Criança pode inalar Cannabis? Um relato nada óbvio dos efeitos canabinoides.

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
6 min readJun 15, 2018

Quando se fala em Cannabis medicinal para crianças, tem gente que deve visualizar algo parecido com imagem repugnante da foto abaixo.

Garoto indonésio de apenas 2 anos que ficou conhecido por fumar rotineiramente, inclusive incentivado pelo pai (https://www.growingyourbaby.com/indonesian-toddler-smokes-two-packs-a-day/).

Primeiro, pra deixar o leitor absolutamente sem dúvidas: não estamos falando disso, ok?

Ao longo dos anos, a Cannabis tem sido tradicionalmente utilizada para fins recreativos de maneira fumada, enrolada em um cigarro de papel. Mas essa não é a única, principalmente nos dias de hoje e pensando no contexto medicinal. Há muitas outras maneiras de usá-la quando se pensa em desenhar produtos apropriados para o uso medicinal, que sejam otimizados para os efeitos que se deseja em uma determinada patologia.

Contudo, na história recente do uso medicinal da Cannabis, tem se popularizado basicamente o uso oral de óleos preparados a partir de extrações da planta.Percebam que grifei duas palavras: óleo e oral. Porque só aí já estamos falando de dois aspectos importantes, respectivamente, a forma farmacêutica e a via de administração.

Slide retirado da minha palestra no congresso da sociedade latino-americana de neuro-oncologia (SNOLA), em 2016, mostrando as formas de usar Cannabis e a discussão do design de produtos medicinais.

Respondendo à pergunta da foto, não, não estamos falando da mesma coisa. As principais diferenças encontradas no uso oral de extratos de Cannabis e na forma fumada são relativas à:

  1. Farmacocinética: como a substância se distribui no organismo, tempo de início e final de efeito, e os metabólitos gerados.
  2. Titulação de dose: o ajuste da dose correta individualizada é mais fácil na via inalatória (no exemplo, a forma fumada) do que na via oral (no exemplo, o extrato).
  3. Composição: na planta os compostos mais conhecidos (THC e CBD) estão na sua forma ácida, respectivamente THC-A e CBD-A, e passam por um processo conhecido como descarboxilação quando é aquecido a altas temperaturas durante a queima. Então, se você partir "do zero", literalmente está adminstrando compostos distintos (com propriedades terapêuticas igualmente distintas) na forma oral e fumada.

Isso obviamente sem falar no indivíduo. O organismo de crianças é diferente do de adultos e certas coisas não são razoáveis. Há muita gente com receio do que o THC pode causar nas crianças, receio natural advindo da psicoatividade gerada por esse composto. Como tudo na vida, acredito que haja uma medida correta. A diferença entre o veneno e o remédio é basicamente a dose.

Gráficos publicados originalmente em artigo do respeitadíssimo pesquisador alemão Dr. Franjo Grotenhermen mostrando a farmacocinética dos canabinoides nas duas principais vias de administração da Cannabis. Para ter acesso ao conteúdo completo, acesse o site da editora aqui.

Então, acho que fica claro pelo gráfico que há uma diferença bastante grande quando se administram compostos canabinoides por via oral ou inalatória. De modo geral, a via oral tem uma biodisponibilidade muito menor, em torno de 8 a 10% da dose ingerida. O restante é prontamente degradado, por isso a curva muito mais alta de metabólitos do que do canabinoide ativo. Na via inalatória, a absorção é quase total, e você tem efeitos muito mais rápidos, com maior aproveitamento da dose. Por outro lado, os efeitos inalatórios são passageiros, enquanto os da via oral são mais duradouros.

Os efeitos inalatórios dos canabinoides começam rápido e são passageiros, enquanto os da via oral demoram pra iniciar e são mais duradouros.

Uma questão marcante nos canabinoides é que a dose costuma ser mais individualizada do que estamos acostumados com a maioria dos medicamentos. A biodisponibilidade varia bastante de indivíduo para indivíduo, por questões de absorção, metabolismo e acúmulo nos tecidos adiposos (gorduras) do organismo, comum em tratamentos repetidos.

