CBD produzido no Brasil. É possível? Teve novidade essa semana.

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
8 min readApr 5, 2018

Essa semana nos deparamos com uma entrevista bombástica do atual presidente da ANVISA (Jarbas Barbosa) à Revista Superinteressante dizendo que a "ANVISA pretende regulamentar plantio da Cannabis para pesquisa". Na mesma semana, várias matérias anunciam que uma empresa farmacêutica brasileira será "a primeira a produzir e vender extrato de canabidiol no país", que "começa a produção de remédio à base de canabidiol" e que "registra o primeiro remédio 100% à base de canabidiol no mundo".

Entre informações desencontradas sobre a composição do medicamento (sintético, isolado ou extrato?), a sua origem (brasileiro ou importado?) e o estágio de desenvolvimento em que está o produto (registrado, em testes clínicos, espera fazer testes de eficácia, ou em estudo pré-clínico?), fiquei realmente intrigado e resolvi escrever este texto para tentar trazer um pouco de discernimento ao assunto. Afinal, o jornalismo científico brasileiro não costuma ser muito cuidadoso com a qualidade das informações, mas acho que aqui passaram do ponto. Certamente não é interesse do fabricante divulgar essa lambança. Na minha opinião, é um desserviço enorme à educação do povo brasileiro sobre o tema, e principalmente, uma irresponsabilidade com os pacientes e seus familiares.

Se eu entendi adequadamente o assunto, o resumo da ópera é: 1) A Prati-Donaduzzi resolveu utilizar testes clínicos realizados pela USP-RP com o Purodiol (CBD purificado) para tentar registrar o produto no Brasil (provavelmente como medicamento específico que nem o Sativex/Mevatyl, já que se trata de um ativo farmacêutico purificado a partir de planta) e 2) Pretende no futuro próximo fazer um medicamento similar, de origem sintética.

Esse é o supra-sumo da notícia, o resto é manchete clickbait fazendo sensacionalismo. Tempos atrás, foi ventilada uma "denúncia" no meio ativista canábico falando dos "interesses" do Prof. Crippa da USP-RP no desenvolvimento de um canabidiol sintético. Historicamente, o Prof. Crippa usava CBD da empresa alemã THC-Pharma, mas nos últimos anos tinha essa informação de que estava usando o Purodiol. No meio ativista, já era apelidado de "Crippadiol", como uma alusão ao nome do colega pesquisador. Uma sacanagem com o Crippa, que é um pesquisador de alto nível e reconhecido internacionalmente, mas a piada é boa. Hoje, ao que parece, a história se confirma, e com participação de uma empresa nacional que se lança anunciando que "produz" e vai registrar o purodiol, rebatizado de Myalo, segundo as matérias mencionadas acima.

É uma confusão danada entre produto sintético, isolado e extrato; entre que tipo de pesquisa é necessária para o registro de um produto na ANVISA; a ideia de que o remédio é produzido no Brasil (quando se sabe que o Purodiol é produzido na Inglaterra) e principalmente, o engodo de que é o primeiro no mundo, quando a GW já anunciou pedido de registro do Epidiolex no FDA e vem conduzindo pesquisas no tema há muitos anos. A empresa continua fazendo o que sempre fez, copiar e produzir similares, mas em época de fakenews, tudo isso parece ser tolerado. Só que fica feio, não fica?

Status atualizado do processo do registro do Epidiolex no FDA, mostrando as pesquisas da GW com produto exatamente igual há cerca de 5 anos. Disponível em https://www.drugs.com/history/epidiolex.html

Abaixo, um compilado dos trechos que confundem, esclarecendo as informações. Vou apresentar na sequência em que tomei conhecimento, desde hoje às 8h da manhã:

As manchetes dos posts publicados hoje dão ideia do engodo que vem na sequência

De cara já temos alguns "probleminhas" na informação veiculada. A empresa tem um estudo clínico registrado no clinicaltrials.org, um banco de dados internacional de pesquisa clínica, em que figura como colaboradora de um estudo do Prof. Antônio Zuardi, da USP-RP, que foi orientador do Prof. Crippa. Até aí está perfeito, é assim mesmo que se faz no estudos internacionais sérios.

Informações atualizadas sobre o estudo ndo clinicaltrial.gov disponíveis em https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT02783092

Se a informação está atualizada, esse estudo de Fase 3 irá iniciar recrutamento em abril deste ano. Ocorre que curiosamente, não há qualquer registro de teste clínico do grupo no site da ANVISA com canabidiol, CBD, Myalo, Purodiol ou em nome dos pesquisadores mencionados. Procurando amplamente por "epilepsia", só se encontram estudos autorizados em 2012 e 2015 com lacosamida e levetiracetam.

Você mesmo pode fazer a consulta de estudos clínicos autorizados no endereço http://portal.anvisa.gov.br/consulta-de-ensaios-clinicos-autorizados.

