Evite votar contra seu próprio interesse

Por que tivemos tanta dificuldade em passar essa mensagem?

Felipe Bittencourt
Pela Metade
6 min readOct 14, 2018

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Tente não fazer isso.

Muitos são os motivos que nos trouxeram até esse momento. As fundações democráticas do estado brasileiro estão sob ataque novamente, e mais uma vez seu povo se alegra em vê-las ceder. Não tenho dúvida de que a avalanche conservadora que tomou de assalto o Congresso Nacional e as assembleias estaduais por todo o país é um fenômeno que será estudado pelos cientistas políticos por muitos anos.

Por baixo dos escombros daquilo que um dia fora o Brasil espero que esse texto seja um dia encontrado. A vocês, amigos historiadores, eu digo: tentamos.

E por “tentamos” eu quero dizer que, aos 47 do segundo tempo, fizemos algum esforço de tentar reverter essa maré. Mexemos pelo menos um palito que seja para respirar por um segundo antes de confortavelmente repousarmos em nosso discurso de denuncionismo infantil e reducionista, que é a marca registrada das camadas progressistas, e que falharam em passar propriamente sua mensagem adiante. É a vocês que dedico esse texto.

Pois vamos à dura realpolitik do nosso momento eleitoral: a sociedade brasileira é moral e socialmente conservadora, e a denúncia não afeta o voto de quem escolheu o candidato que alega representar essas forças na urna para expurgar da pelagem do Gigante Narcoléptico as pulgas da corrupção depravada.

A dificuldade de estabelecer uma ponte eficiente do discurso progressista com o povo precisa ser reconhecida. E por povo, me refiro ao cidadão brasileiro médio, ao sujeito comum, que quer ver sua vida melhorar, assim como a da comunidade a sua volta. Tão logo os progressistas admitirem sua parcela de culpa nessa falta de diálogo, melhor.

E haverá tempo para lamentar a derrota, caso ela ocorra. No entanto, não é tempo para isso agora. Há trabalho a ser feito.

Com isso fora do caminho, vamos ao questionamento: como dialogar com o eleitor de Bolsonaro? Como criar essas pontes com as pessoas de nossa comunidade que votam nesse candidato apesar de seu comportamento inaceitável e, muitas vezes, apesar dele?

É difícil, mas se há um momento para tentar, é agora. E vou começar dizendo duas coisas importantes. Primeiro: nós estamos fazendo esse mesmo exercício juntos; eu vou ter que fazer o esforço de me despir de alguns vícios que eu mesmo descrevo aqui, e não é fácil. Segundo: isso não é um tutorial e não há fórmula infalível.

Antes de tudo, e mais importante: desça do salto.

Ninguém gosta de um sabichão arrogante que usa palavras difíceis. Então saia de sua bolha e lembre-se: a maior parte da população não está no grupo plenamente capaz de compreender e se expressar na forma escrita. Guarde os termos da moda para o elitismo academicista do seu TCC. No Brasil de 2018 não se convence o sujeito comum usando termos como homofobia, xenofobia, misoginia ou fascismo. Não adianta tentar lacrar, deixe isso na bolha também. Seja simples, e pergunte. Com interesse legítimo.

Vamos tentar mostrar a essas pessoas que, em sua grande maioria, elas estão votando contra seus próprios interesses. E vamos torcer para que dê certo. Aqui vão alguns tópicos para iniciar:

Há responsabilidade da esquerda e da classe política sim. (“Não dá pra ter de volta o PT e aquela roubalheira!”)

As críticas ao PT precisam ser feitas e, a meu ver, o partido ainda deve muitas satisfações a esquerda (incluindo aí os outros partidos de esquerda, os movimentos sociais e os setores da sociedade que ele supostamente representava) e a sociedade brasileira. Os responsáveis pelos escândalos de corrupção devem ser trazidos à justiça, isso não é negociável caso você queira convencer alguém.

Pois veja bem: Bolsonaro é o coquetel molotov que seus eleitores desejam lançar no sistema político partidário; desejam dar um reset na coisa toda. O fenômeno não é novo, e por isso a onda conservadora se alastra não apenas aqui em terrae brasilis. Nesse caso, sabemos, é como tentar apagar um incêndio com um galão de gasolina.