A figura abaixo nos dá uma ideia do que estou dizendo. Cada gráfico mostra a curva de canabinoides e seus metabólitos no plasma de um indivíduo. Sem nem analisar nada, ou nem saber quais são os compostos, fica relativamente claro que há diferenças bastante grandes entre o "desenho" das curvas, não é?

Essa questão da variação da biodisponibilidade individual, e portanto do ajuste de dose, é uma questão importante a se considerar no uso oral de canabinoides. Embora a via oral tenha sido a mais difundida até então e tem funcionado bem com o canabidiol (CBD) para a redução da frequência de crises epiléticas, existem casos em que é desejado que os efeitos sejam imediatos.

Um tratamento de resgate é o que se faz para tentar reduzir imediatamente um sintoma e estabilizar o paciente. Agora que você já sabe tudo sobre biodisponibilidade de canabinoides, acho que está bem claro porque a via oral não serve para esse fim. No hospital, o tratamento de resgate para crises convulsvias costumam ser benzodiazepínicos por via endovenosa ou injetável. E mesmo aí a via intranasal tem sido considerada interessante.

O vídeo abaixo mostra o tratamento do Beni, filho do amigo Leandro Ramires, que além de médico oncologista é presidente da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA-ME). Sabe aquela pergunta "Ah, muito bonito, mas você daria pro seu filho?".

Pois é, o Leandro Ramires, do alto da sua experiência como médico, e pai do Beni, dá. Só pra ficar claro que isso não é nem de longe invenção minha.

O vídeo tem imagens fortes, mas é impossível não se convencer de que tem algo muito importante para ser aproveitado aí.

Vídeo do Beni, filho do médico e amigo Leandro Ramires, sendo tratado com spray de Cannabis da associação ABRACE, originalmente postado no site da AMA-ME: http://amame.org.br/2017/04/20/abrace-esperanca-pioneira-na-producao-de-cannabis-medicinal-no-brasil/

Para concluir, só mais um pouquinho de dados. Acho que vocês que tem lido esse Medium já perceberam que o negócio comigo são evidências (aqui não ganha no grito!).

O gráfico abaixo mostra a comparação de variabilidade interindividual em algumas formas de administração diferentes. Neste caso, cada barra não se trata de um paciente, mas sim de um estudo completo, com vários pacientes.

Na esquerda vemos os estudos de vaporização, seguidos à direita dos estudos com Cannabis fumada, depois por via oral e por último absorção pela mucosa da boca. Neste caso, para interpretar os dados, quanto mais altas as barras pior. Quanto mais altas as barras, maior a variação entre os indivíduos, portanto, menos "confiável" é aquela via de administração pros canabinoides.

Veja que interessante, é por isso que se você quiser um efeito rápido e com bastanta confiabilidade na dose entregue, as vias inalatórias e por mucosas são muito mais desejáveis. A via oral é prática e conveniente, mas desperdiça muito do canabinoide ativo e tem uma confiabilidade bem mais baixa, do ponto de vista de biodisponibilidade.

A imagem abaixo é só pra lembrar que essa ideia de "vaporizador" para criança não é uma coisa completamente absurda, na verdade, não é nem inovadora. Os nebulizadores, que nada mais são do que vaporizadores, já são usados a bastante tempo, sobretudo para tratamentos envolvendo a via respiratória.

Mas vou deixar para falar de especificamente de vaporizadores em outro post, agora que você já aprendeu bastante sobre vias de administração e biodisponibilidade de canabinoides. E agora, qual a melhor maneira de tratar crianças com os canabinoides? Depende! Mas CBD por via oral claramente não é a única opção disponível.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!

Um mar de referências para quem quiser mergulhar no assunto

Grotenhermen. Pharmacokinectics and Pharmacodynamics of Cannabinoids Clinical Pharmacokinectics 42 (2003)

Nadulski et al. Simultaneous and Sensitive Analysis of THC, 11-OH-THC, THC-COOH, CBD, and CBN by GC-MS in Plasma after Oral Application of Small Doses of THC and Cannabis Extract Journal of Analytical Toxicology 29 (2005)

Huestis et al Blood cannabinoids and absorption. Journal of Analytical Toxicology 16 (1992)

Site da AMA-ME, sempre com ótimo conteúdo sobre o tema.

Journal of Palliative Care and Pharmacotherapy 2014

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Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.