Diziam eles que tal localização do evento iria perpetuar e alimentar o erro que foi a criação da Barra, contribuindo ao espraiamento da cidade, o que aumenta o custo dos serviços municipais e a demanda por investimentos em transportes públicos de trajetos longos. Recomendaram que os Jogos acontecessem na decadente Zona Portuária, plena de espaços subutilizados — e localizada ao lado do centro da cidade.

Venceu esse debate quem acredita na Barra, que abrigava 301 mil pessoas em 2010, segundo o último censo — número que deve ter crescido de maneira significativa nos últimos anos. A cifra representa apenas cinco por cento da população da cidade, mas levando em conta a população de outros bairros da Zona Oeste, chega-se a quase 20% da população municipal.

A justificativa dos vencedores da discussão, como explica o prefeito Eduardo Paes, é que essas pessoas todas não vão migrar para a zona portuária ou a zona norte, áreas com maior potencial de adensamento. Elas já estão espalhadas pela zona oeste — onde a terra é mais barata — e precisam de transporte e moradia lá.

Foi a decisão de sediar a maior parte dos Jogos Olímpicos na Barra da Tijuca que impulsionou uma nova onda de investimento, construção e crescimento na região. Pretende-se que a extensão do Metrô, junto com três novas linhas dedicadas de ônibus articulados, os BRTs, não apenas atenda à população da região, mas que complete a integração da cidade como um todo, bem como Lúcio Costa previa.

E aí entram a empreendedora imobiliária Carvalho Hosken e a construtora Odebrecht, duas de um pequeno grupo de empresas que está tirando vantagem das oportunidades da transformação do Rio de Janeiro olímpico.

Carlos Carvalho Hosken, 90 anos, comprou grande parte da Barra há quatro décadas. Viveu o suficiente para o investimento render (Julia Michaels/Trombone)

Como surgiu a Barra

O arquiteto e urbanista Lúcio Costa, morto em 1998, autor do plano piloto de Brasília, estaria aplaudindo de pé: que a cidade do Rio de Janeiro expandisse para o oeste e ocupasse as várzeas da Zona Oeste era, para ele, uma espécie de Destino Manifesto. O centro da cidade estaria fadado a se transferir para o amplo território dos 166 quilômetros quadrados da Barra da Tijuca, onde todos iriam rodar tranquilamente em grandes avenidas.

Costa desenhou a ocupação da Barra nos anos 1970, mas foi apenas nos anos 1980, com o incremento da violência e a decadência do Rio, que o bairro começou a tomar vulto.

Foi a versão carioca do white flight norte americano, dos anos 1960, quando as famílias brancas do pós-guerra fugiam das cidades para os subúrbios de grama aparada e cerquinhas brancas. Deixavam para trás os negros que migravam do sul do país para as metrópoles do norte, em busca de empregos industriais.

Vinte anos mais tarde, na Barra da Tijuca, torres e condomínios fechados espalharam-se, construídos por peões que faziam suas próprias casas às margens das amplas lagoas; todos despejavam o esgoto nelas. Desde então, as várzeas vem sendo progressivamente ocupadas. O túnel da Grota Funda, inaugurado em 2012, deu ímpeto ao crescimento contínuo em direção ao oeste, para os bairros de Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz.

A expansão da cidade para o Oeste lembra um pouco a expansão dos Estados Unidos no mesmo sentido, em meados do século XIX. “Aqui nasce uma cidade nova,” comemora Correa. “O Rio de Janeiro está crescendo muito, não tinha mais para onde se dirigir.”

A afirmação, no entanto, é bastante questionável. Segundo o IBGE, o Rio está em penúltimo lugar entre as capitais do país em termos de crescimento populacional. Quem se expande de verdade é a Barra. A prefeitura estima que o bairro cresceu 18% até esse ano em comparação a 2010. E a previsão é que aumente 31% até 2020. Por outro lado, a vizinha pobre Cidade de Deus diminuirá 3%.

Vila Olímpica/Ilha Pura (ao fundo) fica na região do Riocentro, na Barra (Mário Moscatelli/Olho Verde)

Uma realidade para se questionar

Ao contrário de Lúcio Costa, Jane Jacobs estaria se virando no túmulo. Autora de Morte e Vida de Grandes Cidades, guru dos urbanistas mais de vanguarda, ela pregava bairros densos e diversificados com foco no pedestre como a receita para uma cidade segura e saudável.

À luz dos ensinamentos de Jane Jacobs, é nosso dever nos perguntar: como será essa cidade toda, com algumas pessoas vivendo em ilhas puras, e outras experimentando a variedade inerente à vivência humana? Com a ocupação de territórios que força a saída de quem não consegue mais pagar o preço deles? Com os custos de densidade baixa de uma região sendo pagos por toda a população?

Provavelmente, bem parecida com muitas outras cidades do mundo enfrentando as mesmas questões e desafios. Pois hoje, nos Estados Unidos, um número crescente de pessoas foge dos subúrbios em direção ao centro da cidade, lugar mais animado, de onde quem ali ficou — os pobres — está sendo despejado.

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Julia Michaels
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First-time co-founder of virtual environment FullCircle, social justice and heritage conservation non-profit centered on Mother Africa and the Diaspora.