Índios Waura navegam em pescaria no rio Pulianga, no Alto Xingú (Sebastião Salgado/Amazonas Images)

Vamos agora elogiar nosso homem ilustre?

Ou por que devemos muito respeito ao maior fotógrafo do mundo de todos os tempos

Daniel Ramalho
Trombone Media
Published in
8 min readJul 21, 2015

--

____________________

____________________

Sebastião Ribeiro Salgado nasceu em 8 de fevereiro de 1942 em Aimorés, Minas Gerais. Economista, optou pela fotografia aos 29 anos. Fez parte da agência Magnum, percorreu mais de 120 países, recebeu as maiores comendas da fotografia e das artes pelo mundo. Aos 71 anos, concluindo o projeto Gênesis, constituiu uma obra monumental, sem precedentes na História da Fotografia. Seu único erro foi ter nascido no Brasil.

O título desse artigo é uma referência ao livro de Walker Evans e James Agee, “Let Us Now Praise Famous Men, obra fundamental na compreensão do fotojornalismo como expressão documental-humanística — e, talvez, a primeira demonstração da sua força transformadora. Seu título vem do primeiro versículo do Livro do Eclesiástico, lá no Antigo Testamento, e nos dá uma pista para começar a perceber as nuances no trabalho de Salgado. O objetivo aqui é tentar desconstruir as críticas endereçadas a seu trabalho, principalmente após o lançamento do filme “O Sal da Terra”.

Família Borroughs, Alabama, 1936 (Walker Evans)

"Façamos o elogio dos homens ilustres, que são nossos antepassados, em sua linhagem.

(…)

Homens ricos de virtude, que tinham gosto pela beleza, e viviam em paz em suas casas."

(Eclesiástico, 44)

Origens x Pretensão

Salgado batizou dois de seus livros Êxodos e Gênesis. O primeiro é uma compilação de Outras Américas, Trabalhadores e Migrações (tem como objeto principal a vida do homem). O último é decorrente do maior projeto fotográfico da História da Humanidade para o qual o fotógrafo viajou pelos lugares mais remotos do planeta afim de mostrar uma natureza ainda não contaminada pela presença humana.

“Pensa que é Deus!” foi uma das críticas direcionadas a Salgado em 140 caracteres recentemente. “Não é pouca pretensão adotar como título uma passagem do Evangelho de Mateus. Mas ainda mais problemático é a tirada demagógica atribuindo aos personagens trágicos de Sebastião Salgado, marginalizados, esquecidos, sofridos, massacrados, a condição de seres discretos e essenciais, como o sal”, escreveu Eduardo Escorel em texto da revista Piauí que chama o filme “O Sal da Terra” de “conto da carochinha”.

Ouvi certa vez que um julgamento diz mais do juiz que do objeto em si e isso fica claro nessa crítica: marginalizados, sofridos, massacrados — SIM — mas JAMAIS esquecidos e POR DEMAIS essenciais. Estarão para sempre a te penetrar com o olhar. A fotografia como instrumento de formação de memória. Isso foi, existe. Fotografando-os com sua imensa cultura, Sebastião retira-os do grotões da miséria e os coloca nas paredes das principais galerias de arte a incomodar. Lembra ao mundo que eles existem e que são produtos (ou subprodutos) dele mesmo. Como o sal marinho que conserva os alimentos, mas em excesso causa problemas na pressão sanguínea.

Refugiados em campo na Africa, 1985 (Sebastião Salgado/Amazonas Images)

Armadilha à Francesa

O jornal francês Le Monde, em seu blog sobre fotografia empunhou armas para tentar desconstruir a real dimensão enquanto obra sem precedentes de Gênesis. Em texto cuja tradução teve bastante repercussão nas redes sociais no Brasil, afirmou que o trabalho apresentado na Maison Européenne de la Photographie, tinha três armadilhas para o espectador:

Pinguins-de-barbicha sobre icebergs entre as ilhas Zavodovski e Visokoi, entre o continente americano e a Antártica. Foto Sebastião Salgado/Amazonas Images

1. Imagens espetaculares demais, National Geographic demais (mesmo em preto e branco).

2. Etnologia barata, fingindo discurso pseudo-científico.

3. Lado business da exposição (citando a edição limitada de Gênesis a 8.500 euros da TASCHEN Books).

Nos versos (em tradução livre) da Marselhesa, o hino nacional francês, surge uma pista para o jornalão sair disparando contra o trabalho de Tião:

Que! Essas multidões estrangeiras / Fariam a lei em nossos lares! / Que! As falanges mercenárias / Arrasariam nossos fiéis guerreiros (bis) / Grande Deus! Por mãos acorrentadas / Nossas frontes sob o jugo se curvariam / E déspotas vis tornar-se-iam / Mestres de nossos destinos!

