Judite e o filtro bolha

Fabio Ismerim
Tudo sobre Nada

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Há quem goste de ir ao supermercado. Eu nunca fui desses.

Pode ser que com meus 70 anos seja um dos meus esportes prediletos (ao lado do lançamento de migalhas aos pombos): olhar rótulos das embalagens sem entender nada; reclamar de preços dos produtos com a minha esposa sempre com a clássica frase “na nossa época…”; pegar caixa preferencial e quando estiver passando os produtos lembrar de algum item que esqueceu de propósito e voltar láááááá no último corredor “rapidinho” só para atravancar a fila, e ver a cara do próximo com seu pacote de cheetos lua e coca zero. Odeio fila.

Há quem goste pois é um bom lugar para conversar, conhecer pessoas. Em tempos de whatsapp, tinder, snapchat, facebook, vemos o decréscimo do capital social, conceito que Robert Putman descreve em seu best-seller Bowling Alone ( “Jogando boliche sozinhos”) sobre o declínio da vida cívica nos EUA. Com a enxurrada de informações chegando até nós de uma maneira tão rápida e as consequências da corrida pela nossa atenção e pela relevância dos posts, o filtro bolha molda cada vez mais nosso comportamento.

A democracia exige que os cidadãos enxerguem as coisas pelo ponto de vista dos outros; em vez disso, estamos cada vez mais fechados em nossas próprias bolhas.

Eli Pariser — O Filtro Invisível

Era uma vez…

Já tem algum tempo. Foi no início deste ano. Eu ainda morava em São Vicente, litoral de São Paulo.

Fui a um supermercado sozinho pela manhã, próximo da hora do almoço. Era dia útil, portanto o mercado estava um pouco vazio. Nada de filas!!

Fiz as compras da semana rapidamente. Tudo que precisava: miojo, salsicha e clight maracujá. Nessa época trabalhava em casa e minha esposa estava passando uma semana com nossos filhos na casa dos meus sogros, a 700km dali.

Foi quando cheguei no caixa. Apenas dois na minha frente, sendo que um já etava passando os produtos na esteira. A pessoa a minha frente era uma mulher que chamarei de Judite. Simples: camisa larga, shorts e havainas. Traje típico de uma cidade litorânea quente e úmida. Um dos fatores pelo qual sempre amei a selva (apelido carinhoso que nós residentes demos a cidade): se vestir à vontade sem se importar. Shopping, festas, bares, eu ia tudo de bermuda e chinelo.

Estava na fila com olhar de paisagem olhando as caixas de doces e balas e capas de revistas com alguma “notícia” bombástica de uma novela qualquer e sem meus fones de ouvido, pois tinha esquecido meu celular em casa, afinal, seria um bate e volta rapidinho. E são nesses momentos peculiares que você sente a força e o poder de um simples fone de ouvido: ele repele o contato humano e a socialização. Hoje em dia, andar por aí sem fones de ouvido é como se você estivesse fazendo um convite para qualquer um que passe por você para tomar o chá das cinco na sua casa.

– Como pode né?? Onde já se viu isso!!

o que? oi?? quem??

Olhei pros lados para ver se era comigo mesmo. Eu não estava lendo a revista, estava apenas… esperando minha vez!!

Apenas olhei pra ela com aquele ponto de interrogação enorme em cima da minha cabeça.

– Como que a gente faz agora pra explicar as coisas dentro de casa?????

Eu ainda sem continuar entender, olhei para as revistas, desta vez procurando alguma pista. E estava lá. Não a pista mas o tema do, até então, monólogo. Era uma atriz da qual não me recordo e com alguma frase a respeito do personagem que ela interpretava. Era um personagem gay da novela global do horário “nobre”.

Já meio que entendendo tudo, resolvi não deixá-la resmungando sozinha, mas também não queria entrar em um debate sobre isso naquele momento. Só queria voltar pra casa.

– Hmmm…desculpa mas não vejo novela.

Respondi de forma educada já querendo mostrar desinteresse sem querer me passar por estúpido ou ignorante.

Você é um imbecil. Como pôde esquecer os fones de ouvido em casa cara!! Imbecil!!

– Minha filha vive me perguntando o porque que dessas mulheres poderem se beijar. Não sei o que responder! É um absurdo isso.

Esse é o exemplo da influência e capacidade do filtro bolha e da personalização. A pessoa sequer cogitou o que eu posso pensar a respeito. Se dou a mínima, se sou a favor, se assisto ou não novela. Ela apenas refletiu a própria imagem em mim. E isso não é incomum. Somos todos Judites. Temos tendência a nos aproximar das pessoas que possuem ideias semelhantes as nossas. As redes sociais são isso e o facebook se aproveita disso com maestria desde sempre. O problema que vejo são as consequências da personalização e do filtro bolha. Comportamento como o da pessoa no exemplo acima é cada vez mais frequente, e já vi em outros meios e sobre outros assuntos também.

Curtimos, adicionamos, compartilhamos, comentamos buscamos coisas que se assemelham com nosso modo de pensar, e assim entramos cada vez mais em um mundo que não condiz com o que acontece. Para Judite, ela já parte do pressuposto que eu concordo completamente com seu modo de pensar. Aliás, mudar de canal ou não assistir a novela é algo que nem passa pela cabeça da pessoa. “É UM ABSURDO ISSO!!! EU NÃO CONSIGO ENTENDER O MOTIVO DA FULANA SE APAIXONAR PELA CICLAN…JÁ COMEÇOU A NOVELA????”. O que talvez fosse uma atitude de entrar cada vez mais na bolha, mas nesse caso não faz muito sentido assistir e dar ibope a algo que não cumpre o papel de fato: entreter.

Uma vez que o meio em que estamos inseridos, vivência, família, e até o ano em que nascemos, dentre outros fatores, têm influência em nosso modo de pensar, agir, e opinar sobre determinado assunto como bem explicado pelo Malcolm Gladwell no livro Outliers, tudo isso nos leva a pergunta que Eli Pariser faz no seu brilhante e recomendadíssimo livro O Filtro Invisível — O que a internet está escondendo de você : a personalização molda nosso comportamento, ou o nosso comportamento é que dita a personalização?

-Próximo cliente por favor!

Ufa.

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Originally published at tudosobrenada.xyz on August 24, 2015.

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