Dia seis

Talita Sobral
Pela Metade
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3 min readFeb 7, 2022

O que significa ser uma incógnita?

Na nossa primeira grande conversa, você disse que não tinha entendido ainda quem eu era. Que eu era um conjunto de coisas mais óbvias — a personalidade imperativa, a beleza, a estética — mas também um conjunto de outras coisas mais sutis — a inteligência, o gosto pela solidão e por assuntos que talvez a maior parte das pessoas não se interessasse — e que mesmo sabendo desses dois “pedaços”, ainda não conseguia entender o quadro inteiro. Não conseguia me decifrar.

Ontem, falando sobre outras pessoas e suas respectivas personas, ouvi novamente algo parecido. Que eu não era necessariamente somente a pessoa blasé ou puramente inteligente; que o que eu emanava era o mistério. Quem ela é? Eu consigo entender? Algum dia eu vou conseguir decifrar?. Nessa mesma conversa, chegamos a conclusão de que talvez por isso eu atraísse tantos curiosos, especialmente os que achavam que tinham o que é necessário pra chegar nas profundezas e que normalmente acabam vendo suas próprias inseguranças e imperfeições refletidas. Aqueles que quando voltam, voltam um tantinho partidos, um tantinho confusos e definitivamente machucados.

De certa forma, é quase lisonjeiro me ver dessa forma, uma grande interrogação, um mapa a ser decifrado, um bravo mundo novo a ser descoberto. Tem um ar de suspense, quase aterrorizante, ser vista como uma grande esfinge, um mito, uma musa.

Ao mesmo tempo, nada disso é feito de propósito. As vezes nem eu mesma tenho coragem de ir tão fundo, porque é tudo muito silencioso, muito estranho, muito inexplorado. Ultimamente tenho feito pequenas incursões nessa persona, tentando entender se ela e eu somos de fato a mesma pessoa; se ela não é apenas uma carapuça pra esconder uma pessoa frágil e que tem muito medo de se expor. Muito medo de ser rejeitada pelo que é, muito medo de ser abandonada pelo que não pode oferecer. No início, tudo é fácil, o desconhecido ajuda a criar uma tensão. Mas, a medida que vão ficando e conhecendo, o desconhecido se torna assustador, não se sabe o que esperar, é uma oferta de segurança perpetuamente insegura.

Um dado momento, eu ouvi algo que me assustou. Que alguém me conhecia mais do que eu mesma. Que esse alguém saberia todos os meus próximos passos e como eu me comportaria, independente da circunstância, porque me conhecia demais. Na hora, eu ri e falei “provavelmente sim”. Mas no fundo, bem no fundo, eu sabia que essa pessoa não me conhecia. Nem um pouco. Apesar de estar comigo todos os dias, nos melhores e nos piores momentos. Eu sabia porque existiam milhares de fragmentos meus que essa pessoa nunca chegou a ver, nunca chegou a imaginar que moravam dentro de mim. Fragmentos do que eu desejava, do que eu planejava e principalmente, do que eu colocava de lado pra ter uma convivência mais tranquila, mais pacífica, mais duradoura… não pra mim, mas pra ele.

Hoje, me peguei de novo pensando nisso: o que significa de fato ser uma incógnita? Será que a incógnita vai algum dia conseguir se entender? Se transformar numa vírgula, num ponto de exclamação… deixar de ser a perpétua interrogação pra si e pra os outros? Será que a incógnita consegue receber atenção e afetos verdadeiros, mesmo ocultando tanto de si? Mesmo não sendo verdadeiramente um corpo que se joga no mundo, que se expõe, que se coloca no holofote de propósito?

Talvez seja até egocêntrico se ver dessa forma, porque todo ser humano é uma incógnita. Todo ser humano está se descobrindo e mudando e se moldando aqui e ali. Mas quando você caminha por tanto tempo sendo o mistério, o mistério olha de volta e faz perguntas: você existe de fato? Você é?

No fim das contas, uma parte de mim — a criança sedenta por atenção — quer que você desvende; que você descubra; que você entenda e acolha. Que eu deixe de ser uma interrogação, que eu seja um céu claro, um texto óbvio, uma leitura simples. Mas essa mesma criança teme que no momento que for óbvia demais, todo o charme tenha ido embora e ela seja deixada de lado mais uma vez. E no fim das contas, a adulta não quer ser desvendada. Ela não quer ser vista, não totalmente, porque as camadas mais profundas, as nuances, trazem finalmente o conforto que ela tanto busca.

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Talita Sobral
Pela Metade

31. Gatos, leitura fragmentada e muitas horas de sono.