Cannabis medicinal em veteranos de guerra americanos: aprovação de estudo nos EUA se torna um marco na pesquisa sobre transtornos de ansiedade
A recente notícia da aprovação do estudo da MAPS no FDA nos mostra que há esperança e é preciso ser insistente frente aos inúmeros obstáculos para se realizar pesquisa com Cannabis medicinal — mesmo nos EUA, o país que vem gradativamente se abrindo cada vez mais a uma legalização total.
Curiosamente, no mesmo país que praticamente lidera a abertura do mercado do CBD, em que 50 estados aprovam o uso medicinal de Cannabis e 24 aprovam inclusive o uso recreativo, a pesquisa com THC é extremamente difícil de ser aprovada. Talvez ainda mais difícil do que no Brasil, o que descobri quando fui tentar colaborar com um amigo brasileiro que estava realizando um pósdoc no Instituto Scripps.
Apesar da aparente liberalidade há uma escassez de dados de alta qualidade sobre a eficácia de Cannabis nos EUA. Por quê? Porque as regulamentações federais dificultam muito o acesso de pesquisadores à planta para fins de estudo. É um enorme contra-senso. O FDA é historicamente mais rígida quando o assunto envolve substâncias associadas à fracassada “Guerra às Drogas”. A maconha, com seu status de droga ilícita durante décadas, sofre um estigma persistente e muito difícil de ser transposto, mesmo com argumentos científicos.
MAPS dá a volta por cima e aprova um estudo com Cannabis fumada de alto teor de THC, trazendo um novo capítulo na batalha dos veteranos de guerra por terapias alternativas mais eficazes para o transtorno do estresse pós-traumático
Cannabis para Estresse Pós-traumático
O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é uma das condições mais devastadoras que podem surgir após vivências traumáticas. Para veteranos de guerra, o TEPT não é apenas um diagnóstico: é uma sombra constante que afeta sono, relações e a própria vontade de viver. Só nos Estados Unidos, 18 a 20 veteranos tiram a própria vida todos os dias — uma estatística alarmante que pode ser ainda mais alta se considerarmos casos subnotificados.
Nesse cenário sombrio, a MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies) trouxe uma fagulha de esperança. Após anos de barreiras regulatórias, a FDA (Food and Drug Administration) finalmente aprovou um estudo clínico de fase 2 para investigar o uso de cannabis de alto teor de THC no tratamento de TEPT em veteranos.
Mas o que está em jogo aqui não é só um ensaio clínico. É um debate maior sobre ciência, estigma e a necessidade de novas abordagens para condições que os tratamentos convencionais muitas vezes não conseguem alcançar.
Foi uma dura luta de 3 anos da MAPS com o FDA, basicamente tentando convencê-los de alguns pontos importantes em um estudo que pretende ser naturalístico, ou seja, refletir um padrão de uso real observado na população do estudo (veteranos de guerra americanos).
Há uma escassez de dados de alta qualidade sobre sua eficácia. Por quê? Porque as regulamentações federais dificultam muito o acesso de pesquisadores à planta para fins de estudo. A MAPS enfrentou cinco “clinical holds” — cartas de suspensão clínica — da FDA antes de finalmente conseguir aprovação para conduzir o estudo MJP2, que avalia o uso de cannabis fumada em veteranos com TEPT.
Os pontos principais questionados pelo FDA e rebatidos pela MAPS:
- Alta dosagem de THC: A FDA temia que doses mais altas pudessem gerar riscos desproporcionais aos participantes.
- Cannabis fumada: O ato de fumar em si não é considerado "médico" e traz preocupações de segurança.
- Uso de vapers: Embora teoricamente reduzirem riscos, os dispositivos precisam de mais validação técnica para uso clínico.
- Participantes sem experiência prévia com cannabis: A agência alegou que poderia ser arriscado incluir pessoas que nunca usaram maconha no estudo.
Ou seja, para ganhar essa queda de braço, a MAPS precisava convencer o FDA que: a dose proposta é segura, que faz sentido considerar Cannabis fumada como uso medicinal, e que é seguro incluir no estudo indivíduos que nunca usaram Cannabis. É uma briga boa.
Após negociações, a MAPS aceitou que o protocolo do estudo fosse ajustado: participantes deverão ter experiência prévia com Cannabis, e o uso de vapers permanece suspenso até novos dados de segurança. Sim, é isso mesmo que você leu, o uso de baseados fumados foram aceitos, enquanto vaporizadores — que todo usuário considera melhor para a saúde — não foi considerado clinicamente válido.
