Dessincronia

O ponto minúsculo se divide em diversos pontos se espalhando pelo céu. Ele pode ver a fumaça se formando, caindo como cachos.

Matheus Galvão
Pela Metade
6 min readJun 16, 2020

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“Quando um homem se senta ao lado de uma mulher bonita por uma hora parece que passou um minuto. Mas se ele se sentar em cima de um fogão quente por um minuto parece que passou mais de uma hora”.

Albert Einstein

“Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”.

Oscar Wilde

Enquanto uma formiga atravessa a rua, quanta coisa pode acontecer? Um carro, um pé ou até um brinquedo podem fazer um estrago. Pobre animal.

Foi isso o que passou pela cabeça de Dário instantes depois de acordar naquela manhã de terça-feira, enquanto observava uma fila de formigas se formando a partir de uns restos de pizza que ele deixara na mesinha do quarto há… um… dois dias?

O despertador tocara mais de seis vezes. Mesmo acordado, ainda resistia. Era tudo calculado. Programar o alarme para uma hora mais cedo do que deveria acordar e resistir o máximo que pudesse. Até não ter mais jeito. Um fedor azedo preenchia o ar do quarto, um misto de mostarda e gordura.

Dário levanta e boceja, enquanto caminha para o banheiro. A vontade de fazer xixi não combina com um pênis ereto, então ele empurra a porta do box e faz xixi ali mesmo, a urina escorrendo pelo ralo, uma cor amarela escura. Abre o chuveiro e a água gelada bate no seu corpo, contrastando com a quentura do xixi nos pés. Enquanto se molha, vê através do box de vidro uma pilha de roupas sujas.

Abrir a geladeira por impulso é um hábito comum. Instinto? Não se sabe bem. Pois Dário é um ser humano que faz esse tipo de coisa. Com o cabelo molhado e o corpo regado com perfume barato, abre a porta da geladeira e vê que não há nada, apenas o frio convencional e uma garrafa de água vazia. Humilhação autoinflingida. Algo a ser estudado, se não já é.

Decide fazer compras quando sair do trabalho, algo que já havia decidido fazer no dia anterior. Mas hoje ele adiciona que, talvez, lave roupa ao chegar em casa — contudo fazer compras é prioridade.

Mas um ser humano ordinário como Dário merece algo extraordinário de vez em quando. Algo que, pelo menos, faça-o se sentir especial e único. Algo que o leve refletir sobre a vida ou sobre sua sanidade.

Por isso aquele brilho raro de sol entrando pela sua janela chama a sua atenção, levando-o a se dirigir até ela.

Há um momento de paz. Ele respira e solta o ar devagar. O céu está completamente azul e, nele, um rastro de jato se forma. Por cincos segundos ele acompanha aquele avião gigante e, ao mesmo tempo, minúsculo do seu ponto de vista; como uma formiga, minúsculo no imenso céu, pensa. Observá-lo equivale a uma meditação e Dário pode jurar que o tempo não é o mesmo naquele exato instante. Há algo de especial, quer acreditar.

Talvez especial não fosse bem a palavra, e sim inusitado.

Uma brisa entra pela sala e, então, a cena se transforma. O ponto minúsculo se divide em diversos pontos se espalhando pelo céu. Ele pode ver a fumaça se formando, caindo como cachos. Seu primeiro instinto é gritar de desespero, olhando, apontando para o que vê. As pessoas na rua olham para a janela, olham para ele, mas ninguém parece notar ou se importar com o que acontece.

Quantas pessoas estão naquele voo? Duzentas? Cem? Com fé em Deus seria um voo cargueiro e só uma tripulação escassa perderia sua vida.

Seu coração acelera. O pensamento entra em fuso. Pergunta-se aonde os destroços cairiam, se uma chuva de corpos estaria prestes a acontecer. E então olha novamente para a rua e vê as pessoas andando normalmente. A vida segue.

Manhã estranha.

Enquanto caminha para o trabalho, que fica a cerca de um quilômetro e duzentos metros de sua casa, Dário reflete sobre a cena que presenciara e sobre a apatia de todos. Perguntara ao dono da venda, a senhora Valdete, ao menino que ia pra escola… Nem um deles sequer vira a mesma cena.