O “padrão National Geographic” sempre foi considerado um nível acima do fotojornalismo. Há décadas as imagens da revista permeiam o inconsciente coletivo. A imagem do fotógrafo-aventureiro-desbravador do desconhecido elevou Michael Nichols, David Doubilet, o brasileiro Luciano Candisani e alguns eleitos à categoria de celebridades internacionais, detentores de um conhecimento mais elevado que simplesmente documentar a tormentosa vida do homem. Na idade para aposentadoria no Brasil, Sebastião inicia um projeto que transcende o “padrão” da Revista (!).

Sebastião Salgado se torna com Gênesis o grande mestre da fotografia. Nesse trabalho ele extrapola os limites do virtuosismo de Cartier-Bresson, arrasando o fiel guerreiro, instituição nacional francesa. Todas essas "pseudo-armadilhas" podiam facilmente ser utilizadas para tentar desmerecer qualquer uma das exposições e dos livros de H.C-B inclusive. C’est la vie!

Dia dos Mortos em San Vicente Nautec,
Equador, 1982 Sebastião Salgado/ Amazonas Images

Os limites e influências do fotógrafo

O fotógrafo sul-africano Kevin Carter, do Clube do Bangue-Bangue, venceu o Prêmio Pulitzer em 1994 pela icônica foto de uma criança caída no chão do Sudão com um urubu à espreita. Suicidou-se pouco tempo depois, aos 33 anos, deprimido, após sofrer uma avalanche de críticas sobre o que aconteceu com a criança, por que não havia ajudado. Sebastião, que também andou por aquelas bandas certamente tirou uma lição desse episódio.

Uma crítica costumeira é que Sebastião não nomina os fotógrafos que o influenciaram. Em tempos de listas (e essa foi a razão de cometer esse texto, ao me deparar com uma lista dos 30 maiores aonde Salgado figurava em segundo lugar), essa não-facilitação parece uma certa vontade de “esconder o jogo”. E, sim, claro que é! Evita nominar para não cometer o erro de esquecer. Sabe que o conhecimento não é uma coisa rasteira. Seria justo esquecer Hine? Evans? Lartigue? Smith? Seymour? Ut? Evandro Teixeira?

Mas lembra que falamos de Cartier-Bresson? De 1966 a 2004 quando morreu, Henri Cartier-Bresson desistiu da fotografia e se dedicou ao desenho. Sebastião falou sobre ele numa entrevista a José Antônio Orlando em 2006: “Mas quando eu estava começando, tive a incrível sorte de conhecer Cartier-Bresson em Paris. Lembro até hoje das palavras dele, muito velhinho, dizendo que era preciso confiar nos meus instintos mais sutis para fazer um trabalho que tivesse algum valor além do registro banal. Acho que foi a principal lição que já ouvi em toda a minha vida.”

Ao nos depararmos com suas declarações fica claro que Sebastião viu tudo o que foi feito antes dele, aprendeu, apreendeu e, somente assim, pôde alçar voos mais altos. Enxergou além porque subiu no ombro de gigantes. Mas evita simplificar o trabalho, colocando uma negação como condicionante na epígrafe de Da Minha Terra a Terra, livro de entrevistas autobiográfico, que custa R$ 25 e derruba mais uma das críticas de que só produz para os ricos : “Quem não gosta de esperar não pode ser fotógrafo”.

