La Vie En Rose, nº 230

A mulher por trás do Madalena Bar e da revitalização da noite de Floripa

Portal Tu Dix?!
tudix
9 min readMay 24, 2019

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Por Maya Soares

Por trás dos neons da Victor Meirelles, entre a vivacidade comunitária que exala ao anoitecer, Rose Bär percorre o cômodo que anos antes não tinha forma, mas já um esboço. Com olhos dispersos e atentos, o olhar de Rose combina antônimos.

O cabelo transparece as mudanças que já passou. As madeixas são curtas. Com um corte em camadas, os fios tangem o começo do ombro. Nas pontas, a tintura rosa que antes cobria as raízes, deixa seus vestígios.

Um pequeno triângulo é tatuado na maçã do rosto, caindo do canto externo da linha d’água. No pescoço, uma mandala preenche a garganta de ponta a ponta. No seu lóbulo, o mesmo símbolo completa metade de um volta. O corpo, da cabeça aos pés, é marcado por significados.

Cargo: Poderosa chefona na empresa Madalena Bar.

A 243 km de distância da ilha de Florianópolis, a cidade de Taió foi o berço da família Bär — no registro incorreto de suas certidões, Baer. Mas foi no município vizinho, Mirim Doce, que Rose cresceu. Na cidade de aproximadamente 2.800 habitantes, foi onde viveu 14 anos antes de chegar na Capital do Estado.

Na genealogia, divide raízes europeias. Por parte da mãe carrega a descendência italiana e o alemão, incontestável no sobrenome, se deve ao seu pai. Íris Stringari e Adolfo Bär criaram as filhas na maior produtora de arroz do Vale do Itajaí. Na época, sem energia elétrica na rua, com estrada de barro e vizinhos a 1 km de caminhada.

É 1994, Rose tem 15 anos e Gretin, 10. Os companheiros da adolescência, Legião Urbana no máximo volume e seus cadernos de poesia abertos na mesa no quarto, eram sua válvula de escape. Sem entender os gostos da primogênita, a irmã mais nova — que aceitava a função de implicância concedida aos irmãos — queixava-se para sua mãe: “ela só fica ouvindo música alta”.

Íris Stringari e Adolfo Bär por volta de 1977. Na foto, o pai de Rose segura uma “Piratinha”, bebida também conhecida como Cuba Libre — Foto: Arquivo pessoal

Adolfo era o motorista de ônibus da região, partia de sua casa em Mirim Doce às 6 horas da manhã com Taió como destino. Com três viagens por dia, voltava a dirigir o ônibus às 12:00 e às 17:30. A mãe, dona de casa, era rígida e exigente. Nervosa, mandava a limpeza ser feita do jeito certo, não aceitava menos que um comportamento "direito".

“Eu te amo” nunca foi uma frase presente na família. Para notá-la é preciso olhar com cautela o cotidiano familiar. Disfarçada em pequenos gestos, na cozinha se dava no preparo de seus pratos favoritos; na distância, pela presença quando viável.

Comida orgânica na mesa direto da plantação da mãe. Tudo o que consumiam, vinha da lá. Um rio que corria ao lado de casa, permitindo os banhos de cachoeira com Gretin no verão. Uma vida rodeada por natureza. Crescer em uma cidade pequena teve seus altos e baixos.

A infância foi marcada por brincadeiras de aventura. “Com ela não era brincar de casinha, era brincar de caça ao tesouro, era investigar. Desde cedo a Rose não combinava com o lugar”, lembra sua irmã. Na adolescência, os baixos foram maiores. A sensação de não pertencimento cresceu, junto a todos os problemas que a puberdade presenteia.

“Sentia mesmo que era diferente

Sentia que aquilo ali não era o seu lugar

Ele queria sair para ver o mar

E as coisas que ele via na televisão

Juntou dinheiro para poder viajar

De escolha própria escolheu a solidão“

Como João de Santo Cristo, na composição de Legião Urbana, Rose queria construir uma vida longe da cidade que conhecia. E assim, sem medo, Florianópolis aconteceu. Aos 19 anos, com apenas uma promessa de emprego e a companhia de um único amigo, ela deixou para trás Mirim Doce.