Lembra-se de uma vez em que contou a sua mãe ter visto um sapo engolir uma cobra, e ela ter dito que aquilo era coisa da cabeça dele, que meninos loucos acabavam em um hospício comendo farinha e café o dia todo.

Não acreditava ter enlouquecido. Talvez o avião voasse mais distante do que parecia, há sempre uma distorção ótica quando vemos o céu, há sempre uma explicação física, como aquelas que passam na TV. Não há?

Confiou que, chegando ao trabalho, o senhor Ernesto estaria vendo o noticiário e tomando café, como fazia todas as manhãs. Ele não deixava os empregados verem TV, mas estes davam um jeito porque havia uma fresta entre o cubículo do caixa e o escritório do patrão.

Lá, na TV, estaria o anúncio da tragédia. Uma jornalista com ar pesaroso anunciando a morte de cento e poucas vidas. Durante algumas semanas teríamos a história da vida de algumas pessoas notáveis que estavam no voo, algumas que milagrosamente não embarcaram…

A expectativa não se tornou realidade. Não houve sinal de alarde. Não houve notícia. Ao entrar no pequeno escritório da loja, o que o senhor Ernesto assiste é uma apresentadora falando dos benefícios do limão e conversando com um fantoche bizarro. Ele muda para outro canal, e o noticiário explica como dois bandidos ficaram presos dentro da casa que assaltariam. Banalidades. E só.

Tudo aquilo que vira era coisa de sua cabeça? Comeria farinha e café para o resto da vida?

Passou o dia aéreo, o senhor Ernesto pegando no seu pé porque o estoque de pregos estava uma bagunça e um rato poderia sair da seção de portas e janelas de tão suja. O que estava acontecendo?

No almoço, chegou a perguntar a colegas se eles não notaram nada de estranho naquele dia. O Kléber falou que sim, que uma mulher chegou na loja para comprar alho, vejam só, numa loja de material de construção!

Dário riu sem vontade, apenas para acompanhar os risos dos demais.

No meio da tarde decidiu relaxar um pouco, tirar tudo aquilo da cabeça. Sentou-se para montar sua lista de compras. Molho de tomate, creme de leite, frango, macarrão, leite, desinfetante, sabão em pó…

Sim, sabão em pó, definitivamente lavaria roupas aquela noite. Pelos seus cálculos, teria apenas mais uma muda de roupa dia. Da última vez em que reusou uma roupa suja no trabalho, passou o dia ouvindo piadas dos colegas.

“Cheiro de vinagrete, cheiro de maluco”…

O bloco de papel em que anotava os itens, entretanto, o remeteu à cena que vira pela manhã, pois alguém desenhara, no cantinho de cada uma das páginas, um avião se movendo. Dava para ver um avião decolando quando folheava rápido.

Seria um sinal de que ele deveria investigar a fundo o que acontecera pela manhã? Um chamado divino, uma visão premonitória.

Quando o relógio marcou cinco da tarde, quase o fim do expediente, Dário recordou-se de algo que o chamou a atenção. Olhando de sua janela aquela manhã, lembrara-se de ver o sol entrar por ela, algo que nunca acontecia. Seu apartamento era poente, como explicar aquilo?

Novamente, sua cabeça entra em fuso. Corre para a frente da loja com uma garrafa de água em uma mão e a listinha de compras na outra. Precisa de ar, precisa pensar. Algumas pessoas andam segurando sacolas, rindo, contando como foi o dia de trabalho e o que planejam para amanhã. Dário toma um gole da água, depois outro e mais outro.

Uma senhora passa pela sua frente, pergunta que horas são e agradece após a resposta. São cinco e dezoito. Antes que Dário pense em voltar para preparar o fechamento da loja e ir embora, um barulho grave e metálico toma o ar. Algumas pessoas correm e gritam.

Dário olha para o céu e vê a cena se repetindo. Aqules mesmos cachos de fumaça descendo ceu abaixo.

Todos parecem vê-la. Desta vez ele revê, mas não apenas isso, ele fica imóvel, prestes a sentir o peso de uma turbina sobre ele. Talvez agora ele possa experimentar o mesmo que uma formiga esmagada por um pé humano. Pobre animal.

As compras ficarão para uma outra ocasião.

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