Conheça a produção de Cannabis medicinal na Colômbia, pretensa líder da América Latina.

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
9 min readJul 16, 2019

Pelo que tudo indica, o líder da América Latina atualmente é a Colômbia. O mercado foi regulado para grandes players, incluindo provavelmente as maiores licenças do mundo, e consequentemente, todas as grandes iniciativas do nosso continente atualmente estão lá. Nem Argentina, nem Uruguai, como muitos pensam, mas Colômbia é o atual estandarte latino-americano da Cannabis no cenário internacional. Há quem diga que iniciativas colombianas poderiam facilmente desbancar mesmo os líderes canadenses, por uma questão bastante óbvia: custo.

Entre as empresas envolvidas com produção na Colômbia temos exemplos locais, como Grupo Flor , PharmaCielo e Khiron Life Sciences e as grandes habituais como Canopy, Aurora, Aphria e Cronos Group, segundo esse post recente de análise do mercado. Ainda pela mesma referência, a redução aguda do preço por grama no esquema de produção colombiano tem o potencial de levar o mercado inteiro para uma "race to the bottom", que é o nome que se dá a esse tipo de competição em que todos brigam pelo máximo de produção com o mínimo de recursos e eventualmente leva ao achatamento da margem global, levando ao risco de inviabilizar as produções. Segundo o artigo mencionado acima, esse seria o custo por grama estimado das empresas canadenses (a partir de seus reports públicos) e a promessa das iniciativas colombianas. Easier said than done, vamos ver lá na frente.

Fonte dos dados no artigo da Barrons. Será verdade, ou estão "forçando a barra" para favorecer a Colômbia? Só o tempo dirá. Afinal, estamos comparando gente que está fazendo de fato (dados) com gente que está prometendo. Easier said than done, não é mesmo? Como qualquer empreendedor sabe, a planilha do Excel aceita qualquer projeção, por mais otimista que seja.

Mas e aí, como se parece a indústria lá na Colômbia?

O primeiro ponto importante é que as leis colombianas permitem a produção de "óleo" de Cannabis e diferentes derivados oriundos da forma psicoativa e não psicoativa da planta. Com isso, falamos dos extratos contendo alto teor de THC, teores equivalentes de THC e CBD, ou com altos teores de CBD. Nunca é demais mencionar que todas as composições tem uso medicinal válido, inclusive com produtos registrados nas 3 categorias (resctivamente Marinol, Sativex e Epidiolex).

Uma grande força alegada para o bom posicionamento global da Colômbia é seu know how, infra-estrutura e histórico na produção de flores. Mas, curiosamente, flores não poderão ser comercializadas diretamente à população.

Neste momento, estamos discutindo a regulamentação brasileira, e com a publicação da consulta pública fica evidente que o principal balizamento da ANVISA foi a regulamentação canadense. (Informações detalhadas sobre a regulamentação canadense podem ser encontradas aqui). As críticas são de que essa regulamentação é excessiva e deveria ser "tropicalizada" para se adaptar à nossa realidade, inclusive para aproveitar o clima muito mais propício ao cultivo da planta. Neste sentido, a Colômbia aparece como um contraponto interessante. E agora, o modelo produtivo colombiano poderia ser aplicado no Brasil? Quanto tempo até “chegarmos lá”? E por último, é esse o nosso modelo de mercado?

Estufa bastante simples usada para cultivo na Colômbia, fotografada para matéria do jornal El País.

Faz menos de 3 anos que a regulamentação saiu naquele país. A primeira empresa autorizada da Colômbia iniciou suas atividades como exportadora, com o objetivo de produzir Cannabis para uso científico, participando de um acordo internacional para se tornar juntamente com uma empresa uruguaia as primeiras empresas latino-americanas a exportarem para a Europa e Canadá. Puro agronegócio. Zero envolvimento ou atração dos riscos que tanto apavoram os legisladores e autoridades médicas (mencionados acima).

A Colômbia, constrangida mundialmente pela imagem associada ao narcotráfico, pretende se posicionar como um produtor de larga escala no uso medicinal dessa planta. Um grande exportador de commodity agrícola de alto custo. Tudo que o Brasil poderia (e ainda pode) ser. Há um risco de imagem? Só se fizer besteira, afinal, hoje quem está ficando de fora “do clube” são justamente os países que ainda insistem em políticas de repressão cega.

Claro que a produção não acontece sem limites, nem sem controle. De acordo com as cotas concedidas pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), e fiscalizadas pelo escritório de Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas, a UNODC, a Colômbia como um todo pode produzir até 40 toneladas. Se considerarmos um valor médio de “10%” de teor de ativo (costuma ser mais), teríamos aí algo como 4 milhões de gramas de ativo canabinoide. Mesmo se fosse tudo para tratamento de epilepsia com canabidiol (CBD), que exige doses mais altas, temos aí tratamento seguramente para mais de 100.000 pacientes. É um valor considerável, já que a Colômbia possui cerca de 50 milhões de habitantes (1/4 do Brasil). Vendidas a um preço de atacado de 3 USD, por exemplo, estamos falando de 120M USD (milhões de dólares) gerados no país. Tudo legalmente.