Foto de W. Eugene Smith (esquerda) e Sebastião Salgado/Amazonas Images (direita). Smith, lendário fotojornalista da revista LIFE, tinha 18 dólares no banco quando morreu
Página de A Narrativa do Olhar, Programa Educacional do Exodos (Textos de Tereza Aline Pereira de Queiroz e Fotos de Sebastião Salgado)

Programas Educacionais

Quando lançou Êxodos, em 2000, havia um livro com tiragem limitada e que durante bastante tempo ficou disponível no portal Terra como curso de fotografia online chamado “A Narrativa do Olhar”. Com textos de Tereza Aline Pereira de Queiroz, propunha exercícios de pesquisa, apontava referências conscientes e inconscientes no trabalho dele. Talvez não seja exagero considerar esse livro uma obra prima sobre fotojornalismo e fotografia documental. Ouro puro. Disponível em pdf aqui.

Serra Pelada, 1986 (Sebastião Salgado/Amazonas Images)

“Que a pessoa veja que essas fotografias são parte de sua vida, do número de imagens que vê todos os dias, desse mundo fabuloso que é o idioma das imagens, a verdadeira linguagem universal.”

(Sebastião Salgado)

A Biblioteca de Alexandria

Certa vez, no lançamento do documentário “Abaixando a Máquina”, de Guillermo Planel, sobre o cotidiano dos fotojornalistas no Rio de Janeiro, no qual fui um dos personagens, fizemos exibições em universidades. Numa das sessões, um episódio me marcou bastante: após o filme, debatíamos com os alunos e um deles insistiu para que eu respondesse o que ele tinha que fazer ou estudar para se tornar um fotógrafo do Jornal do Brasil.

Tentei explicar que não havia uma fórmula pronta, que cada pessoa tinha sua trajetória, sua lenda pessoal, que o caminho se faz caminhando… Mas não adiantou. O rapaz ficou bastante irritado. Até hoje tenho a impressão que esperam que Sebastião responda como se faz para se tornar um Sebastião Salgado. Talvez nem ele saiba. Mas deixou muitas pegadas pelo caminho para seguirmos. A principal trata sobre projeto e administração.

Trabalhadores em mina de carvão na Indonésia (Sebastião Salgado/Amazonas Images)
Guarda Civil Espanhola. Foto de W. Eugene Smith

Vilém Flusser, filósofo checo-brasileiro que, como Sebastião, enxergava a necessidade de uma filosofia da fotografia como condição para o pós-história, escreveu dentre tantas obras Filosofia da Caixa Preta e Fenomenologia do Brasileiro. No segundo livro, ele afirma que o brasileiro é o povo do palpite genial, não do planejamento.

O método de trabalho de Sebastião Salgado, seu nível de organização, grau de sofisticação das pesquisas e estratégias de desenvolvimento do trabalho são referência para qualquer área de atuação. Nesse aspecto, Salgado pode sim ser considerado “europeu”, porque é muito melhor do que todos os outros. Quem dera os gestores públicos brasileiros bebessem um pouco nas suas fontes.

O escritor Umberto Eco escreveu certa vez que alguém vai a sua casa, repara na biblioteca e dispara: “Nossa… Quantos livros… O senhor já leu todos?” Ele responde faceiro, de bate pronto: “Não, claro que não (…) esses são os que ainda vou ler, os que eu já li estão na Biblioteca da Universidade”.

Então, amigo, quem quiser sonhar em ser o “novo” Sebastião Salgado, vai ter de estudar muito, fazer muita bolha no pé, calo no dedo, apurar por demais o olhar, exercitar muito a cabeça e criar músculos fortes no coração. E deixem o homem trabalhar. Que ele e sua esposa e companheira da vida toda Lélia têm 1,5 milhões de árvores replantadas no Instituto Terra pra cuidar em Aimorés (MG).

Lélia e Sebastião Salgado, em tempos de amores líquidos, um exemplo de casal que caminha junto. (Ricardo Beliel)

Você concorda com a análise sobre Sebastião Salgado? Recomende esse texto, isso vai ajudá-lo a se espalhar por aí. Discorda? Escreva uma resposta. Estamos aqui para conversar. :)

Grande Angular é a sessão do Trombone dedicada a abordar o universo da fotografia. Nosso ponto de partida é o Rio de Janeiro, a cidade mais fotogênica do país, que também passou a ser a mais fotografada quando a tecnologia digital habilitou todos nós a tirar boas fotos. Publicamos textos sobre trabalhos marcantes, lançamentos, equipamentos, curiosidades, entrevistas e ensaios.

--

--

Daniel Ramalho
Trombone Media

Fotojornalista e pesquisador em fotografia, coleções, imagens, narrativas, documentação e memória social