CBD produzido no Brasil. É possível? Teve novidade essa semana.
Essa semana nos deparamos com uma entrevista bombástica do atual presidente da ANVISA (Jarbas Barbosa) à Revista Superinteressante dizendo que a "ANVISA pretende regulamentar plantio da Cannabis para pesquisa". Na mesma semana, várias matérias anunciam que uma empresa farmacêutica brasileira será "a primeira a produzir e vender extrato de canabidiol no país", que "começa a produção de remédio à base de canabidiol" e que "registra o primeiro remédio 100% à base de canabidiol no mundo".
Entre informações desencontradas sobre a composição do medicamento (sintético, isolado ou extrato?), a sua origem (brasileiro ou importado?) e o estágio de desenvolvimento em que está o produto (registrado, em testes clínicos, espera fazer testes de eficácia, ou em estudo pré-clínico?), fiquei realmente intrigado e resolvi escrever este texto para tentar trazer um pouco de discernimento ao assunto. Afinal, o jornalismo científico brasileiro não costuma ser muito cuidadoso com a qualidade das informações, mas acho que aqui passaram do ponto. Certamente não é interesse do fabricante divulgar essa lambança. Na minha opinião, é um desserviço enorme à educação do povo brasileiro sobre o tema, e principalmente, uma irresponsabilidade com os pacientes e seus familiares.
Se eu entendi adequadamente o assunto, o resumo da ópera é: 1) A Prati-Donaduzzi resolveu utilizar testes clínicos realizados pela USP-RP com o Purodiol (CBD purificado) para tentar registrar o produto no Brasil (provavelmente como medicamento específico que nem o Sativex/Mevatyl, já que se trata de um ativo farmacêutico purificado a partir de planta) e 2) Pretende no futuro próximo fazer um medicamento similar, de origem sintética.
Esse é o supra-sumo da notícia, o resto é manchete clickbait fazendo sensacionalismo. Tempos atrás, foi ventilada uma "denúncia" no meio ativista canábico falando dos "interesses" do Prof. Crippa da USP-RP no desenvolvimento de um canabidiol sintético. Historicamente, o Prof. Crippa usava CBD da empresa alemã THC-Pharma, mas nos últimos anos tinha essa informação de que estava usando o Purodiol. No meio ativista, já era apelidado de "Crippadiol", como uma alusão ao nome do colega pesquisador. Uma sacanagem com o Crippa, que é um pesquisador de alto nível e reconhecido internacionalmente, mas a piada é boa. Hoje, ao que parece, a história se confirma, e com participação de uma empresa nacional que se lança anunciando que "produz" e vai registrar o purodiol, rebatizado de Myalo, segundo as matérias mencionadas acima.
É uma confusão danada entre produto sintético, isolado e extrato; entre que tipo de pesquisa é necessária para o registro de um produto na ANVISA; a ideia de que o remédio é produzido no Brasil (quando se sabe que o Purodiol é produzido na Inglaterra) e principalmente, o engodo de que é o primeiro no mundo, quando a GW já anunciou pedido de registro do Epidiolex no FDA e vem conduzindo pesquisas no tema há muitos anos. A empresa continua fazendo o que sempre fez, copiar e produzir similares, mas em época de fakenews, tudo isso parece ser tolerado. Só que fica feio, não fica?
Abaixo, um compilado dos trechos que confundem, esclarecendo as informações. Vou apresentar na sequência em que tomei conhecimento, desde hoje às 8h da manhã:
De cara já temos alguns "probleminhas" na informação veiculada. A empresa tem um estudo clínico registrado no clinicaltrials.org, um banco de dados internacional de pesquisa clínica, em que figura como colaboradora de um estudo do Prof. Antônio Zuardi, da USP-RP, que foi orientador do Prof. Crippa. Até aí está perfeito, é assim mesmo que se faz no estudos internacionais sérios.
Se a informação está atualizada, esse estudo de Fase 3 irá iniciar recrutamento em abril deste ano. Ocorre que curiosamente, não há qualquer registro de teste clínico do grupo no site da ANVISA com canabidiol, CBD, Myalo, Purodiol ou em nome dos pesquisadores mencionados. Procurando amplamente por "epilepsia", só se encontram estudos autorizados em 2012 e 2015 com lacosamida e levetiracetam.
Você mesmo pode fazer a consulta de estudos clínicos autorizados no endereço http://portal.anvisa.gov.br/consulta-de-ensaios-clinicos-autorizados.
Claro que sempre precisamos contar com a possibilidade do banco de dados estar desatualizado, mas a informação oficial e pública disponível é esta. Ocorre que esse tipo de estudo é o que chamamos de "estudo de iniciativa do investigador", em que se alguma empresa participa é, no máximo, como doadora do produto investigacional (o medicamento). É totalmente OK para estudos médico-acadêmicos, mas não é nada OK para estudos regulatórios, em que se pretende registrar um medicamento.
