“O mundo não foi feito para eles”

Mesmo com a Lei de Cotas, o universo do mercado de trabalho segue apresentando barreiras para as pessoas com deficiência intelectual

Portal Tu Dix?!
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8 min readDec 14, 2019

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Pessoas com deficiência intelectual produzem capas de agendas vendidas pela COEPAD
Pessoas com deficiência intelectual produzem capas de agendas vendidas pela Cooperativa Social de Pais, Amigos e Portadores de deficiência (COEPAD) | Fotos: Marcos Jordão

Por Vinicius Dias, Thaisy Regina e Marcos Jordão

Uma guia para pessoas com deficiência visual, com um poste no meio. Uma escada, sem rampas. Delegacias que atendem a mulher, mas não a com deficiência auditiva, sem profissionais fluentes em libras para atendê-la. Um mundo feito para corpos chamados de normativos, ou seja, aqueles considerados “normais”, sem deficiência.

Esta normatividade faz com que surja mais uma hierarquia, dessa vez a dos próprios corpos, separando-os em corpos com e sem deficiência. Nesse sentido, as barreiras são impostas com relação a quanto um corpo seria funcional, prático e útil. Quando este corpo não é considerado capaz, as condições de acesso a muitos espaços são limitadas, e por vezes, escassas.

No Brasil, a Lei Federal 8213/91 conhecida como Lei de Cotas, surge como uma tentativa de inserir e dar acesso a essas pessoas através do mercado de trabalho.

De acordo com o Censo 2010, o país possui 46 milhões de brasileiros, cerca de 24% da população, com algum grau de dificuldade em pelo menos uma das habilidades: enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus, ou possuir deficiência mental /intelectual. Dentre os tipos de deficiências declaradas pelo Censo, a deficiência visual estava presente em 18,8% da população, motora (7%), auditiva (5,1%) e mental ou intelectual (1,4%).

No entanto, mesmo com a determinação legal, dados do Ministério do Trabalho de 2016 apontam que do quantitativo total de pessoas com deficiência registrado pelo Censo em idade ativa, 53,8% foram declarados fora do mercado de trabalho. Esse índices apontam que o número de indivíduos empregados ainda são baixos, o que demonstra que a Lei ainda é ineficiente em alguns aspectos.

Para a psicóloga e educadora especial Ariani Carilo (35), uma das dificuldades para a contratação de uma pessoa com deficiência é a exigência de alguma qualificação, o que muitas dessas pessoas não possuem. “Não existe um órgão ou uma instituição que vá capacitá-los para entrar no mercado de trabalho”, pontua.

A falta de qualificação pode ser relacionada com o nível de escolaridade das pessoas com deficiência. Ainda conforme o Censo 2010, dados apontam que 61,1% da população com deficiência não possui nenhum nível de instrução ou somente o nível fundamental.

Uma das causas apontadas para esse baixo nível de escolaridade seria a limitação no ensino dessas pessoas com deficiência. “São pessoas que passaram pelo processo de ensino e talvez nem tenham feito isso de forma qualitativa, talvez eles só tenham realmente passado e não obtido uma aprendizagem eficaz” pondera Carilo, que atualmente trabalha com terapia cognitivo comportamental na Infância e Adolescência.

A psicóloga aponta que, uma das formas de auxiliar nessa capacitação, seria a criação de cursos técnicos específicos para pessoas com deficiência. Mas ressalta que é preciso levar em consideração o nível de deficiência. “Existem níveis de deficiência intelectual, por exemplo, que a gente vai trabalhar apenas atividades de vida diária, que é autonomia, tomar banho, comer sozinho, mas dependendo do nível é totalmente possível”, ressalta.

Para a melhora do cenário há ainda, segundo ela, a necessidade de aprimorar os órgãos competentes para que eles consigam ter essa compreensão. “A estimulação precoce, o desenvolvimento, o trabalho multiprofissional é fundamental para que os deficientes de hoje consigam estar inseridos no mercado de trabalho futuramente” destaca.

“Ele não é doente, ele é deficiente”

Além das inúmeras barreiras já impostas, a Lei de Cotas também não diferencia o número de vagas para as determinadas deficiências. Segundo dados do Ministério do Trabalho, no acumulado do ano de 2017, foram ofertadas 351.181 vagas para pessoas com deficiência. Deste total, 54% aceitavam pessoas com mais de um tipo de deficiência, 38% para deficientes físicos, 6% para deficientes auditivos e 2% para deficientes visuais. O dado mais alarmante aponta que nenhuma vaga foi ofertada para pessoas com deficiência mental/intelectual.

Ariani pontua que existem alguns fatores que podem explicar essa barreira com relação a contratação de pessoas com deficiência mental/intelectual.

“A primeira delas é que, em geral, a opção das empresas é quase sempre por funções que não produzem tanto impacto em sua estrutura. No caso das pessoas com deficiência intelectual, dependendo do nível há a necessidade, por exemplo, de um monitor ou acompanhante. Esse fator impacta e faz diferença na hora da contratação, o investimento que é necessário para contratar pessoas com deficiência mental/intelectual acaba sendo maior”

“A gravidade se acentua por conta de que normalmente a deficiência intelectual está ligada a outros transtornos. Por exemplo, é comum se ver pessoas com síndrome de down com deficiência intelectual. Outros transtornos como ansiedade, TOC ( Transtorno Obsessivo Compulsivo) e depressão também podem ser ligados à deficiência intelectual”

“Outro fator é que, por exemplo, a deficiência intelectual é muito mais ampla que a deficiência física, o deficiente físico possui mais autonomia. Ele consegue elaborar, ler, não prejudica a compreensão dele. Por isso é tão difícil do deficiente intelectual se inserir no mercado de trabalho”

Outras barreiras

Mesmo quando já inseridas no mercado de trabalho, as pessoas com deficiência mental/intelectual seguem encontrando obstáculos. Quando contratados, as vagas se limitam a algumas funções, normalmente para trabalhar em estoque, faxina ou empacotar produtos em supermercado. Cargos em que não é necessário ser alfabetizado são os mais comuns.