Um grande avanço na pesquisa sobre o tema
A aprovação do estudo em si é um marco. Conforme protocolo disponível online Ele será conduzido com cerca de 320 veteranos que poderão consumir cannabis de alto teor de THC de forma “naturalística” — ou seja, no estilo da vida real, sem doses fixas. Isso reflete melhor como a substância é usada fora de um ambiente clínico, oferecendo dados mais úteis para médicos e pacientes.
“(..) para ganhar essa queda de braço, a MAPS precisava convencer o FDA que: a dose proposta é segura, que faz sentido considerar Cannabis fumada como uso medicinal, e que é seguro incluir no estudo indivíduos que nunca usaram Cannabis. É uma briga boa. No final das contas o protocolo foi adaptado e será necessário ter experiência prévia com Cannabis para participar. Isso por si só traz um potencial viés de seleção e pode gerar conclusões clínicas passíveis de críticas. Vamos acompanhar”
A justificativa do estudo é que para muitos veteranos, a cannabis já é um remédio informal. Agora há uma chance de validar cientificamente os benefícios relatados, como redução de ansiedade, melhora do sono e menor uso de medicamentos tradicionais. E estes serão os endpoints do estudo.
Mapa mental do protocolo resumido:
Resumo do protocolo abaixo para os interessados
Objetivo do Estudo
Avaliar a segurança e a eficácia da cannabis inalável de alto teor de THC em veteranos com TEPT moderado a grave. O estudo busca dados que reflitam o consumo real da substância, com foco em sua aplicação clínica.
Desenho do Estudo
Estudo de fase 2, multicêntrico, randomizado, placebo-controlado, duplo-cego com veteranos previamente familiarizados com o uso de cannabis.
Tratamento
Cannabis fumada versus placebo, com dosagem autoajustada pelos participantes durante 5 semanas. Triagem durante 1 semana.
Curiosidade: O placebo será produzido a partir de flores reais de Cannabis com o THC totalmente removido, mantendo outros compostos presentes para reproduzir o sabor, aroma e experiência sensorial. Isso garante o cegamento, fazendo com que os participantes não consigam distinguir o placebo da substância ativa apenas pelo consumo.
Voluntários
Aproximadamente 320 participantes em 2 braços paralelos. Grupo experimental: Receberá cannabis ativa. Grupo controle: Receberá placebo. Ambos os grupos têm alocação randômica e estão balanceados para minimização de viés.
Critérios de Inclusão
- Diagnóstico confirmado de TEPT (escalado pela CAPS-5-R).
- Experiência prévia com cannabis (fumada ou vaporizada).
- Idade entre 18 e 65 anos.
- Condições médicas estáveis.
Critérios de Exclusão
- Uso de cannabis em vapor sem autorização técnica.
- Histórias de abuso severo de substâncias ou distúrbios psiquiátricos ativos.
- Problemas cardiovasculares não tratados ou contraindicações respiratórias.
Desfecho clínico primário
Redução dos sintomas de TEPT medidos pela CAPS-5-R (Clinician-Administered PTSD Scale for DSM-5 — Revised) ao final de 5 semanas de tratamento. O foco é a mudança na pontuação total em relação ao baseline.
Desfechos clínicos secundários
- Qualidade do Sono: Avaliada por escalas específicas de distúrbios do sono.
- Qualidade de Vida Geral: Usando o Questionário de Saúde SF-36.
- Impacto no Uso de Medicamentos Psiquiátricos: Redução na dependência de medicamentos tradicionais como antidepressivos.
- Eventos Adversos: Incidência de efeitos colaterais ou crises relacionadas ao consumo de cannabis.
- Preferência dos Participantes: Relatórios subjetivos sobre eficácia percebida e tolerância ao uso da substância.
Potenciais riscos identificados
- Cognitivos e Psicológicos: Alterações de humor e desempenho mental.
- Cardiovasculares e Respiratórios: Possível aumento da frequência cardíaca e impacto no sistema pulmonar.
- Abuso e Dependência: Monitoramento rigoroso implementado para evitar desvio de cannabis.
Plano de mitigação: monitoramento médico regular, ajuste de dose auto-administrado sob supervisão e protocolos para minimizar tentativas de suicídios e crises psicológicas.
Interessante, não é? Achei um bom protocolo. Só me surpreende que a MAPS não tenha ido na direção de tentar uma psicoterapia facilitada por canabinoides, afinal já temos bastante indício de que este tratamento facilitaria a extinção de memórias traumáticas. Eu mesmo já trabalhei nessa área no passado, quando fazia psicofarmacologia experimental.
