Morte súbita

Um dia comum, duas perdas.

Matheus Galvão
Pela Metade
4 min readSep 24, 2018

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A garrafa de vidro cai no chão e deixa um monte de estilhaço verde. Um cheiro forte de cerveja toma a sala. Kaio contina assitindo ao jogo de futebol. Priscila sai do quarto e, da porta mesmo, observa a sujeira. Ela faz uma cara feia, bufa uma quantidade significativa de ar e volta para o quarto. Kaio apenas muda de posição, pega o controle e aumenta o som da tevê. O seu time ganha de 1 a 0.

Agora a cerveja escorre para debaixo do sofá e o pequeno Mickey, o cachorro do casal, começa a lamber o líquido. Ele parece gostar. Cada vez mais intensamente, Mickey lambe a cerveja sem se preocupar com o vidro. O narrador se empolga, parece que mais um gol vem. Alarme falso. Mickey começa a tossir, está engasgado.

Kaio e Priscila estão no hospital veterinário. O veterinário explica que ele precisará fazer um procedimento de aspiração delicado em Mickey. Kaio ouve distraído enquanto vê o jogo pelo celular. Priscila chora. Ela vê Kaio atento ao jogo, aproxima-se dele e derruba o celular, que se estilhaça no chão. Ele fica sem reação, os olhos arregalados. Pergunta se ela está maluca. Ela responde que o cachorro está morrendo e que ele só pensa naquela droga de jogo. Ele retruca que aquele cachorro velho já devia ter morrido há muito tempo. Ela não gosta nada disso, pega uma cadeira de alumínio que está encostada na parede e atira nas costas de Kaio.

O veterinário volta e encontra uma cena nada agradável. Kaio está caído no chão se contorcendo. Há um corte na parte de trás da sua cabeça. A recepcionista se aproxima, olha e corre para o banheiro. Ela volta com um monte de papel-toalha molhado, coloca atrás da cabeça de Kaio e pergunta o que aconteceu. Priscila está em prantos e tremendo. Ela não consegue explicar.

Kaio e Priscila estão no Hospital. Enquanto o médico aplica uns pontos na cabeça de Kaio, Priscila segura sua mão esquerda. A mão direita de Kaio está engessada. Ele afasta a mão dela e faz uma cara de dor. O médico pede que ele não se mexa. Priscila recebe uma ligação. Ela se afasta. O médico faz um comentário sobre o estrago que uma garota daquele tamanho fez num homem do tamanho de Kaio. Kaio apaenas respira.

Priscila chora alto no corredor, Kaio consegue ouvi-la da sala de emergência. Ele tenta se levantar, mas o médico pede que ele aguarde e não se mexa. Kaio percebe que tem uma televisão ligada com o volume quase nulo ao lado dele. Kaio pede para mudar para a Globo. Uma das enfermeiras que acompanha o médico vai até a tevê e muda. Está passando o jogo.

Priscila retorna desolada. Ela está soluçando e dizendo que Mickey não resistiu e morreu. A enfermeira se aproxima dela e tenta acalmá-la, acomodando-a numa maca próxima de Kaio. Ele está olhando para a tevê. O placar está 1 a 1, agora. O narrador faz um comentário sobre a expulsão do goleiro do time de Kaio e diz que a situação fica crítica no banco, pois o técnico já fez todas as substituições.

Priscila dá um grito e pede para Kaio ser menos egoísta e infantil. O médico e a enfermeira pedem silêncio, por favor. Ela está soluçando e diz que Kaio é um imbecil egoísta como a mãe dele. A enfermeira a segura e tenta levar Priscila para outra sala. O médico sugere que lhe dê um calmante.

Agora alguém aumenta o volume da tevê. Um jogador está caído no chão, vários outros jogadores ao redor. O árbitro faz um sinal firme para a equipe médica entrar em campo. O jogador tem espasmos. A câmera foca no banco e o treinador está com cara de preocupado. É um jogador do time adversário. O médico pede que Kaio deite de lado, mas ele pede para mudar de posição, pois quer ver a tevê. O jogador é tirado do campo desacordado. O médico pede mais uma vez que Kaio deite de lado para ele terminar o procedimento. Kaio deita, porém irritado.

Priscila está deitada numa maca em outra enfermaria. Ela bebe um copo d’água e soluça bastante. Há uma tevê onde todos assistem atentos à mesma cena dramática do jogo. Aparentemente o jogador teve uma morte súbita. Ao ouvir o nome do jogador — Romero — Priscila muda de feição. Ela parece se acalmar e se assustar ao mesmo tempo. Levanta e volta para a enfermaria onde Kaio está. Ela o vê chorando, aproxima-se dele e o abraça. Ele estava lá em casa ontem, Kaio diz, tomando cerveja e sorrindo, agora está aí duro.

Uma gota de sangue cai de trás da cabeça de Kaio, molhando o papel toalha que cobre a maca. Priscila não consegue mais se lembrar de Mickey. Nem do piso molhado de cerveja.

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