“Atualmente, é perceptível notar que existe um mesmo perfil para a contratação, e que eles estão inseridos sempre nos mesmos espaços” aponta Vitor Pereira, pesquisador do Núcleo de Estudos Sobre Deficiência (NED), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Além dessas limitações físicas e estruturais, que a Lei de Cotas fixa muito, existe ainda as barreiras atitudinais. “Esse tipo de obstáculo é imposto quando ocorre a discriminação, quando não acredita-se no trabalho realizado pela pessoa com deficiência, a ponto de ser refeito”, explica o pesquisador. Sendo baseada nas atitudes, essa barreira “vem para o efeito de deslegitimação de si mesmo, de não se sentir parte de onde está”.

Outra forma de discriminação, conforme explica Pereira, são as raras oportunidades de ascensão desses indivíduos dentro de uma empresa. “Essas pessoas estão há 30 anos na mesma vaga de emprego e não conseguem subir de cargo”, pontua.

Para o pesquisador, muitas vezes essas barreiras são impostas intencionalmente, dificultando o acesso dessas pessoas. Isso quer dizer que, mesmo com as determinações legais, ainda não há a garantia de acessibilidade em sua plenitude, não alcançando assim, um de seus principais objetivos, “o processo de reinserção e ressocialização dessas pessoas”.

Esses obstáculos impostos causam o que Vitor considera como uma “falsa inclusão”, ou seja, a lei estaria sendo cumprida, mas isso não significaria que estaria funcionando da melhor forma.

Ouça o que seria uma falsa inclusão. Com a palavra, Vitor Pereira.

28 anos depois, é hora de omitir ou aprimorar?

Em 2019, a Lei de Cotas completou 28 anos de existência. O tema segue sendo debatido, deixando de lado a omissão que por anos existiu com relação às pessoas com deficiência.

“Quando você vai ler sobre inclusão você encontra que os deficientes estavam no mesmo contexto dos marginalizados, dos loucos, dos bêbados, eles eram todos colocados nos hospícios, eles estavam à margem da sociedade” conta Ariani, ao ressaltar a importância de aprimorar ainda mais essa conquista.

Mas, como explica Vitor, os direitos e garantias estão em constante tensão. Em novembro de 2019, por exemplo, o governo propôs medidas para mudar a legislação sobre contratação de pessoas com deficiência, a Lei de Cotas.

Caso a proposta passe a valer, pessoas com deficiência severa passariam a contar em dobro para o preenchimento das cotas. Para o governo, a tentativa serviria para facilitar a contratação por meio de alguns setores que têm tido problemas para cumprir a cota.

Em nenhum momento foi anunciado qual seria o critério para definir deficiência severa.

Faz sentido pensar nessa definição de deficiência severa? Ouça o que diz o pesquisador Vitor Pereira

Confira outras mudanças propostas pelo governo no projeto de lei:

  • Caso a empresa não cumpra a Lei de Cotas, terá que pagar um valor equivalente a dois salários mínimos;
  • Se uma empresa possuir mais pessoas com deficiência do que o necessário para cumprir a Lei, uma segunda poderá se associar para cumprir a sua cota a partir das vagas preenchidas pela primeira.

No último dia 3 de dezembro, o governo anunciou que vai tirar do caráter de urgência o projeto de lei, porém não descartou a votação no futuro.

Para a procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, em entrevista para o portal 247, o projeto representa um retrocesso: “Verifica-se, pois, que o projeto é absolutamente danoso aos direitos das pessoas com deficiência já conquistados ao longo de décadas. Ele destina a tais pessoas um tratamento indigno, pois deixa explícito que a sua presença no ambiente de trabalho é um peso que pode ser evitado pela empresa”.

Mesmo com tamanha resistência, é cada vez mais necessário o debate para se aprimorar essa conquista, não permitindo a perda de direitos que foram adquiridos através de muita resistência.

Nesse sentido, todos os corpos precisam ser entendidos como corpos, que reivindicam seus direitos e sua cidadania. O mundo não foi feito e nem pensado para eles, mas a mudança começa pelos pequenos espaços, aprimorando o direito ao acesso igualitário a todos os lugares.

As condições atuais são melhores, de fato, porém há ainda um longo caminho para chegar ao lugar ideal. E de direito.

Uma família de fibra

Em Florianópolis, há cerca de 20 anos atrás, surgia a Cooperativa Social de Pais, Amigos e Portadores de deficiência (COEPAD). O objetivo era, e continua sendo, claro: a inserção de deficientes intelectuais no mercado de trabalho. A COEPAD é uma cooperativa sem fins lucrativos e busca, por meio do trabalho, dar oportunidades para pessoas com deficiência intelectual, visando a capacitação e a interação entre os cooperados.

Confira no vídeo a família COEPAD

Registros do trabalho realizado pela COEPAD

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