Fazendo a pesquisa por estudos clínicos autorizado com canabidiol ou epilepsia, não se encontra absolutamente nada a respeito dos produtos e projetos de desenvolvimento anunciados pela empresa na imprensa nacional (http://portal.anvisa.gov.br/consulta-de-ensaios-clinicos-autorizados.).

Claro que sempre precisamos contar com a possibilidade do banco de dados estar desatualizado, mas a informação oficial e pública disponível é esta. Ocorre que esse tipo de estudo é o que chamamos de "estudo de iniciativa do investigador", em que se alguma empresa participa é, no máximo, como doadora do produto investigacional (o medicamento). É totalmente OK para estudos médico-acadêmicos, mas não é nada OK para estudos regulatórios, em que se pretende registrar um medicamento.

Nesse tipo de estudo regulatório, a agência regulatória, no nosso caso a ANVISA, precisa dar anuência para a realização dos estudos clínicos. Em geral, isso inicia com o pedido de estudos pré-clínicos, em células e animais de laboratório, com um alto standard (igualmente regulatório), seguindo guias internacionais como as da OECD e ICH. No caso de produtos à base de canabidiol, eu considero aceitável que se autorize estudos clínicos em pacientes, uma vez que:
1) já existe bastante informação na literatura
2) sabe-se que o canabidiol possui uma ampla janela terapêutica, ou seja, é seguro,
3) a própria ANVISA já definiu que produtos à base de canabinoide contendo THC e CBD são seguros, e podem ser registrados até na concentração de 30 mg/ml (atualização da lista A3 da Portaria 344/98 na ocasião do registro do Mevatyl no país).

No Brasil, o mecanismo de entrada de estudo clínico no pipeline regulatório é precedido pela submissão oficial de um Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM). Esse documento comunica oficialmente à autoridade o plano de desenvolvimento e autoriza a empresa a realizar o desenvolvimento clínico de produto que leva ao registro. Depois disso é que se realizam os estudos de Fase 1 (segurança), Fase 2 (eficácia preliminar) e Fase 3 (eficácia confirmatória).

Curioso que no estudo descrito no clinicaltrials.gov a universidade aparece como a parte responsável, ou seja, quem está realizando o estudo, e a empresa como apoiador/colaborador (vide abaixo). Isso é compatível com o papel de "doador ou financiador" em um estudo de iniciativa do pesquisador, com fins acadêmicos, mas não é compatível com um estudo regulatório para fins de registro de produto.

Ou será que a USP vai produzir o canabidiol em uma planta industrial da universidade, parecido com a lambança que foi a história da fosfoetanolamina? Acho que não, me parece mais uma tentativa de "pegar um atalho" e usar um mecanismo paralelo ao que toda iniciativa séria e oficial de registro de medicamento faz, afinal até o nome do estudo é "CBD-PRATI-USP"

Estranho que o estudo aparece como "não recrutando", seja um estudo "modelo acadêmico", não registrado na ANVISA, mas na reportagem o título saia da maneira como saiu, não é? Se a agência permitir o registro do produto nestes moldes, estamos diante de uma conduta bastante questionável, o popular "dois pesos, duas medidas", que comumente se aplica por aqui.

Para descomplicar

Para os mais interessados, e com o intuito de informar, acho que vale apontar as contradições nas matérias publicadas hoje. Abaixo, comentários de trechos dos links mencionados no início do post, para tentar desatar esse nó de desinformação que foi feito após a coletiva de imprensa da empresa.

  1. Fase de desenvolvimento clínico
Comentário: como comentei acima, não há qualquer estudo clínico registrado no portal da ANVISA até o momento. Normalmente, estudos acadêmicos possuem um rigor diferente dos estudos regulatórios e não são aceitos para fins de registro de um produto. Segundo o clinicaltrials.gov, o estudo clínico da USP-RP ainda nem iniciou, ou seja, não demonstrou que o produto de fato funciona. É possível que estejam utilizando estudos realizados com o Purodiol no exterior.

2. Composição

Comentário: o canabidiol não é um dos "extratos" que a planta possui. Ele é um dos canabinoides que a planta produz, e podem ser extraídos. Se a empresa importou o canabidiol da Europa, então os processos químicos de purificação foram feitos lá e não tem qualquer relação com o laboratório da empresa no Brasil. É meramente uma importação de insumo vegetal ativo do exterior, sem agregado tecnológico nacional, assim como as empresas costumam fazer com os medicamentos genéricos e similares. Compra lá fora, embala e vende.

3. Preço

Comentário: sem dúvida um produto nacional reduzirá o custo de produção da CBD. Mas, com oexposto acima, o insumo ativo anunciado (o CBD propriamente dito) continua sendo importado. Chamar esse produto de nacional é um engodo. O Purodiol, repaginado de Myalo, custa tão caro quanto qualquer um dos outros produtos já importados pelos pacientes brasileiros.

