Como não se enganar com uma notícia sensacionalista?

Bônus: o que fazer para não se tornar uma pessoa negacionista às avessas.

Matheus Galvão
Pela Metade
5 min readDec 8, 2020

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Foto por Charles Deluvio no Unsplash

Acabo de ver uma postagem em uma rede social que realmente mexeu comigo. Ela continha apenas uma foto de pessoas indianas com cara de sofrimento e uma headline que deixou meus cabelos em pé:

"Doença misteriosa que deixou centenas de hospitalizados no sul da Índia".

A minha primeira reação foi clicar na postagem e ir até a página do jornal que compartilhou a notícia para entender o que havia acontecido. Só passava pela minha cabeça que estávamos perdidos de vez. Realmente, o fim dos tempos. Covid-19 e agora mais essa?

A "matéria" não dava muita informação. Falava de uma hospitalização em massa de indianos e tinha uma redação vaga.

Decidi pesquisar no Google, e encontrei uma outra mais completa com a seguinte headline:

‘Doença misteriosa’ na Índia pode ter sido causada por chumbo e níquel

A reportagem já inicia com a informação de que um estudo preliminar indica que a doença que levou cerca de 500 pessoas com sintomas semelhantes à epilepsia para o hospital pode ter sido causada por contaminação de água e leite por metais pesados.

Ah, e mais de 380 pessoas já se recuperaram. Um outro detalhe.

Muito melhor, não?

A notícia não é fake, mas é "bait"

Vivemos numa batalha ferrenha contra as "notícias falsas". Hoje em dia todo mundo tem uma notícia falsa para chamar de sua. De qualquer lado.

Perdemos, aparentemente, o senso de investigação e isso leva a um outro desastre que parece incomodar menos mas é tão perigoso quanto; são as "bait news". Bait é a tradução da palavra isca para o inglês.

Essas notícias usam hipérbole ou omissões em suas headlines para atrair a atenção e gerar engajamento por estarem vinculadas a emoções fortes.

Esse tipo de notícia dá abertura para ideologias distintas criarem as suas próprias narrativas mirabolantes e escatológicas. Elas servem como fundamento para todo tipo de bandeira e isso é muito perigoso, embora possa não parecer.

Poucas pessoas vão compartilhar a notícia que deu as informações mais atuais e completas sobre o caso indiano. Isso porque elas não mexem com a emoção. Se ninguém buscar a informação integral, os nervos estarão à flor da pele em pouco tempo. E as redes sociais vão adorar isso. Já explicamos por quê.

Nem tudo é o que parece ser: investigue

É muito fácil criar uma teoria da conspiração hoje em dia. Aliás, é também, muito fácil taxar uma coisa de pseudociência ou conspiração simplesmente por não estar de acordo com o status quo.

(Eu mesmo faço isso com mais frequência do que desejo, e vou te explicar, mais adiante, por que isso também pode ter um efeito ruim.)

Mas aqui vai uma dica, respire, resista ao impulso de compartilhar ou fazer um meme de sucesso, e investigue o que está acontecendo. Já temos problemas demais e as pessoas estão realmente ficando mais ansiosas.

Você gostaria de ser a pessoa responsável por levar alguém a uma crise de ansiedade? Eu acho que não.

Essa história da Índia me fez lembrar um caso contado pelo médico Hans Roslin, autor de Factfulness — um livro que aconselho a todos lerem — quando ele foi convidado a ir a Cuba, depois que uma epidemia também "misteriosa" deixou 40 mil trabalhadores com paralisia corporal e daltonismo.

Era a década de 1990. Havia todo tipo de hipóteses para a causa, como "foi a comida do mercado negro" ou "um germe que afetava o metabolismo".

A grande realidade era que, depois do fim da União Soviética, encerraram-se as visitas de navios cheios de alimento nos portos cubanos. Os adultos começaram a comer pior, pois deixavam as comidas mais nutritivas para idosos, gestantes e crianças. Era essa a causa de tudo e, a partir daí, uma solução foi tomada.

