A Luta Antimanicomial vai muito além dos limites do hospício

Ou “Como escapar desse grande manicômio que é o mundo?”

Matheus Galvão
Pela Metade
3 min readMay 20, 2022

--

Stella Patrocínio, mulher negra internada por 30 anos em um hospício no Rio.

Na canção Que Loucura, Sérgio Sampaio conta a história de uma pessoa internada na cabine 103 de um hospício onde havia, além dele, mais 10 pessoas.

Hoje, no Dia da Luta Antimanicomial, essa música me veio à mente junto com uma pergunta: como fugir desse grande manicômio que é o mundo?

Em O Mal-estar da Civilização Freud fala o seguinte:

A sublimação do instinto é um traço bastante saliente da evolução cultural, ela torna possível que atividades psíquicas mais elevadas, científicas, artísticas, ideológicas, tenham papel tão significativo na vida civilizada. Cedendo à primeira impressão, seríamos tentados a dizer que a sublimação é o destino imposto ao instinto pela civilização.

Pra suportar as angústias que a civilização nos impõe ao suprimir nossos instintos, diz ele, escaparíamos pelos caminhos da criação intelectual e artística.

De fato, é engraçado como loucura e angústia são temas recorrentes na arte. Não são temas tão palatáveis ao gosto da cultura dominante (ou melhor, do mercado cultural), mas são instigantes e necessários também ao seu projeto.

Se hoje é hype falar sobre a sua condição mental e contar vantagem sobre os medicamentos que toma, no passado isso não era algo bem recebido.

Mesmo assim o tema era recorrente nas canções dos chamados Malditos da MPB. Eles formaram uma turma marginalizada pois suas músicas abordavam temas não fáceis de digerir, tabus. Sérgio Sampaio foi um desses exemplos e Que Loucura uma dessas canções.

Afinal de contas, Luiz Melodia quando cantava “…estou pra estourar, eu choro tanto, escondo e não digo, viro farrapo, tento o suicídio com caco de telha, com caco de vidro”… não narrava exatamente uma daquelas crises tão familiares de hoje?

Em Mal Secreto, Jards Macalé diz: … “se você me perguntar ‘como vai’, respondo sempre igual tudo legal, mas quando você vai embora, morro nervoso no espelho, a minha alma chora”. Olhe bem se não é um retrato de um dia qualquer, quando omitimos episódios angustiantes e depressivos para as pessoas, o que casa bem com esses versos de Belchior:

“A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”.

A sensação é que não há como escapar desse grande manicômio ao qual estamos aprisionados.

É preciso alertar que a própria sublimação é um modo de amansar os corpos, evitando a rebeldia que destoa do modus operandi convencional. São modos menos invasivos mas usados com maestria por quem precisa de corpos dóceis para um projeto muito específico de alienação e apatia.

Se naquele tempo os Malditos sublimavam suas angústias em canções, hoje há saídas químicas para seguir a vida e a rotina que nos oprime.

Em Dia de Luta Antimanicomial é preciso prestar atenção ao modelo mais perverso de aprisionamento dos corpos, o aprisionamento “voluntário” por meio do uso banalizado (quase estratégico) de medicamentos e da aceitação da happycracia empurrada a todo custo como solução para o sofrimento, e que nos conduz à Sociedade do Cansaço tão bem traduzida pelo filósofo Byung-Chul Han.

Mas fica a pergunta: E se o que chamamos de loucura for a lucidez que precisamos para despertarmos da inação e partirmos rumo à autorrealização e liberdade plenas?

--

--