A cidade vista de cima

Luciana Freitas atravessa os espaços da cidade e se torna referência de autonomia para outras moradoras do Maciço do Morro da Cruz

Portal Tu Dix?!
tudix
6 min readMay 10, 2019

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Luciana Freitas observa Florianópolis de sua casa | Foto: Manoela Bonaldo

Por Beatriz Bento, Camila Cunha e Manoela Bonaldo

Quando ela libera o sorriso, e as pálpebras dos olhos se aproximam, duas covinhas sempre aparecem em seu rosto. Luciana Freitas tem a cara desenhada pela vida. Mas não com essas linhas e sinais de tempo, já que a pele é lisinha igual veludo. Sua história é contada por um desenho sutil, feito pelas expressões que surgem assim sem avisar. É quando aparece uma hesitação, um suspiro profundo ou um olhar que brilha e descansa sobre o canto da sala por tempo demais — e que em si, conta muito -é que ela mais se revela.

Nasceu no Rio Grande do Sul e aos cinco anos se mudou para Lages, onde viveu até 1993 — ano em que veio para Florianópolis. Sua mãe sustentava a família fazendo faxinas. Já o pai pouco ajudava nas despesas da casa, era violento e batia muito na esposa. “Eu sempre dizia: mãe, vamos embora daqui, você não precisa passar por isso!" E ela respondia: "Quem é que vai alimentar vocês?”, conta.

“Ela não era uma mulher que trabalhava de carteira assinada, era uma mulher que fazia faxina. A grande parte das nossas mulheres são assim, elas fazem faxina, elas não têm um emprego onde elas consigam de fato suprir as necessidades dos filhos e acabam se amarrando a esses homens… E também se amarram, é claro por um amor que elas acreditam que exista”, diz.

Na favela existe uma dependência forte em relação aos homens. Sabemos que a mulher, em geral, não tem sua autonomia incentivada socialmente. “Mas são coisas mais subjetivas na relação de uma mulher negra com um homem negro, ou uma mulher periférica que vai além da autonomia”, diz. “Não é essa autonomia que ela quer de sair e poder chegar a hora que ela quiser, mas sim ligada à economia, de como ela vai se sustentar ao longo de sua vida. Porque ela não foi criada para ter uma expectativa de vida”.

“Nós somos mulheres, mas as nossas histórias não são iguais e ao longo do tempo a gente vem de um ciclo de violência, as mães, depois as filhas. Muito diferente de uma mulher branca que já tem uma perspectiva de lugar de violência muito mais passageira”, afirma. “Trago o exemplo da minha mãe, o tempo todo ela aguentava os ataques do meu pai em troca de um conforto para nós. E ainda assim ela morreu acreditando que amava aquele homem, mesmo com todas as dificuldades que passou”, diz.

Hoje, Luciana tem 40 anos, é casada, mãe de dois filhos, formada em Ciências Sociais, coordena um curso pré-vestibular comunitário e mora no Maciço do Morro da Cruz. Sua casa fica bem no alto e através da varanda ela olha tranquila para o Centro com os carros passando pra cá e pra lá, os prédios amontoados e coloridos, a chuva caindo, o sol se pondo e as gentes tão pequeninas iguais a pontinhos em movimento. Mesmo tão perto, o barulho disso tudo chega manso lá em cima.

Subir ou descer o morro é difícil, cansa, e existe entre ela e a cidade uma distância que não é só física. “Costumo chamar de Faixa de Gaza. A avenida Mauro Ramos nos divide, só descemos o morro por necessidade, não vamos dar rolê de bobeira até porque temos aqui mulheres centenárias, algumas nem andam mais e também há cadeirantes. Como eles vão subir e descer toda essa escadaria?”, conta.

“São cidades diferentes aqui e o resto de Florianópolis”.

Quando era mais nova Luciana se sentia mais parte da cidade: frequentava o Mercado Público, a Copa Lord, a Travessa Ratclif. Hoje esses espaços são ocupados por outros tipos de pessoas muito por causa da gentrificação que atinge o Centro e que deixa tudo muito "gourmet". Felipe, o filho mais velho de Luciana, ficou chateado quando viu que reformaram a praça Getúlio Vargas (localizada no centro) e percebeu que não havia mais o campinho de futebol. O local agora abriga um espaço para cachorros.

“Quando o Felipe vai ao shopping é um evento pois não há lugares para as crianças brincarem. Elas têm que inventar as coisas por aqui mesmo. Quando vão nas praças no centro percebem olhares maldosos das pessoas de lá, como se eles não fizessem parte daquele mundo, como se eles não devessem estar ali", conta. Eu só me dei conta dessas questões assim de ser uma mulher quando entrei na UFSC. Sou grata a educação, acredito que nós da periferia devemos estar dentro da universidade já que a gente traz outro olhar”, diz.

Ela nem imaginava tornar-se educadora. Começou aluna do projeto Integrar, pré-vestibular comunitário na região do Maciço do Morro da Cruz, e lá tornou-se monitora após ser aprovada na UFSC. Logo se envolveu com o Movimento Negro Unificado e em 2013 participou da criação do coletivo negro 4P. Hoje, dentro do Integrar, coordena o GESTUS — Gestão Estudantil.

“Um dia a gente tava conversando na sala de aula e uma aluna disse assim: 'Homem pra mim? A única coisa que eu quero do homem é que ele pregue uma porta porque às vezes eu não consigo pregar a porta, a fechadura, e eu necessito de faça esses trabalhos'… também disse que o filho dela, não faz, porque é vadio, porque é isso porque é aquilo. Há também grande parte delas que quer homem para só poder resolver suas questões e depois é cada um para o seu lado".

É uma dualidade: ao mesmo tempo em que querem estar com alguém, por serem tão autônomas, não suportam a vigilância. “São mulheres mais velhas, mas muito bem decididas, já estão calejadas desse mundo. Não querem homem para atrapalhar a vida delas, dizendo aonde elas têm que ir, o que elas têm que fazer”.

"A minha vizinha aqui do lado é mãe solteira de duas meninas, então mora só mulheres nessa casa…aí esses dias ela veio 'Oi Luciana, eu me inscrevi no Enem!', aí eu disse 'olha que massa e se não passar vamos tentar o pré vestibular!' ai ela 'não sei, calma, calma! Espera, uma coisa de cada vez!'”, conta.

A irmã de Luciana também voltou a estudar há pouco tempo. “Hoje ela tem uma discussão muito mais avançada, sabe…eu até disse 'Uau valeu a pena eu ser chamada de a chata do rolê!', conta. "Era sempre um 'lá vem ela com essas coisas… lá vem ela com essas coisas’", brinca.

"Aqui no maciço as mulheres são maioria: trabalham o dia todo e cuidam dos filhos e da casa".

Inclusive essa era a vida de Luciana até pouco tempo atrás, antes de entrar na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“Aqui está o porquê de a representatividade ser tão fundamental. Ao verem que é possível, ao enxergarem alguém semelhante indo além do que é naturalizado como limite as outras mulheres vão percebendo que elas também têm chance. Com o tempo a “chata” vai se tornando referência. Se ela falou pra mim foi porque na minha rua, eu e uma outra colega que desistiu da Odonto, a Raquel, somos as únicas referências de quem está numa universidade. Nós estamos muito à margem, somos uma minoria universitária mas ainda conseguimos fazer essa diferença”.

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