O Dono do Mundo

Três Opções
Três opções
Published in
11 min readAug 14, 2015

--

Zequinha chegou em cima da hora. O relógio já marcava dez horas da noite daquele 31 de dezembro quando ele chegou esbaforido, mas feliz só de ter chegado. Ainda suado depois de subir as ladeiras do morro, o filho carinhoso deu um beijo na mãe, um abraço no pai e desejou um Feliz Ano Novo para os dois. Depois partiu para a maternidade, onde sua esposa esperava o primeiro filho. Ele chegaria atrasado a todos esses compromissos se o transporte não fosse tão rápido. Zequinha acabara de sair do Presídio de Ilha Grande a bordo de um helicóptero, na fuga mais espetacular da história do sistema prisional brasileiro. Zequinha é Escadinha, apelidos de José Carlos dos Reis Encina.

Na carona do mosquito de ferro

‘A fuga cinematográfica é pra quem pode, estilo Hollywood, na terra do sacode.’ (Rapper Xis, na música ‘A Fuga’)

31 de dezembro de 1985. No alojamento de visitantes do Presídio Cândido Mendes, em Ilha Grande, as famílias encontram seus parentes presos e conversam sobre a esperança que se renova para o próximo ano. São 16 horas da tarde e o sol da Costa Verde do Rio de Janeiro revigora a aparência daqueles detentos, castigada pela cela fria. Pais abraçam as filhas, as esposas. Afagos, presentes, comidas. Até os guardas estão embebidos pelo clima natalino que paira naquele local tão cruel, conhecido como Caldeirão do Inferno.

De repente, uma ventania forte toma a região; e não era São Pedro anunciando uma chuva de verão. Era, sim, o movimento da hélice de um helicóptero anunciando para Escadinha que chegou a hora. Ele corre pelo pátio de terra afora, de mãos dadas com a mulher que viera lhe visitar. Qual um gato ao pular um muro, ele entra ligeiro no helicóptero, que já emendava a sua decolagem novamente. Olhou para trás, sorriu e subiu. O homem mais procurado do Rio de Janeiro tinha acabado de sair do presídio de segurança máxima na carona de um Hughes-300B, ao lado de Gordo, seu eterno amigo do crime, na véspera do Ano Novo. Carcereiros, policiais, companheiros de cela: todos estáticos, apáticos. O mais inacreditável: todos intactos. Escadinha fugiu sem dar um tiro, sem fazer um refém. Só não deixou de fazer barulho porque era um helicóptero. Até em Prison Break seria uma fuga absurda.

Escadinha não parou até chegar no Morro do Juramento, zona norte do Rio, onde nasceu e foi criado. Antes, uma parada rápida em Coroa Grande, na região de Itaguaí, e de lá para o seu Morro do Jura. Ao chegar, esbaforido, deu um beijo na mão de sua mãe, Dona Maria, e em seu pai, conhecido como Chileno. Assim que a favela soube de sua fuga, fogos foram disparados, e ainda não era meia-noite. A felicidade daquele lugar ao ver o seu fora-da-lei mais querido de volta às ruas era gigante. Churrasqueiras acesas, pagode, garrafa de cerveja aberta. Ali era o seu mundo e não tinha esse negócio de ser filho do dono. Ele era mesmo o dono do seu mundo, o Morro do Juramento.

No alto do morro, onde uma cruz foi construída sobre uma pedra — em sinal de protesto contra a morte de uma criança por policiais anos antes — velas e flores como agradecimento. Todo o Juramento jurou que, caso Escadinha saísse, comemorariam como a Copa do Mundo que não veio em 1982. Assim foi feito.

Tia Severina, uma senhora de 76 anos, doente, quase sem dentes, era só felicidade. Também recebeu a visita do ilustre sobrinho. Escadinha pagava religiosamente, mesmo na prisão, os remédios que ela precisava. Querido onde fosse, no dia seguinte, já outro ano, Escadinha visitou seus amigos na Favela do Jacarezinho, também na zona norte. Ao lado de seus guarda-costas — também ícones da Falange Vermelha — Gordo e Meio-Quilo, o dono do Juramento rompeu 1986 em liberdade.