Nesse tipo de estudo regulatório, a agência regulatória, no nosso caso a ANVISA, precisa dar anuência para a realização dos estudos clínicos. Em geral, isso inicia com o pedido de estudos pré-clínicos, em células e animais de laboratório, com um alto standard (igualmente regulatório), seguindo guias internacionais como as da OECD e ICH. No caso de produtos à base de canabidiol, eu considero aceitável que se autorize estudos clínicos em pacientes, uma vez que:
1) já existe bastante informação na literatura
2) sabe-se que o canabidiol possui uma ampla janela terapêutica, ou seja, é seguro,
3) a própria ANVISA já definiu que produtos à base de canabinoide contendo THC e CBD são seguros, e podem ser registrados até na concentração de 30 mg/ml (atualização da lista A3 da Portaria 344/98 na ocasião do registro do Mevatyl no país).
No Brasil, o mecanismo de entrada de estudo clínico no pipeline regulatório é precedido pela submissão oficial de um Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM). Esse documento comunica oficialmente à autoridade o plano de desenvolvimento e autoriza a empresa a realizar o desenvolvimento clínico de produto que leva ao registro. Depois disso é que se realizam os estudos de Fase 1 (segurança), Fase 2 (eficácia preliminar) e Fase 3 (eficácia confirmatória).
Curioso que no estudo descrito no clinicaltrials.gov a universidade aparece como a parte responsável, ou seja, quem está realizando o estudo, e a empresa como apoiador/colaborador (vide abaixo). Isso é compatível com o papel de "doador ou financiador" em um estudo de iniciativa do pesquisador, com fins acadêmicos, mas não é compatível com um estudo regulatório para fins de registro de produto.
Ou será que a USP vai produzir o canabidiol em uma planta industrial da universidade, parecido com a lambança que foi a história da fosfoetanolamina? Acho que não, me parece mais uma tentativa de "pegar um atalho" e usar um mecanismo paralelo ao que toda iniciativa séria e oficial de registro de medicamento faz, afinal até o nome do estudo é "CBD-PRATI-USP"
Estranho que o estudo aparece como "não recrutando", seja um estudo "modelo acadêmico", não registrado na ANVISA, mas na reportagem o título saia da maneira como saiu, não é? Se a agência permitir o registro do produto nestes moldes, estamos diante de uma conduta bastante questionável, o popular "dois pesos, duas medidas", que comumente se aplica por aqui.
Para descomplicar
Para os mais interessados, e com o intuito de informar, acho que vale apontar as contradições nas matérias publicadas hoje. Abaixo, comentários de trechos dos links mencionados no início do post, para tentar desatar esse nó de desinformação que foi feito após a coletiva de imprensa da empresa.
- Fase de desenvolvimento clínico
2. Composição
3. Preço
4. Purificação
5. Único no mundo
6. Produto nacional
7. Volume de produção
8. Padronização
9. Sintético ou natural?
10. Nacional ou importado? Se decidam, por favor
Por que não no Brasil? (de verdade)
Apesar disso tudo, o cenário no Brasil é favorável, e continuo afirmando o que sempre disse, mesmo antes de trabalhar na indústria: temos know how e todas as condições favoráveis para desenvolver medicamentos canabinoides no Brasil. Cientistas brasileiros, incluindo os citados nesse post, tiveram e continuam tendo bastante destaque em âmbito internacional, a indústria nacional está preparada, mas precisamos de uma regulamentação à altura, que permita trabalhar livremente com pesquisa e desenvolvimento no país.
Como bem diz o atual presidente da ANVISA na matéria que comentei lá em cima, já estamos atrasados em ter uma regulamentação da atividade no país. É um tema sensível, é um tema político, mas acima de tudo, é um tema essencial e que foi considerado prioritário na agenda regulatória.
“O Brasil reúne todas as características propícias e know how para produção nacional de derivados de Cannabis. Contudo, sem a regulamentação, ficamos presos à necessidade da importação de matéria-prima. Qualquer desenvolvimento que não venha junto com uma regulamentação do mercado traz avanços apenas superficiais para a sociedade”
Sobre CBD purificado x fitoterápico: pra quem tiver interesse na minha opinião sobre o tema, assista minha palestra na Harvard Medical School: https://www.youtube.com/watch?v=tkLB7Na9mlc
Conflito de interesse: Eu trabalho na indústria, e estou coordenando o desenvolvimento de um produto à base de Cannabis com diretor científico da Entourage Phytolab. Antes disso, tenho toda uma carreira como psicofarmacologista de canabinoides. Antes disso, sou um cidadão brasileiro bem informado sobre o tema, e não consigo ficar calado vendo tanta besteira sendo publicada. Se quiser conhecer um pouco mais sobre minha trajetória, veja essa matéria da Vice Brasil.
O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!