Toda história precisa fazer sentido e ter uma lição de moral?

O que David Lynch me ensinou sobre história e cinema.

Matheus Galvão
Pela Metade
8 min readSep 17, 2018

--

David Lynch não querer fazer sentido faz todo sentido.

Há mais de um ano eu comecei a assistir Twin Peaks na Netflix sem saber que a temporada disponível era a terceira temporada da série clássica dos anos 90. Ela foi genialmente lançada 25 anos depois, fazendo real a promessa de uma das personagens.

Enquanto todo mundo dizia que era impossível gostar e entender a terceira temporada sem ter visto as anteriores eu simplesmente adorei. Sugeri a série a muita gente, mas elas realmente não pareciam entender o que tudo aquilo queria dizer.

Mas David Lynch realmente quer dizer alguma coisa?

Assim que eu terminei de assistir os 18 episódios da temporada disponível na Netflix, comecei a pesquisar quem era David Lynch e de onde vinha tudo aquilo. Foi aí que, em uma semana, eu assisti a um monte de filme dele: Veludo Azul, Lost Highway, Cidade dos Sonhos, Inland Empire, Eraserhead, vários curtas dele no YouTube, e fiquei ainda mais fascinado. Não é fácil achar as coisas de Lynch por aí, mas do que eu vi, eu realmente fiquei louco.

Os filmes de Lynch são difíceis de encontrar. Achei no submundo da internet: vulgo streamming.

Transgressão: é disso que estamos falando

Na época em que conheci a obra de David, eu tinha começado a estudar bastante sobre narrativa. Eu acabara de ler o livro Story de Robert McKee e fiquei preso a toda uma estrutura rígida e preestabelecida para um roteiro ou história. Para funcionar, uma história precisa ter um tema e ter começo meio e fim. Foi o que aprendi.

Você não vai encontrar isso na obra de Lynch. E é aí que reside toda sua qualidade artística. Ele consegue transgredir e — a meu ver — não perder a capacidade de me manter preso e atento ao que ele tem a dizer. Ou melhor, mostrar.

Eu sinceramente acho que existe uma grande diferença entre as produções de Lynch e algumas produções ditas “arte”, como as europeias por exemplo. Estas são realmente chatas. O cinema espanhol e o argentino são bem melhores em contar histórias do tipo redondinhas, hoje em dia, mas no geral o Cinema Europeu e aqueles que querem se enquadrar em “cinema arte” acabam sendo monótonos e temáticos demais. A vida como ela é não enche barriga.

As pessoas se prendem a temas, quando na verdade precisam focar na única coisa que importa para a cinematografia e — diria eu — para qualquer outra narrativa e comunicação. Lá vai.

Imagens: isso é cinema

Elephant Man — David Lynch

David é um diretor e roteirista — entre outras coisas mais — que não tem uma estrutura narrativa linear. Acho que isso já ficou claro. Ele diz que nunca começa a desenvolver suas histórias a partir de um tema. Simplesmente pega as ideias pelas quais ele se apaixona, traduz em imagens e constrói o roteiro.

Lynch compara a captura de ideias a uma pesca.

O resultado disso são filmes muito sensoriais, imagéticos e com silêncios longos. Se você espera uma lição de moral de qualquer coisa dele, vai perder seu tempo.

Lynch não cai na besteira de defender uma ideia e cair num filme chato. Ele simplesmente expõe as imagens e deixa que o espectador aprecie e, a partir de sua própria experiência de vida, interprete e aproveite o filme ou série.

Aliás, essa necessidade de termos uma lição clara é só mais uma prova de quão passivos somos em relação à nossa própria vida. No fundo, queremos terceirizar a responsabilidade moral e isso diz mais sobre nossas sombras e limitações internas do que sobre outra coisa.

Na realidade, a agonia e as ações de todos os personagens encontram ressonância em algo a que estamos expostos como seres humanos. Algo simbólico e que desperta nossos instintos mais primitivos. Jung — não Freud — explica!

“Ah, mas as coisas dele são loucas, sem sentido, só maluquice…”

Sonhar: uma arte desconhecida

Cidade dos Sonhos é um dos filmes mais loucos e mais aclamados de Lynch.

Quer dizer que Harry Potter é bem real, certo?

David Lynch me ensinou algo muito importante. Algo que eu até hoje levo em consideração quando quero escrever ficção. Sonhe acordado.

Quando sonhamos, praticamente vemos um filme. Coisas surreais acontecem, como voar, por exemplo, ou falar com uma cabeça flutuante que tem um bigode e raízes saindo do pescoço. O que essas coisas significam?Algo que ressoa na cabeça do sonhador e algo que é misterioso o suficiente para nos deixar perplexos e curiosos.

Além do mais, todos os personagens de um sonho são, no fundo, uma representação de nós mesmos. Ainda que seja nossa mãe, nosso pai, aquela presença simbólica diz mais sobre a gente do que sobre eles. É assim com os personagens também.

