O Príncipe, o Chef e a Salada de Abacate

A conquista de um cliente por um fio

Bernardo Monteiro
Tudo sobre Nada
4 min readJan 6, 2016

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Felicidade na cozinha, com a visita do meu filho — mais um príncipe a quem dar atenção.

O garçom se dirigiu a uma mesa de quatro pessoas e distribuiu os cardápios. Ele sabia que ali estava um cliente novo e, no seu entendimento, não era hora de quebrar protocolos ou fazer qualquer tipo de improviso, liberdades reservadas aos clientes já cativados e bem conhecidos.

Era um dos melhores restaurantes da cidade: a maior cozinha, o maior número de garçons e de cozinheiros, o melhor Chef, e reportagens invejáveis nos jornais. O serviço era todo em prata e porcelana, como as cloches sobre os pratos quentes, levantadas simultaneamente de todos os pratos da mesa, em uma ação coordenada de um garçom por cliente.

Quando as cloches subiam, liberando nuvens de vapores perfumados, ouvia-se uma exclamação coletiva de satisfação em uníssono, um sorridente “aaaaah!”. Seguiam-se as avaliações sobre a arte da apresentação da comida, e entre garfadas e goles de vinho, as observações de cada um sobre o equilíbrio e a riqueza dos sabores.

Muitos clientes tentavam convencer os outros de suas qualidades como gourmets, enquanto outros brincavam com o fato de serem apenas glutões. Mas alguns clientes excepcionais frequentam esse tipo de restaurante como quem usa a copa de sua própria casa, no dia-a-dia. Um desses clientes excepcionais havia recebido o cardápio e estava pronto para fazer o pedido: “uma salada de abacate, por favor”. Não havia abacate no cardápio do jantar, mas isso não era problema. Tínhamos abacate, tínhamos salada, e uma equipe na cozinha preparada para imprevistos. Eu fui encarregado de preparar a salada, o que acontecia com frequência, isso era apenas rotina. Eu adorava preparar pratos fora do cardápio.

Parti um abacate longitudinalmente, retirei a casca e cortei fatias mais finas que um dedo, que se estendiam de uma extremidade à outra da fruta. O abacate estava perfeitamente maduro. Deixei as fatias marinando em sal, azeite, limão, cebola e ervas em uma travessa na geladeira. Enquanto isso, preparei a mistura de folhas e ervas frescas, os cubinhos de tomate sem pele e sem semente e o vinagrete de limão. Ao sinal de que as entradas quentes estavam prontas, misturei o vinagrete nas folhas, transferi para o prato da entrada como um cone alto e apoiei as lâminas de abacate artisticamente sobre as paredes da torre de salada. Mais um pouquinho de algumas folhas de ervas para decorar e o prato foi colocado sobre o balcão para envio ao salão. E outras comandas se seguiram, pura rotina.

Minutos depois, vejo o garçom que servia a mesa do cliente da salada de abacate voltar com uma expressão decepcionada e o prato vazio, reluzente, sem nem um fragmento de comida. “O cliente comeu tudo, menos o fio de cabelo”, disse ele. Eu olhei o prato e realmente havia um fio escuro. Podia ser meu, ou do cliente, ou do garçom, quem sabe? Isso não importava… a gerência não permitiu que o cliente pagasse a conta. Muito justo, e muito triste. Tratávamos todos os clientes de forma especial, como se cada um fosse um rei, mesmo que a aparência fosse como a de um de nós, cozinheiros. Mas havia uma coisa que não podíamos ignorar a respeito desse cliente: ele não era rei, mas de fato era um príncipe. Por mais acostumados que fôssemos a clientes ilustres, ninguém se comporta da mesma forma diante de um cozinheiro ou diante de um príncipe.

O trabalho na cozinha é árduo, e a remuneração dos cozinheiros costuma ser baixa. A satisfação nossa era poder dar prazer aos clientes. Se isso não era possível, o sentimento era de tristeza e de ingratidão do ofício. Mas alguns acontecimentos posteriores trariam todo o ânimo de volta. O cliente da salada de abacate, de forma consciente ou não, no dia seguinte faria nova reserva para o restaurante, dessa vez para oito pessoas. O príncipe voltaria com outros membros de sua comitiva.

Continuávamos trabalhando normalmente, tentando deixar tudo pronto para o grande número de reservas que atenderíamos. Mise en place pronta, aguardávamos a primeira mesa, que poderia ser a do príncipe — ele jantava cedo. Estávamos todos bem atentos. Chegado o momento de serví-lo, o subchefe recebeu a comanda e gritou: “oito saladas de abacaaaate!” Nos entreolhamos e demos uma risada. Estava desfeito o constrangimento. Comeram tudo, beberam os melhores vinhos e pagaram a conta.

Não gosto de escrever a moral da estória, mas não me contento em parar antes de uma conclusão melhor. Penso no que eu teria a dizer ao meu filho sobre esses acontecimentos. Não acredito que todos tirem os mesmos ensinamentos dos fatos, nem gostaria que isso acontecesse. Particularmente, eu aprendi que às vezes vale à pena voltar justamente ao estabelecimento que falhou, pois há grandes chances de o atendimento ser excepcional. A gratidão de quem falhou, e tem a oportunidade de prestar o serviço pela segunda vez, deve ser experimentada. Perdoar é ser generoso, o que traz felicidade a quem perdoa e a quem é perdoado. Pessoas felizes acertam mais.

Perdoe e seja bem servido.

Isso é o que aprendi com o príncipe.

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Bernardo Monteiro
Tudo sobre Nada

Advogado e biólogo por formação. Cozinheiro por paixão.