E isso é só o começo, as quotas internacionais de entorpecentes costumam ser aumentadas à medida em que há necessidade, ou seja, que são “consumidas”. Tenho certeza que a projeção da produção de Cannabis colombiana seja muito maior para os próximos anos. Segundo o ex-presidente mexicano Vicente Fox, membro do conselho de uma outra empresa conhecida por lá “A Colômbia será o grande exportador da América Latina enquanto o México não legalizar”. E o Brasil? Ficou por trás. Pelo menos por enquanto. Considerando que a Colômbia regulamentou em 2016, se tivermos sucesso em um processo regulatório até o final do ano, como espera a ANVISA, estaremos no mesmo patamar da Colômbia em torno do ano 2021–2022.

Com razão, a ANVISA se preocupa bastante com os temas “segurança” e “desvio de finalidade”, típicos das regulamentações internacionais de narcóticos. Por esse motivo, na regulamentação de cultivo, vislumbram uma estrutura física indoor, que foi apelidada de “bunker” pelos ativistas brasileiros. E é meio que isso mesmo, uma fortificação completamente fechada e vigiada. Essa foi a forma encontrada para “blindar” a produção há cerca de 20 anos atrás na Holanda, com receio, as primeiras experiências do Canadá também foram assim. Mas hoje, a imensa maioria dos países apostas em modelos bem mais flexíveis, e ainda assim, seguros.

A ANVISA se preocupa bastante com os temas “segurança” e “desvio de finalidade”, típicos das regulamentações internacionais de narcóticos. Por esse motivo, na regulamentação de cultivo, vislumbram uma estrutura física indoor, que foi apelidada de “bunker” pelos ativistas brasileiros. É quase isso mesmo, pois já visitei pessoalmente produções assim. É a única alternativa? Não. Veja a descrição de um processo realizado em estufas protegidas: “Em conformidade com as normas, o perímetro do cultivo da Clever Leaves em Sogamoso tem uma tripla barreira: arame farpado, cerca elétrica e sensores infravermelhos, além de um sistema de vigilância com 154 câmeras de vídeo. A rastreabilidade de cada planta garante que nenhuma possa ser desviada. As estufas aproveitam 90% da água natural com um sofisticado sistema de irrigação israelense. Menos de um ano e meio atrás, a área não passava de terra improdutiva. Hoje as projeções são atualizadas constantemente. Os 10 hectares de produção serão 15 em julho e 25 no final do ano. Nas etapas finais, os trabalhadores desfolham as plantas até deixar somente a flor”. Parece suficientemente seguro e produtivo, não?

A ANVISA se preocupa bastante com os temas “segurança” e “desvio de finalidade”, típicos das regulamentações internacionais de narcóticos. Por esse motivo, na regulamentação de cultivo, vislumbram uma estrutura física indoor, que foi apelidada de “bunker” pelos ativistas brasileiros. É quase isso mesmo, pois já visitei pessoalmente produções assim. É a única alternativa? Não. Veja a descrição de um processo realizado em estufas protegidas: “Em conformidade com as normas, o perímetro do cultivo da Clever Leaves em Sogamoso tem uma tripla barreira: arame farpado, cerca elétrica e sensores infravermelhos, além de um sistema de vigilância com 154 câmeras de vídeo. A rastreabilidade de cada planta garante que nenhuma possa ser desviada. As estufas aproveitam 90% da água natural com um sofisticado sistema de irrigação israelense. Menos de um ano e meio atrás, a área não passava de terra improdutiva. Hoje as projeções são atualizadas constantemente. Os 10 hectares de produção serão 15 em julho e 25 no final do ano. Nas etapas finais, os trabalhadores desfolham as plantas até deixar somente a flor”. Parece suficientemente seguro e produtivo, não?

Há quem diga que mesmo a Colômbia terá suas dificuldades para alcançar os produtores mundiais já estabelecidos. Ter uma regulamentação favorável às grandes produções é uma vantagem, e claramente os aspectos de clima e ciclo natural de luz são vantagens incontestáveis, que devem refletir em um preço bastante competitivo num futuro próximo. E nós que estamos ainda mais atrasados, quais serão nossas vantagens? Teremos vocação exportadora e vamos competir “lá fora” com os grandes ou nos contentaremos com o enorme mercado consumidor interno de nosso país? Ou pior, vamos nos manter consumidores e dependentes de tecnologia estrangeira? Será que o Brasil deve desenhar um modelo de mercado que favoreça o agronegócio? Ou devemos avançar e pular na frente, investindo em tecnologias de ponta e no que serão as próximas “ondas” desse mercado?

Uma coisa é certa para mim: plantar Cannabis no Brasil pode parecer uma vantagem, um grande avanço. Neste exato momento, há uma enorme disputa em jogo em que o “gol” é ver quem consegue as primeiras licenças, quem planta primeiro. Mas logo ali na frente é um oceano vermelho sem tamanho. A briga vai se tornar rapidamente por quem produz mais barato e em maior quantidade, é uma “race to the bottom” que vai derrubar a imensa maioria das empresas. Será que devemos insistir em nos posicionar como “os grandes produtores” ou fazer o exercício de realizar empreendimentos mais criativos e ousados? E mesmo se quisermos nos posicionar como “os grandes produtores”, será que há tempo para isso? Felizmente para a gente, apesar da fama, a situação da Colômbia também não está essas mil maravilhas (veja abaixo).