1998, Florianópolis.

Na rodoviária Rita Maria, Rose e Hélcio descobrem que não têm emprego e nem para onde ir. O deputado da região de Mirim Doce que os havia garantido trabalho na cidade não se encontrava. Com o contato da irmã de uma conhecida, Rose consegue um lugar pra ficarem. Assim, ao longo de duas semanas, passam seus dias procurando um trabalho.

Sem sucesso, pensam em desistir. Na sexta-feira, em uma última tentativa, recorrem ao gabinete de um político, onde a assessoria consegue empregá-los em um restaurante. No mesmo dia, voltam para Mirim para dar as notícias ao familiares: é definitivo, vão tentar a vida em Florianópolis.

Seu pai dirige o Corcel II e sua mãe está sentada no banco de carona. Na parte de trás, Gretin e Rose ocupam o assento lado a lado. Na descida para o sítio, o silêncio absoluto toma conta do carro. A família passa pela ponte do rio para deixar Rose na casa de Hélcio. Os dois pegam o ônibus pela manhã.

A arquitetura do Madalena foi inspirada em referências cinematográficas como os neons de Twin Peaks, o episódio San Junipero de Black Mirror, os filmes “A Liberdade é Azul” e “Paris, Texas” — Foto: Reprodução/ Facebook

2019, Florianópolis.

Cada detalhe na construção do Madalena conta uma parte de Rose. O lugar, uma história cheia de entrelinhas.

Ao entrar no bar, um banco longo percorre a parede com frames de Jane, personagem do filme “Paris, Texas” (1984), em seu encosto. Os neons característicos de Twin Peaks aparecem no balcão do bar, e também na parede nas cores da bandeira de orgulho trans: azul, rosa e branco. Sua relação com o cinema serviu de inspiração para a arquitetura do que viria a ser sua segunda casa.

A cinematografia vai além do conceito nas paredes do Madá, uma curadoria de filmes é reproduzida na televisão do térreo. Mamma Mia, Mother! e A Liberdade é Azul são algumas das obras que rodam enquanto o bar aquece a noite.

No som, os ritmos se misturam como facilidade. Criolo rima em Subirusdoistiozin, até que dá lugar à Snap Out Of It de Arctic Monkeys. “Eu cresci, prazer Carol bandida, represento as mulheres, 100% feminista” ressoa nas vozes Karol Conká e MC Carol, trazendo o mais próximo do funk ao lugar.

O segundo andar é mais aberto, um espaço que se alterna entre pista de dança e lugar de conversa. Da varanda é possível ver a Rua Victor Meirelles pulsante e, mais para frente, a Hercílio Luz — a avenida que um dia lembrou uma cidade fantasma. Na fachada da casa, uma grade carrega o design do logo do Madalena em seus metais. Entre os círculos abstratos, é possível achar palavras de importância para Rose e sua sócia. Veredas — de Guimarães Rosa, Madonna, Bowie, Nina — Simone, cantora e ativista; Mãe; Lirious — sua amiga e confidente; irmã.

O bar no mezanino tem menos cadeiras nos fins de semana para uma circulação maior — Foto: Reprodução/ Facebook

Entre o vai e vem dos frequentadores, homens de saia e maxi brincos pedem um drinque no bar. No sofá, de barba cheia e bem feita, músculos à mostra e o olhar de quem procura algo, outros homens conversam entre si. Na rua, se vê camisas de time e juliets que aproveitam a noite junto à multidão.

Atrás do bar, no caixa e no som: mulheres. Um staff composto majoritariamente pelo sexo feminino. Dentro dos copos, drinks alternativos, como Sapatônica e Comigo Ninguém Pode, e também os clássicos, Caipirinha e Moscow Mule.

Meio bar, meio rua, meio lugar para dançar.

1998. Com apenas R$ 160 no bolso emprestados pela vizinha, Rose Bär se muda para Florianópolis.

Os primeiros anos na Capital foram difíceis. Passando de um muquifo para outro, vivendo em quitinetes mal cuidadas, Rose e Hélcio começaram como auxiliares de cozinha num restaurante. Depois de duas semanas no teste de experiência que o estabelecimento exigia, não foram aprovados e seguiram como freelancers no local, trabalhando nos fins de semana e feriados.