O primeiro degrau da escada

‘Pobre, nasci com pouca sorte. Foda-se, mando aqui, com dinheiro e droga eu mando aqui’ (Rapper Xis, na música ‘A Fuga’)

Escadinha não teve o seu início na vida do crime diferente da maioria: aos 16, o filho de um líder comunitário no Morro do Juramento começou a se envolver com o tráfico. Furtos, alguns assaltos, uso de drogas. Nada destoava.

Como em uma empresa, Escadinha foi crescendo no organograma do tráfico até se tornar um dos líderes do morro. Conhecido todos e querido por crianças, mulheres e senhoras, ele ganhou a fama de bandido romântico: não admitia assaltos na região e nem abuso a mulheres. Também não admitia a entrada de crianças no tráfico de drogas. Ganhou respeito. Distribuía cesta básica, gambiarra de luz elétrica, remédios. Financiava churrascos para a comunidade. Lembrava um político, mas era um criminoso.

Em 1982, Escadinha realizou sua primeira fuga hollywoodiana: no presídio de Ilha Grande, Costa Verde do Rio, ele vestiu-se com uma farda de Policial Militar e deixou em sua cela um boneco de pano. Fugiu e caminhou rumo ao mar, apanhou um barco a remo se afastou da terra. A polícia cercou o Juramento, sua área, mas saiu na pior: um helicóptero caiu, matando quatro policiais civis. A sua fama na imprensa e na polícia ia crescendo, na mesma medida do respeito de sua comunidade. Membro da Falange Vermelha, célula inicial do Comando Vermelho, Escadinha fazia parte da cúpula da facção que conheceu ainda na cadeia, comandada por Rogério Lemgruber, Gordo, Meio-Quilo e Professor.

‘O crime nasceu independente’

‘Tira essa escada daí! Essa escada é pra ficar aqui fora!’ (Jorge Ben Jor, na música ‘W Brasil’)

Antes mesmo da fuga no helicóptero, a cúpula de sua facção, a Falange Vermelha, resolveu fazer uma greve de fome, em protesto por melhores condições no presídio de Água Santa, onde Escadinha cumpria mais uma pena. Com problemas decorrentes da greve, ele foi levado a um hospital no Centro do Rio. Foi visto dias depois comendo uvas verdes, ainda no hospital. Perguntado sobre a greve, ele disse que estava sendo bom por ter se livrado, pelo menos, ‘daquele inferno que é Água Santa’. Seu objetivo principal era ser transferido para Ilha Grande posteriormente. Conseguiu.

Com seu império já estabilizado, Escadinha foi pego mais uma vez pouco tempo depois. Por medidas de segurança, foi alocado no Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Centro do Rio. Esperto, respeitado e cheio de amigos, tentou fugir novamente. Desta vez, usando a localização da Casa de Detenção.

O Presídio era localizado na Rua Frei Caneca, no bairro do Estácio de Sá. Nos pés do Morro da Mineira e do São Carlos, os complexos da prisão eram praticamente vizinhos de parede de uma estação da Light, empresa que fornece energia elétrica na cidade do Rio de Janeiro. Era ali a solução: bandidos fortemente armados tomaram as instalações da empresa e causaram um blecaute no bairro e no presídio. A polícia descobriu a tempo e impediu o resgate.

Na década de 1990, Escadinha, aos poucos, foi tentando voltar a ser o José Carlos. Eventualmente colocado como o principal nome do Comando Vermelho, ele dava sinais de que entraria na onda de seu grande amigo Gordo. Em 1993, Gordo havia se tornado pastor, realizando cultos no então novíssimo presídio de Bangu I, onde toda a cúpula do C.V. cumpria pena — inclusive Escadinha.

Ali ele foi posto como líder de algumas confusões. Entre 1995 e 1996 surgia, no Rio, algumas dissidências do antes soberano Comando Vermelho. Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP ou PV, surgia no Complexo do Alemão como o líder do Comando Vermelho Jovem, um racha dos chefes mais novos, que não concordavam com o tipo de gestão dos traficantes mais experientes — entre eles Escadinha. Ernaldo Pinto de Medeiros, o , por sua vez, traira em 1994, no mesmo Complexo do Alemão, o maior mentor de Marcinho: Orlando Jogador. Com respeito de uns e ódio de outros, e também preso, fundou a facção Amigos dos Amigos, o A.D.A., para disputar territórios com o império do Comando. Robertinho de Lucas, outro preso de Bangu I da época, era o chefe do Terceiro Comando, que controlava algumas favelas, principalmente ao longo da Avenida Brasil.