Uma das experiências mais legais que eu tive e que reforçou meu gosto e admiração por Lynch foi a de fazer terapia com um Jungiano. Isso me ajudou muito a entender que imagens por si só despertam a curiosidade e, ao mesmo tempo, têm significado marcado no inconsciente coletivo. Significados que ultrapassam a sua compreensão “consciente”. É por isso que gostamos de histórias. Principalmente daquelas que passam mensagens universais.

Sonhar é algo realmente intrigante e o cinema, assim como qualquer arte narrativa, precisa manter um cenário intrigante para o espectador/leitor. Quando as coisas dão errado e ficam muito temáticas, eles chamam de “cinema arte” e colocam numa sala de cinema cara para gente fina pagar de cult.

Blockbusters são mestres em se basear em sonhos porque sonho é a imaginação plena. Ou você acredita realmente que heróis existem e não são uma representação de algo muito mais profundo como desejo de poder e auto-realização?

Aliás, por que nós adultos adoramos desenhos animados como Adventure Time ou Ricky and Morty

O nosso inconsciente coletivo pede coisas imaginativas.

Lynch é taxado de surrealista e ele realmente se aproxima de um sonho quando escreve, produz e dirige suas obras com base em imagens soltas. Ele usa o princípio básico da sétima arte, sem se preocupar com a estruturação de uma mensagem. No fundo todos os filmes são sonhos, imagens encadeadas que têm uma conexão. Pare para analisar seus — nossos — filmes favoritos e se pergunte:

Esse filme e cada cena dele poderia ser um sonho?

Você vai se surpreender com a resposta.

Pura consciência…

Esse é um tópico meio místico. Você pode ir direto para o próximo se quiser.

Enquanto assisto as coisas de Lynch eu fico num estado de transe, de extrema atenção. Isso sempre me deixou intrigado porque eu sou um distraído nato.

Quando comecei a pesquisar sobre Lynch, descobri que ele era adepto da meditação transcendental, um tipo de meditação que deixa a mente em estado “de pura consciência”. Eu percebi que havia muito dessa experiência nas suas obras, principalmente as mais recentes.

O uso de sons binaurais e de silêncios longos e constrangedores abrem espaço para o espectador simplesmente apreciar o momento e entrar em um estado de orgasmo mental como o do vídeo abaixo.

A meditação transcendental tem um forte reflexo na obra de David. Se você quiser entender mais sobre a relação entre criatividade, meditação e sobre o processo e pensamento criativo de David Lynch, então precisa assistir ao documentário Meditation, Creatitvity and Peace.

Mensagens e lições: não, elas não são pecado

Não estou dizendo aqui que filmes não possam ter mensagens. Não é isso.

Estou dizendo que as imagens e seus símbolos, os subtextos, tudo isso é mais importante. Se você tentar passar uma mensagem explícita, vai ficar forçado e o espectador não gosta de nada que fique tão na cara.

Aliás, isso é uma das coisas que concordo com Robert McKee e com Syd Field, dois escritores e especialistas em roteiro e construção de história e narrativa. Todo filme tem uma espinha central muito bem definida, mas que não fica evidente — se ficar é porque o autor se esforçou para fazer isso e fracassa em fazer a história ser boa.

O clássico exemplo é o de Chinatown. O filme tem uma constante e sutil relação entre a água — algo frequente nas cenas e diálogos — e um paralelo com a corrupção. Ninguém percebe isso escancaradamente, mas está lá o tempo todo. E eu apostaria que isso não foi costurado desde o início, simplesmente estava lá porque aquele símbolo estava de alguma forma no inconsciente do roteirista.

Nos acostumamos com filmes e histórias com lições de moral, mas cada pessoa experimenta uma lição particular. No fundo, a gente não gosta de moral, não gostamos de ninguém metendo o bedelho e dizendo como temos que agir. Mesmo que pareçamos ter uma conexão coletiva com um filme de sucesso, aquele filme tem uma mensagem muito particular para cada um, mas ele toca necessidades instintivas e universais.

Enfim, o que importa é a catarse

Na Poética de Aristóteles , ele usa o termo catarse para expressar um momento de reação da plateia quando assistiam representações das tragédias gregas. Quando as pessoas viam cenas fortes e visualmente impactantes elas reagiam a tudo aquilo, inclusive organicamente. Arrepios, lágrimas, coração acelerado...

No fundo, o que importa é que as imagens descritas ou mostradas numa história ressoem nossos instintos, necessidades, medos (olhem os filmes de terror!) mais primitivos. No fim das contas o espectador quer reagir, ele quer sentir.

Então a minha dica final para você que trabalha com escrita criativa é: sonhe, pegue as imagens e escreva. Se elas não fazem sentido? Escreva. Elas são loucas e surreais? Escreva! Depois reescreva, apare as pontas e mostre ao público. Se J.K. ou Stephen King tivessem pensando que as coisas deles eram loucas demais para serem publicadas nunca estariam aí. Afinal de contas, para que servem os editores?

David Lynch pode não ser o mestre das mensagens e das lições de moral claras, mas é um mestre das artes visuais e do cinema: ele é um mestre das imagens e das reações.

Longa vida a David.

E você, já conhecia algo de David Lynch? O que pensa sobre a obra dele? Ou o que pensa sobre o cinema e sobre a necessidade de tudo ter uma mensagem clara?

--

--