Investigar e descobrir os fatos é o melhor a se fazer para evitar o caos, a paranoia e, o mais importante, encontrar uma solução.

Uma paranoia generalizada

Jaron Lanier escreveu um livro inteirinho sobre por que deletar nossas redes sociais. Entre os argumentos que ele dá, dois deles tem a ver com o que eu acbei de falar.

O primeiro é que as redes sociais minam a verdade. Isso todo mundo sabe. Mas existe uma razão para isso.

Como Lanier diz:

"Incentivos econômicos tendem a prevalecer sobre regras políticas e boas intenções".

E as redes sociais nada mais são do que mecanismos de manipulação para que agradar o verdadeiro cliente delas: os anunciantes. Nós somos os produtos. Enquanto nos degladiamos e nos "engajamos" com esses assuntos estamos fornecendo informações sobre nossas reações, impulsos, desejos… tudo que eles possam usar para "otimizar" a publicidade e nos levar a tomar uma decisão: de preferência de compra.

Os sites de notícia também têm seus anunciantes e querem atenção. Eles sabem como funcionam as redes sociais e se aproveitam disso.

Um segundo argumento é o de que as redes sociais nos deixam infelizes.

E não é para menos. A cada rolagem de feed vemos uma desgraça anunciada entre gatinhos e memes engraçadinhos. Há uma variação enorme de humor. Quase como se estivéssemos usando uma máquina de criar pessoas bipolares e ansiosas.

Isso é realmente estressante.

Cuidado com o negacionismo às avessas

Todo esse clima de desconfiança, ansiedade e mentira pode nos levar a ficar cada vez menos crentes. E ninguém quer pessoas que negam tudo o tempo todo. Tudo tem um limite.

Eu sei que pode parecer absurdo, mas ultimamente eu tenho repensado a forma como eu recebo e/ou rebato argumentos que podem parecer estúpidos de início.

Nos acostumamos a ridicularizar os negacionstas em geral — anti-vacina, terraplanistas, essas são teses que soam absurdas considerando os avanços que tivemos até aqui.

O problema é que isso está gerando uma reação extrema e automática a várias narrativas que surgem como alternativas e que normalmente vêm de pessoas que pensam diferente. Estamos negando um "potencial negacionismo".

Isso pode ser perigoso.

Paul Feyerebend, filósofo da ciência, foi um ferrenho defensor da anarquia na ciência. Para ele, a anarquia era muito mais útil ao progresso do que um sistema de lei e ordem. Ele achava isso da perspectiva científica apenas, não da política.

"O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale"

O que ele quer dizer com isso? Que devemos acreditar nos terraplanistas?

Não.

Mas que precisamos considerar suas hipóteses e demonstrações para poder corrigir imperfeições de outras teorias.

É possível que um dos fatos apresentados por terraplanistas, por exemplo, esteja realmente em dissonância com uma teoria já corroborada. Nesse caso, cabe a pergunta: por quê? Isso leva a melhorias e progresso, segundo Feyerabend.

Além disso, essas pessoas, mesmo as que não são, de fato, cientistas, demonstram uma curiosidade científica, o que é importante e até gratificante. Se elas forem incentivadas talvez até cheguem a ver a luz pelos próprios olhos, sem muita reatividade.

Eu não vou me prolongar mais aqui. Eu só queria alertar o seguinte:

  1. Desconfie, nada é tão simples ou tão absurdo quanto faz parecer.
  2. Pesquise, investigue. Tenha curiosidade o suficiente para perguntar o porquê e ir atrás da informação mais assertiva.
  3. Cuidado com as emoções. Somos seres passionais, adoramos ganhar atenção ou fazer as pessoas reagirem. Resista a esse impulso.
  4. Respire. Pode parecer que as coisas estão piorando, mas isso não é uma verdade, muita coisa melhorou. Oque acontece é que só o desastre e o medo chamam a atenção e, como o mundo quer te vender algo, ele precisa chamar a sua atenção. E quanto mais emotivo e instável você estiver mais chances terá de comprar.

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