Os bandidos românticos e assistencialistas iam perdendo força; em seu lugar, traficantes pouco piedosos, com pensamento empresarial e com compra e venda de drogas em enorme quantidade, fazendo conexões com organizações do narcotráfico em outros países. Sequestros passaram a ser mais frequentes, assim como roubo de cargas e assalto em vias expressas. O crime no Rio ganhava nova cara com três facções.

Entre o Comando de Jesus, o Vermelho, o Terceiro e o A.D.A, do seu até então amigo Uê, Escadinha se viu em uma sinuca de vários bicos, como fuzis apontados para a sua cabeça: era considerado por moradores do Juramento, homenageado por sambistas e respeitado por chefes de diferentes facções criminosas. Era odiado, logicamente, pelas autoridades da segurança pública e pelos policiais. Queria se desvencilhar deste mundo. Talvez já fosse tarde.

Bangu I era uma Ego City. Nela, reinava agora o líder Uê, que ostentava bebida alcoólicas na prisão, além de ter direito a mais visitas e outras regalias, como telefones; tudo na base do suborno. Por causa de um aparelho celular, brigou com o seu amigo Escadinha, que perdeu o prestígio. Era a hora do protagonista do filme da vida real do crime sair de cena.

A sua experiência falou mais alto: segurou a onda e se agarrou na sua perícia no crime. Escadinha tinha jogo de cintura, apesar da bala alojada na altura do quadril, resultado de uma troca de tiros com a polícia no Morro do Juramento. Foi se afastando das confusões em Bangu I e II na medida em que se aproximava a sua conquista do regime semi-aberto. Agora, em entrevistas, falava de sonhos, mesmo sem saber o que era a vida comum depois de 14 anos atrás das grades.

Capa de Brazil 1 (Zâmbia Fonográfica, 1999)

Escadinha entrou no regime semi-aberto e descobriu no Rap um novo vício. Lançou, em 1999, um CD intitulado Brazil 1 — Escadinha — ‘Fazendo Justiça Com As Próprias Mãos’, pela Zâmbia Fonográfica. O nome era uma referência ao Complexo Prisional de Bangu I, que o próprio inaugurou e passou pouco mais de quinze anos. O conteúdo, com letras pesadas e conscientes, versava sobre o conselho ao não uso das drogas, sobre o mundo do crime e à sua própria fuga ‘cinematográfica’. Cada música teve participação de um rapper. MV Bill, Racionais MC’s (cantam Homem Na Estrada), Consciência Humana e Xis são alguns dos presentes no disco. O último, inclusive, canta a música ‘A Fuga’, uma narrativa sobre, claro, a fuga de Escadinha em 1986.

Canal ‘jrbelorap’ no Youtube

A primeira faixa é uma carta de Escadinha, declamada pelo próprio. Com uma leitura de pronúncia difícil e barulhos de helicóptero ao fundo, ele fala, resumidamente, sobre recuperação.

Mas se Escadinha conseguia fugas espetaculares da prisão, fugir de confusão não era muito a dele, por mais que tentasse. Em 2000, já fora do crime, mas ainda cumprido pena, foi posto em mais uma, desta vez inusitada: um balão imenso foi para o ar em Vicente de Carvalho com os dizeres ‘Escadinha 2000’, em uma referência a sua possível candidatura para vereador. O balão caiu na Vila Kennedy, zona oeste, e as crianças correram atrás. Atrás delas, entretanto, estavam bandidos da comunidade, rivais, armados com metralhadoras, que não gostaram nada da atitude. Moradores de Vicente de Carvalho, na mesma época, costumavam ver uma faixa com a frase ‘Escadinha pede paz’. Era a promoção do surgimento de um novo Escadinha.

‘Tu é o Escadinha, rapaz! Vai morrer duro?’

‘Eu vi o Morro do Juramento triste, chorando de dor. Se o senhor presenciasse, chorava também doutor.’ (Beto Sem Braço e Serginho Meriti, na música ‘Meu Bom Juiz’, cantada por Bezerra da Silva)

‘Tu é o Escadinha, rapaz! Vai morrer duro?’. Era assim que os traficantes tentavam convencer Escadinha a retornar para a vida do crime. Em regime semi-aberto, o agora ex-traficante trabalhava como um cidadão comum. Até vítima de assalto foi, em 2003. Perguntou para os bandidos se eles iam assaltar mesmo o Escadinha. Pediram desculpa e foram embora.