Um ano se passou dentro de um trabalho exploratório. Rose foi bartender, babá, já trabalhou na cozinha do Aeroporto Hercílio Luz e em uma empresa de lista telefônica. Em cada serviço que prestasse, pedia demissão após passar no máximo um ano. Uma consequência de se trabalhar não por entusiasmo, mas para sobreviver, segundo ela.

Aos 29 anos, depois de conseguir se estabilizar melhor, decidiu entrar na faculdade. Filosofia (Licenciatura). 2008. Universidade Federal de Santa Catarina. Foi por meio do curso que conseguiu seu primeiro trabalho na noite da cidade. Por conhecer o gerente, um colega fez a ponte entre Rose e um bar chamado Blues Velvet.

Faltando um ano para se formar, deixou a faculdade para se dedicar ao emprego. De caixa, recolhendo copos e limpando mesas, conquistou a gerência.

Rose Bär trabalhando no Blues Velvet em 2011 — Foto: Reprodução/ Facebook

2014. Rose namora Lailah. Depois de quatro anos no Blues, Rose se muda e segue a namorada para São Paulo. Enquanto a festa em Floripa tem toque de recolher, a capital paulista emenda as noites com os dias. E como gerente do bar Puxadinho da Praça, localizado na Vila Madalena, Rose enfrenta horários de trabalho que acabam com o nascer do sol.

Logo que voltou à ilha em 2015, a danceteria Treze a convidou para tomar conta da casa. Sua experiência no Sudeste havia acabado junto ao seu namoro. Com incentivo do local e mais autonomia, começou a instaurar um novo cenário nas festas. A noite era masculina, os DJ’s homens e as festas avançavam praticamente iguais de quinta a sábado. Era o momento de se posicionar.

Aos poucos a conjuntura se transformou. Dentro das baladas, as festas se tornaram diversificadas, para gostos múltiplos e direcionadas à um público-alvo. “A minha intenção era: esse eventos são direcionados ao público X, esse lugar é direcionado para X e Y — se você não gosta disso, não venha”.

“O que achasse do bar, pai?”

“Hm, pequeno”

Em 11 de outubro de 2018, o Madalena abre as portas para Florianópolis.

“Será que alguém vai aparecer?”, pergunta Rose aos amigos e familiares.

No começo de 2018, Rose juntou suas economias e recorreu a sua irmã com uma proposta: ser sócia do bar que iria abrir. Gretin não tinha o dinheiro e nem a coragem para isso. Mas Anna tinha. Do lado administrativo, Rose, do financeiro, sua namorada.

“E ela perguntava isso pra gente e nós falávamos ‘claro que sim!’, mas a verdade é que nenhum de nós sabia também”, conta Gretin.

Depois de quatro meses de reforma, a inauguração do empreendimento de Rose, com sua sócia e namorada Anna O’Sfair, aconteceu sem evento no Facebook, com as redes sociais feitas um dia antes e uma divulgação à base de telefone sem fio.

No meio dos jovens espremidos, Íris e Adolfo se destacavam entre os frequentadores. De Taió, seus pais vieram prestigiar a abertura. Sóbrio há 8 anos, seu pai vem mudando a proximidade, que antes se restringia somente às irmãs, para toda a família. Hoje, três vezes por ano visitam a ilha, porém, sem estadias muito longas — para quem sempre morou no interior, a movimentação da Capital incomoda. “Tem muito carro, muito barulho”.

Sete meses atrás, Rose fez pela primeira vez a Victor Meirelles um mar de gente. A casa lotou, a rua também.

“Eu nunca tive bens materiais. Eu nunca tive um carro, uma casa, porque eu sabia que eu queria algo maior. E isso é o Madalena. E hoje é uma realização profissional muito grande, de ‘nossa, eu fiz algo grande na minha vida’ — algo que eu não tinha feito até então.”

Rose e Anna se conheceram em 2011 na noite de Floripa. As atuais sócias demoraram seis anos para ficarem juntas — Foto: Reprodução/ Facebook

O Madalena Bar funciona nas quartas e quintas-feiras, das 19h às 2h, e sexta e sábado, das 20h às 2h.

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