Em que pé está a Colômbia?

Olha, no papel está tudo lindo, mas muito se fala e pouco se faz. Apesar do governo ter outorgado inúmeras licenças, que já ultrapassam a casa de uma centena. Poucas empresas tem feito um bom uso dessa oportunidade. Veja os números abaixo no excelente “report da NewFrontier para América Latina”.

Número de licenças de cultivo outorgadas. Da esquerda para direita: 19 autorizações para produção de sementes, 62 autorizações para cultivo de Cannabis psicoativa e 89 autorização para cultivo de cânhamo. Fonte: NewFrontiers Latin America Regional Cannabis Report 2019
Número de licenças de produção outorgadas até o final de 2018. Da esquerda para direita: 73 entidades licensiadas, das quais 68 com licença de exportação, 64 com licenças domésticas e 28 com licenças restritas a estudos científicos. Fonte: NewFrontiers Latin America Regional Cannabis Report 2019

O estágio atual da Colômbia ainda é de “teste” e o primeiro passo a ser dado pela empresa postulante é realizar um ciclo completo de cultivo para registro do cultivar. Ainda contando com uma facilidade super conveniente: o governo concordo em “fechar um olho” e não conferir a origem das sementes por um determinado período de tempo, para deixar as empresas começarem os cultivos. Na prática, tudo começa com o registro do primeiro cultivar. Sabe quantas empresas já passaram pelo processo, das mais de cem licenças outorgadas? Apenas quatro. Sim, 4.

Nas empresas colombianas com quem já tive contato, o gerúndio impera no discurso (“estamos fazendo”, “está chegando”…), talvez como um disfarce para a situação real de que poucos estão realmente avançando com solidez. O processo proposto pelo governo colombiano tem suas facilidades, mas ainda assim é rígido o suficiente para ser considerado sério e limitar o progresso dos meros aventureiros. Também ainda não foram emitidas quotas de produção para linhagens psicoativas, o que faz com que todos estejam nadando no “oceano vermelho” da produção de CBD. A competição nesse caso já está anos luz à frente e o preço do grama caindo sensivelmente ao longo dos meses.

O que aprendemos com a experiência colombiana até o momento?

Muitas coisas. Primeiro de tudo, que é possível regulamentar o cultivo de Cannabis de maneira séria, rígida e talvez sem o nível insano de controle proposto no draft regulatório brasileiro. Quando se discute o aspecto de segurança, sempre vem o comentário “ah, mas isso funciona lá porque é o Canadá”. Bom, a Colômbia tem as FARC para se preocupar e um narcotráfico pesadíssimo. México também. Ouso acreditar que qualquer solução que funcione nestes países tenha chance de sucesso também no Brasil.

Depois, que simplesmente distribuir licenças não resolve em nada. É preciso fomentar o desenvolvimento de empreendimentos legítimos, com fôlego financeiro e capacidade técnica para desenvolver a planta e seus derivados. Cultivar e extrair óleo de Cannabis não é rocket science, mas também não é como plantar feijãozinho no algodão. E os passos subsequentes são bem mais complicados, típicos da complexidade de indústria farmacêutica. Um passo antes, é possível produzir para exportação, dentro dos limites regulatórios.

O processo proposto pelo governo colombiano tem suas facilidades, mas ainda assim é rígido o suficiente para ser considerado sério e limitar o progresso dos aventureiros. Talvez por isso esteja demorando tanto para engrenar.

Terceiro, é preciso fomentar a ciência e tecnologia, e gerar mão de obra capacitada. Encontrar profissionais do ramo, com formação e experiência, e que também atendam aos requisitos legais (incluindo ficha policial limpa) acaba sendo um gargalo para o crescimento do mercado. Talvez iniciar com o cultivo experimental, como sugerido pela ANVISA, seja um bom caminho para realizar a curva de aprendizado necessária e deixar as pessoas se acostumarem com a situação. Naturalmente vai reduzir a histeria.

Por último, mas não menos importante, o principal gargalo é a prescrição. A comunidade médica colombiana foi muito receptiva. Esta recepção da comunidade médica faz muita diferença, pois mexe muito com a opinião pública, das autoridades, e particularmente é de fato onde ocorre a evolução das práticas clínicas, a observação do custo-benefício (eficácia vs segurança) e o drive do mercado todo, que são as prescrições. No Brasil, antes mesmo de termos o mercado regulado, vamos ver despontar diversas iniciativas de educação no país, pois esse é um enorme gargalo atualmente.

Esse é um vídeo descrevendo o processo da Clever Leaves, próximo à Bogotá. Sério, porque não estamos fazendo isso no Brasil, gerando empregos, renda e tratamento para quem precisa? Si, se puede. Não há dúvida.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando ou receba conteúdo no seu email.

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Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.