4. Purificação

Comentário: retirar o extrato da planta para purificá-lo deve ter sido um mal entendimento do repórter, mas ok, entendemos. Agora, dizer que a máquina "de 1 milhão de dólares" produz de 2 a 3 quilos por mês é de uma desonestidade intelectual ímpar. Das duas uma, ou tem o referencial de amadores, ou não conhecem a realidade. Os extratores de CO2 supercrítico utilizados pela indústria tem essa produtividade em poucas horas.

5. Único no mundo

Comentário: Já mostrei acima como o Epidiolex da GW é o verdadeiro pioneiro. Verdade seja dita, os estudos clínicos do Epidiolex iniciaram em 2013 e o registro no FDA já foi solicitado.

6. Produto nacional

Comentário: acho que não precisa nem comentar mais, eles mesmos colocam na matéria que estão usando o Purodiol e irão importar o insumo farmacêutico deste e outros produtores. De nacional aí, só a caixinha.

7. Volume de produção

Comentário: Se cada lote de produção por uma semana em 3 turnos gera de 4 a 5 Kg de matéria-prima (CBD), a empresa terá um problema enorme para suprir os 700 mil pacientes que estima. Com a dose média de 300 mg de CBD dos estudos clinicos (que em geral apontam mais que isso para o purificado, mas vou dar um "desconto"), cada 5Kg de CBD deve ser o suficiente para o tratamento mensal de aproximadamente 1000 pacientes. Para suprir 700 vezes esse valor, vai faltar semana no ano, ou a empresa terá que produzir 15 lotes a cada semana. Ninguém pode dizer que o pessoal não gosta de trabalhar! Fora isso, parece haver um erro grosseiro de matemática: na matéira, o Purodiol aparece como contendo 6 mg / frasco, com volume de 30 ml e concentração de 200 mg/ml de CBD. Para produzir 500 mil frascos do medicamento nessa concentração com 5 Kg de ativo, só se cada frasco tivesse 0,5 ml. Não entendi, será que vão vender de colherinha?

8. Padronização

Comentário: há divergências entre se há mais benefícios entre usar o CBD purificado ou no extrato bruto (como fitoterápico). Sem entrar nesse mérito, padronização não tem nada a ver com isso. Padronização é conseguir sempre resultados dentro de uma faixa razoável de variação do ativo, conforma definido nas guias e RDCs da agência regulatória. É possível ter um medicamento feito a partir de planta e absolutamente padronizado.

9. Sintético ou natural?

Comentário: o produto atual é uma "cópia" do Purodiol, portanto CBD "natural" purificado a partir da planta. O segundo produto anunciado é que deve ser o sintético.A s matérias misturam as duas coisas. Composto isolado de planta, no Brasil, é constituinte de medicamento isolado, enquanto composto sintético é outra classe de medicamento.

10. Nacional ou importado? Se decidam, por favor

Comentário: a contradição continua. O laboratório é brasileiro, mas vai simplesmente importar insumo do exterior em embalar. Será que embalar no Brasil e escrever a bula em português é suficiente para dizermos que o laboratório está produzindo medicamento nacional?

Por que não no Brasil? (de verdade)

Apesar disso tudo, o cenário no Brasil é favorável, e continuo afirmando o que sempre disse, mesmo antes de trabalhar na indústria: temos know how e todas as condições favoráveis para desenvolver medicamentos canabinoides no Brasil. Cientistas brasileiros, incluindo os citados nesse post, tiveram e continuam tendo bastante destaque em âmbito internacional, a indústria nacional está preparada, mas precisamos de uma regulamentação à altura, que permita trabalhar livremente com pesquisa e desenvolvimento no país.

Como bem diz o atual presidente da ANVISA na matéria que comentei lá em cima, já estamos atrasados em ter uma regulamentação da atividade no país. É um tema sensível, é um tema político, mas acima de tudo, é um tema essencial e que foi considerado prioritário na agenda regulatória.

“O Brasil reúne todas as características propícias e know how para produção nacional de derivados de Cannabis. Contudo, sem a regulamentação, ficamos presos à necessidade da importação de matéria-prima. Qualquer desenvolvimento que não venha junto com uma regulamentação do mercado traz avanços apenas superficiais para a sociedade”

Sobre CBD purificado x fitoterápico: pra quem tiver interesse na minha opinião sobre o tema, assista minha palestra na Harvard Medical School: https://www.youtube.com/watch?v=tkLB7Na9mlc

Conflito de interesse: Eu trabalho na indústria, e estou coordenando o desenvolvimento de um produto à base de Cannabis com diretor científico da Entourage Phytolab. Antes disso, tenho toda uma carreira como psicofarmacologista de canabinoides. Antes disso, sou um cidadão brasileiro bem informado sobre o tema, e não consigo ficar calado vendo tanta besteira sendo publicada. Se quiser conhecer um pouco mais sobre minha trajetória, veja essa matéria da Vice Brasil.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.