Os conhecedores da história recente da MAPS podem achar que eles evitaram associar este estudo a algo similar ao que foi proposto para o MDMA — cujo registro foi recentemente negado pelo FDA apesar da superioridade estatística do tratamento, e de repente é verdade, não sei.
O estudo de Cannabis em veteranos de guerra não é novo, foi uma das primeiras iniciativas de pesquisas que surgiram em Israel, nos primórdios da pesquisa clínica com Cannabis e se não me engano teve apoio da MAPS. Contudo, nos EUA, a iniciativa só ganhou força regulatória com a submissão do protocolo em 2021 após um grant de quase 13 milhões de dólares para financiar o estudo da MAPS.
O protocolo final em si é bastante simplório, com sua abordagem naturalista e em linha com uma lógica que apoia o uso de Cannabis para alívio dos sintomas dos veteranos de guerra, como nos mostra essa notícia abaixo, de 2010, mostrando que a lei claramente não se aplica para todos.
“Apesar do uso cada vez mais disseminado e da aceitação da cannabis por pacientes com TEPT, classificado como ‘uso medicinal’ em muitos estados, ainda há uma falta de dados controlados e de alta qualidade sobre a segurança e eficácia do uso de cannabis que reflitam os padrões reais de consumo. A MAPS projetou o estudo MJP2 para preencher essa lacuna de evidências, estudando o uso ‘real’ de cannabis inalada para entender seus potenciais benefícios e riscos no tratamento do TEPT.
Esses dados são cruciais para informar pacientes, profissionais de saúde e consumidores de uso adulto ao considerarem a cannabis em planos de tratamento para o manejo de TEPT, dor e outras condições graves de saúde. No entanto, obstáculos regulatórios historicamente tornaram difícil ou impossível realizar pesquisas significativas sobre a segurança e a eficácia de produtos de cannabis tipicamente consumidos em mercados regulamentados.
As opiniões atualizadas expressas pela FDA em resposta ao FDRR demonstram uma disposição de reconhecer o valor de dados de alta qualidade sobre os riscos e benefícios potenciais do uso já amplamente disseminado de cannabis no manejo do TEPT. Remover barreiras à pesquisa é uma parte fundamental da missão da MAPS, e estamos satisfeitos por ter negociado uma resolução para esses obstáculos históricos na pesquisa com cannabis, apoiando todos os futuros pesquisadores da área.”
— Allison Coker, Ph.D., Diretora de Pesquisa em Cannabis, MAPS
A luta da MAPS mostra que o progresso na ciência exige coragem para desafiar normas e preconceitos. Assim como a psicoterapia assistida por MDMA transformou o debate sobre tratamentos para TEPT, o estudo com cannabis pode abrir portas para um uso mais racional e embasado da planta.
Para veteranos que carregam as cicatrizes da guerra, isso pode ser a diferença entre o desespero e a esperança. E, para todos nós, é um lembrete de que estigma nunca deve ser um obstáculo para a busca de conhecimento — especialmente quando vidas humanas estão em jogo.
Vou terminar o texto com as palavras da médica Dra Sue Sisley, pesquisadora principal do estudo:
“Nossos veteranos têm uma necessidade urgente de tratamentos que possam aliviar os desafiadores sintomas do TEPT. Em minha prática clínica, pacientes veteranos compartilharam como fumar cannabis os ajudou a controlar os sintomas do TEPT mais eficazmente do que os medicamentos tradicionais. O suicídio entre veteranos é uma crise urgente de saúde pública, mas é algo que podemos resolver se investirmos na pesquisa de novos tratamentos para condições de saúde potencialmente fatais, como o TEPT. O estudo MJP2 gerará dados que médicos, como eu, poderão usar para desenvolver planos de tratamento e ajudar as pessoas a gerenciar os sintomas do TEPT.” — Dra Sue Susley, Investigadora Principal
Me parece uma ótima mensagem de empatia e esperança, que quem sabe, será embasada por evidências científicas em breve. Pelo menos a etapa regulatória foi ultrapassada, e isso é um ótimo sinal.
O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!
Referências para você mergulhar mais fundo no assunto
https://www.cdc.gov/cannabis/about/state-medical-cannabis-laws.html
https://maps.org/wp-content/uploads/2024/11/MJP2-Public-Protocol-A2V2-FINAL-07Oct2024-1.pdf
https://fabriciopamplona.medium.com/a-queda-de-um-tit%C3%A3-dos-psicod%C3%A9licos-2a69c1cf8c82
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32842985/