Ele mantinha uma creche no pé do Morro do Juramento, a creche ‘Príncipe da Paz’. Adorado pelas crianças, ele era cada vez mais o ‘Tio Zequinha’ e menos o ‘Escadinha’. Convite até existia, dos criminosos mais antigos. ‘Para lá eu não volto nunca mais’, repetia ele, como um mantra, apesar de ter que dormir todos os dias na prisão. Trabalhando durante o dia como coordenador de uma cooperativa de táxi, próximo ao Carioca Shopping, zona norte do Rio, Escadinha queria mais é viver. Não deu.

Como todos os dias, Escadinha saiu do presídio Plácido Sá Carvalho, em Bangu, rumo a Vicente de Carvalho, onde ficava a Táxi Elite, sua cooperativa. Às 7h30 de 23 de setembro de 2004, na Avenida Brasil, na altura de Padre Miguel, seu Vectra Prata foi interceptado por um automóvel. Quatro tiros foram disparados, matando Escadinha e o seu carona, Luciano da Silva Vanderlei, também um ex-criminoso. Dos quatro disparos, dois atingiram o rosto de Escadinha.

Falou-se na época na possibilidade de vingança da sua antiga facção, o Comando Vermelho. Escadinha, criminoso do tempo que não existia facção, estava no final da vida ligado ao Terceiro Comando. A Elite Service, sua cooperativa de táxi, também esteve envolvida com o crime. Alguns de seus rádios transmissores foram parar nas mãos de traficantes do C.V., presos em Bangu III.

No enterro, flores, fogos, velas e música. Escadinha talvez seja o criminoso mais citado no cancioneiro popular brasileiro. Uma famosa música de Beto Sem Braço e Serginho Meriti, eternizada pelo também eterno Bezerra da Silva, versava sobre o carinho da comunidade do Juramento por Escadinha. ‘Meu Bom Juiz’ foi cantada por centenas de gargantas emocionadas, no momento do enterro. ‘Como É Grande O Meu Amor Por Você’, de Roberto Carlos, também foi cantada em coro pelas crianças de sua creche.

Escadinha brincava com seu próprio apelido. Gostava de assinar como José Carlos dos Reis Ensina, trocando C pelo S. Talvez tenha nos passado, de fato, alguma lição. Qual delas aprendemos?

José Carlos Gregório, o Gordo, antigo parceiro de Escadinha e fundador do Comando Vermelho, foi assassinado em agosto de 2001, em Niterói. Ele, antes de morrer, virou pastor evangélico e pretendia publicar um livro de poesias. Segundo a polícia, Gordo morreu por ainda manter relações com traficantes do Comando.

Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, fundador do A.D.A. ex-braço direito de Escadinha, morreu em setembro de 2002, durante uma rebelião no presídio de Bangu I. Considerado, na época, o traficante mais rico do Rio, Uê morreu carbonizado, a mando de traficantes do Comando Vermelho.

Orlando da Conceição, o Orlando Jogador, morreu em julho de 1994, em uma emboscada tramada por Uê, quando este ainda era Comando Vermelho. Uê teria descoberto um plano no qual o próprio Jogador o mataria. Orlando morreu no Complexo do Alemão, seu reduto.

Rogério Lemgruber, o Bagulhão, morreu na prisão em maio de 1992, vítima de complicações da diabetes.

Paulo Roberto de Moura, o Meio-Quilo, morreu em agosto de 1987, após uma tentativa de fuga do presídio Frei Caneca, no Centro do Rio. Um helicóptero pousou no pátio e resgatou Meio-Quilo, que chegou a subir, mas a polícia revidou e ele caiu de uma altura de cerca de 10 metros. Morreu dias depois, no hospital.

Todas as informações do texto foram retiradas de edições do Jornal do Brasil, além de matérias online do Estadão e da Folha de S. Paulo.

--

--

Três Opções
Três opções
0 Followers
Editor for

Três são as facções criminosas que comandam o narcotráfico carioca. Três são as opções para aqueles que atiram por elas: cadeira de rodas, prisão ou morte.