Esse é o momento de questionar seus eleitores sobre quais são essas soluções mágicas para a corrupção na política. Será impedir os corruptos de se reeleger? Pena de prisão mais longa? Multas menos generosas com os infratores? Impedir familiares do corrupto a ocuparem posições dentro da máquina pública? Irão abrir mão de seu foro privilegiado? Qual é a medida a ser implementada?

A sua suposta erudição não pode ser barreira para a criação de diálogo. (“Temos que impedir o avanço do comunismo e que Brasil se torne uma Venezuela!”)

O medo do comunismo foi ressuscitado e cirurgicamente implantado pela propaganda de Bolsonaro, fazendo com que uma população que sequer sabe sua definição passasse de indiferença à repulsa. Trabalho muito bem feito, temos que admitir.

Não perca tempo com as definições de comunismo, isso só atrasa a conversa (lembre-se que você está no lado que não tem tempo a perder). A questão de verdade é: por que um partido de esquerda teve 12 anos de governo para implantar o comunismo, mas não o fez? Por que entregou o poder (mesmo não concordando com as circunstâncias) depois do impeachment? Por que, ao invés disso, preferiu retirar pessoas da extrema pobreza durante os anos de pujança econômica? Por que, sob o governo do PT, os lucros dos bancos bateram recorde atrás de recorde, e continuam na mesma tendência agora?

O sentimento de vingança não conhece limites (“Mas a Venezuela…”)

Por que as massas que se enfileiram atrás de Bolsonaro se referem à ele como comandante, assim como fazia Hugo Chávez? Por que rejeitam qualquer possibilidade do mito estar errado, como se fazia com Hugo Chávez? O que, na sua vida, está se aproximando da vida de um venezuelano nesse momento?

A sociedade brasileira não aprendeu a enxergar o outro como seu semelhante (“E tem essa bandidagem toda que precisamos dar um jeito!”)

Ninguém discorda que a segurança pública precisa de atenção.

Mas o que acontece se o policial com total poder de matar resolve que hoje é o seu dia? A quem você recorre quando a polícia quer te matar? Se policiais são mortos com as próprias armas durante assaltos, como uma arma vai te proteger? Você vai gastar dinheiro com uma arma e não com a melhoria da vida de sua família?

Receio que a conversa garantista vai ter que ficar pra um outro momento. O diálogo precisa ser estabelecido em um nível muito mais elementar do que o “idealismo” (a que ponto chegamos) do devido processo legal. Lembre-se que uma parcela da população relativiza os preceitos mínimos do estado democrático de direito, e uma outra parte acredita que eles são empecilhos para o progresso.

Apesar de tudo isso, creio que a maior parte dessas pessoas não é composta por lunáticos saudosos pela ditadura, ou com sede do sangue das minorias. No entanto, essas pessoas existem. E não se enganem, o estrago já está feito, independente de quem ocupe a presidência da república.

O dilúvio conservador só está começando a produzir seus efeitos; as próximas décadas (friso: décadas) serão de luta para que muitos dos direitos conquistados nos últimos anos não sofram tanto retrocesso assim. Isso na melhor das hipóteses. Na pior das hipóteses, os parcos fiapos democráticos cederão completamente, e os efeitos são imprevisíveis.

O que vejo por aí são pessoas que votam contra si mesmas. Que são pobres, pretos, indígenas, LGBT, mulheres e nordestinos que caíram na pegadinha maliciosa de charlatões vendedores de sonhos. Tenhamos em mente que o nível mais sofisticado de opressão é atingido quando o oprimido passa a oprimir a si mesmo e a outros no lugar do opressor. Os defeitos estruturais que viabilizam esse tipo de coisa não são defeitos de verdade, e sim mecanismos cuidadosamente elaborados que foram colocados onde estão de propósito.

Por isso ouça as respostas para essas perguntas. Ouça para entender, e não para responder. A mudança começa agora, quando progressistas colocam as sandálias da humildade. Mas em dados momentos, não tem jeito: você vai encontrar casos irrecuperáveis, em que estabelecer diálogo não é uma opção viável. Afinal, como dialogar com quem não te enxerga como gente? Francamente, não sei.

Não tenho as respostas para tudo, e espero que os historiadores do futuro sejam compreensivos com nossa ignorância nesse momento. Mas bola pra frente, turma. Há muito trabalho a ser feito.

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Felipe Bittencourt
Pela Metade

Trekker. Entusiasta do Direito e da tecnologia. Neverending work in progress.